Pessoa na casa de Llansol. 30 anos entre Lisboa e Leipzig

Pessoa na casa de Llansol. 30 anos entre Lisboa e Leipzig


No ano do festivalíssimo Orpheu, é na língua de Maria Gabriela Llansol que Pessoa é remendado. À revelia das agendas oficiais, dos elogios por atacado ou do panfletismo comercial, conhecer Fernando Pessoa passa a partir de agora também por aqui. 


A rematar um ano (2015) de histriónico acotovelamento público em torno da celebração de Orpheu, que a não desmerecendo se engasta ao ser assim tão amistosamente partilhado boca a boca em pastilhas de fácil engate comercial e/ou pandacadémico em tablóides e panfletos, não deixa de ser notável a seriedade revelada pela equipa que leva a cabo a transcrição, organização e publicação do espólio manuscrito inédito de Maria Gabriela Llansol, de que a série Livro de Horas é o resultado, com um rara vigor marginal (este sim), radicado no empenhamento a um tempo apaixonado e criterioso no trabalho por sob(re) manuscritos de pendor diarístico que nos têm chegado em volumes de uma notável coerência, à revelia da pressão mercantil, por um lado, ou ainda daqueloutra denodadamente pseudo-periférica, entretida em rixas contra inimigos inventados que fazem da coragem egolatria. 

À margem de sistemas e contra-sistemas, este Livro de Horas V, O Azul Imperfeito (com selecção, transcrição, introdução e notas de Maria Etelvina Santos) dispensa bem o alarde da remissão pessoana do horizonte dos textos seleccionados, embora o reclame com inteira justiça, precisamente por se não gorar numa já exasperante pretensão de ser mais um Pessoa-explicado-às-criancinhas, Pessoa-receitas-fáceis ou Pessoa-vai-ao-psiquiatra, constituindo a mais séria aproximação à figura do autor que no ano que agora cessa se levou a cabo. Reúne-se aqui o conjunto de inéditos da autora que, redigidos entre 1976 e 2006, se acoitam no “Projecto Lisboaleipzig”, no qual a figura de Pessoa é fulcral, alinhada com as Bach e de Espinosa. Num exercício que não é o de publicitação de uma fotografia comum, de plásticos sorrisos ao lado do Pessoa multifunções em modo superstar, exercício esse em que se têm bastado diversas artimanhas pessoanas já largos anos, há efectivamente um Pessoa na casa de Llansol, em apropriação dialogante e fecunda que tem um lastro de trinta anos de relação, a partir das diferentes narrativas em que o poeta é transmudado na figura de Aossê, em livros como Lisboaleipzig, Um Falcão no Punho, Um Beijo Dado Mais Tarde, Onde Vais Drama-Poesia?, entre tantos outros. 

Cabe aqui recordar que a dimensão intimista e averbativa do diário de Llansol não prescinde de uma relação de continuidade com a sua obra ficcional, criando um hibridismo genológico que lhe é tão caro e que recorda que o produto da escrita do diário é uma enunciação histórica que recria – e que, portanto, não replica – o tempo histórico. Esta questão não é de somenos importância, na medida em que justamente nos lega uma visão da realidade assente numa recusa do imediatismo do grande efeito festivaleiro, numa exigência meditativa que é excepcional entre nós e que, a pretexto de passagens auto-reflexivas e de uma exegese da própria escrita e da escrita própria, rasura protocolos de leitura e interpõe na percepção habitual um exercício de estranhamento, aquele ressalto no real de que falava Llansol. É pois a partir de dentro da sua própria escrita que Llansol descobre e inventa o seu Pessoa, a contrapelo da mastigada bajulação artificial que ao poeta se tem dedicado. A condição fragmentária que é a condição da escrita e da pessoa pessoana, essa “imensa fragmentação que Pessoa deixou escrita” na carência de um sentido unitário para a vida, cabe pois integralmente no próprio projecto llansoliano, à descoberta de um azul que, sendo “sinal da esfera terrestre”, surge na verdade imperfeito, à mercê da grisalhia da vida macambúzia da Lisboa pessoana.
Ora é justamente essa imperfeição, essa manta de retalhos do exercício heteronímico, que engendra a possibilidade de Pessoa ser assim transmudado em Aossê, transmutação que é uma autêntica redenção da dita imperfeição, pela mão da autora, num exercício de costura dos farrapos que Pessoa trazia já lambidos em excesso e que Llansol enceta no seio da sua própria obra, descobrindo-lhe a unidade remanescente: “todas as minhas camadas foram quebradas no combate, deixo um rasto que se assemelha a um grupo disperso de plantas fósseis, e aponta ao meu coração que não cessa, com uma corda, de dar pancadas no meu corpo (…) deixo de sentir a fadiga dos meus vários nomes (…) sou o superlativo absoluto simples”. Para tal, constrói para ele uma casa que é a da família Bach, em Leipzig, onde o azul é já “um infinito azul” e onde Aossê-Pessoa descobre a unidade: “Porque Aossê devia viver mais do que os seus quarenta e cinco anos já vividos – desse a morte por onde desse (…) seus animais descalços e taciturnos, a que chamavam heterónimos, haviam de ser domados e repletos da unidade de Aossê”. Encontra aqui a escrita a sua primeira qualidade, a de constituir um simulacro de fixação do próprio tempo, numa ilusão de perpetuidade gerida a partir de uma cristalização de um agora enunciativo que recusa o conteúdo precário daquilo que as palavras afirmam. Não é assim de estranhar que se encontrem nos diários llansolianos diversas páginas sobre o acto da escrita como um modo de desprendimento da contingência exterior ao processo mesmo de escrever, com os seus episódios institucionais (os pares, a História da Literatura, as academias, os prémios, os circuitos editorias), como uma inscrição da escritora no lado da língua, à revelia da literatura

Afinado pelo mesmo diapasão de Pessoa, o texto diarístico llansoliano é desses que se podem ler (como as suas ficções que o são e não são tanto, ou quase, quanto os seus diários) sem uma ordem específica, numa absoluta recusa da ordem do tempo linear e de uma afirmação do instantâneo e do disperso, do casuístico como manifestação de uma recusa de sujeição à cronologia, numa atenção ao rotineiro que dá razão a Blanchot, segundo o qual a escrita de um diário é ainda um modo de colocar o eu sob a protecção dos dias comuns. Llansol vai-nos dando por isso conta de uma procura de uma radicalidade (de inscrição de raízes no seu próprio tempo) como quem funda pela escrita o espaço que o tempo da vida real – da vida sem ela, sem a escrita – não deixa fixar. É esta a incidência da relação ambígua, uterina, com Portugal, entre pertença e recusa, e que atravessa como uma das notas mais distintivas os Livros de Horas até à data publicados, a qual surge aqui tematizada pela mão da transição Lisboa-Leipzig de que Aossê-Pessoa é protagonista, na procura de oferecer ao poeta a felicidade que ele não teve. Para esse fim, e como recorda a organizadora do volume, a casa dos Bach transforma-se no espaço da emenda imaginada do imperfeito azul originário de Pessoa, através da criação das figuras femininas de protecção (Anna Magdalena Bach), de desejo (Elizabeth) e de completude ou revelação (Infausta), justamente as figuras femininas que Pessoa nunca teve.
Na existência dramática e fragmentária de Pessoa, que tão bem combina com a sua própria escrita, Llansol redescobre a escrita como paliativo, na arquitectura de uma casa plural que se impõe contra a dualidade delirante, terreno da estética moderna, que Deleuze e Guattari adjudicam à experiência da esquizofrenia e que exige uma esquizoescrita libertadora, finalidade da literatura de Llansol, para a qual concorrem a proliferação de ecos, as relações entre os distintos textos que compôs, a migração de figuras, motivos, actores e fragmentos entre diários e ficções. Por via desta esquizoescrita se descobre que, algures entre Lisboa e Leipzig, entre a moderna angústia pessoana e a solenidade melancólica do século de Bach, se erguem um outro espaço e um outro tempo, uma casa chamada Lisboaleipzig, onde um Pessoa pacificado é remendado pela língua de Llansol.