Uma geração frustrada, de jovens revoltados contra as elites sectárias e corruptas que governam o Líbano há décadas, arrastando-o para uma das mais catastróficas crises económicas de que há memória, acordou com medo dos fantasmas da guerra. Os mais velhos ainda se recordam desses anos terríveis, entre 1975 e 1990, quando milícias sunitas, xiitas, cristãs e drusas se massacravam nas ruas de Beirute, entre intervenções militares externas.
E esta quinta-feira voltou-se a ouvir o som da guerra, quando uma multidão de apoiantes do Hezbollah e do Amal foi alvo de fogo de sniper, a partir do topo de edifícios, resultando num tiroteio que durou horas e dezenas de mortos. Estas milícias xiitas apontaram o dedo às Forças Libanesas, uma milícia cristã que foi dos seus principais adversários durante guerra civil.
Nos bairros e povoações cristãs por todo o Líbano, o receio de serem vítimas de represálias é enorme, conta Maria Sfeir. «Temos tanto medo de que haja uma guerra civil outra vez», desabafa esta professora do ensino secundário, de 29 anos, que mora numa pequena aldeia à beira mar.
Da última vez que conversou com o Nascer do SOL fazia parte dos voluntários que acorreram a Beirute, vindos de todo o país, para ajudar a enfrentar o rescaldo da explosão que destruíra o porto da cidade, o ano passado, limpando destroços, distribuindo comida e medicamentos, reparado casas.
Foi o rescaldo dessa tragédia que motivou os protestos de quinta-feira, exigindo a demissão do juiz Tarek Bitar, responsável pelo inquérito à explosão, a quem grupos como o Amal e o Hezbollah acusam de ser tendencioso.
«O que está a acontecer com o processo judicial é uma tentativa de politização, que já aconteceu com o juiz a quem foi atribuído o processo, e que saiu», clarifica Ana Santos Pinto, professora da Universidade Nova de Lisboa, doutorada em Relações Internacionais e especializada no Médio Oriente.
«O motivo disso é simples, é porque as pessoas que estão a ser investigadas e ouvidas no processo são as mesmas que estiveram no poder ao longo dos últimos trinta anos. E que não são exclusivas do grupo xiita, nem do grupo sunita, nem do grupo cristão maronita. Eles são os mesmos».
Sfeir nunca conheceu uma realidade que não essa. «Há tanta raiva contra os partidos políticos, contra os políticos que governam o nosso país», relata a professora, que, como tantos outros, está farta das redes de corrupção e clientelismo, baseadas em sectarismo religioso, que dominam o Líbano.
Não é a única. Ao longo dos últimos anos cada vez mais jovens têm saído à rua contra o modelo confessional da política libanesa. Por um lado, foi esse sistema que permitiu pôr fim à guerra civil; por outro, garante que o postos governamentais são repartidos entre religiões – o Presidente tem de ser cristão maronita, o primeiro-ministro sunita, o presidente do Parlamento xiita – e que, na prática, o poder esteja sempre nas mãos dos mesmos.
Sfeir reza para que essas velhas elites não decidam voltar defrontar-se no campo de batalha. «Isso seria tão irresponsável. Não conseguimos lidar com mais dor, com outra guerra», diz. Sobretudo agora. «Todos têm medo porque o inverno está a chegar. Falta a eletricidade e nós não temos dinheiro para comprar combustível para nos mantermos quentes».
‘Não é uma crise, é uma tragédia económica’
O desespero tornou o Líbano um barril de pólvora. «Isto não é uma crise económica, é muito mais do que isso», salienta Ana Santos Pinto. «Crise é pouco. Eu nunca vi números assim na história recente», continua. «O próprio Banco Mundial designa a atual situação no Líbano como uma das três crises mais graves do mundo desde o século XIX. Estamos a falar de uma dívida pública de mais de 300% do PIB, inflação em cerca de 40% no primeiro semestre de 2021. É uma situação absolutamente avassaladora».
«De crise económica falamos nós agora com a pandemia, isto é outra dimensão. É uma verdadeira tragédia económica, não é uma crise», realça a investigadora, num momento em que 78% dos libaneses caíram na pobreza, estando o salário mínimo nas 675 mil libras libanesas. Em tempos, isso chegou a valer mais de 400 dólares, hoje o seu valor cai demasiado rápido, mas no final desta semana estava por volta dos trinta dólares.
«Trinta dólares dá para comprar uns quarenta litros de gasolina para o teu carro», lamenta Maria Sfeir, que não escapou à miséria. Trabalha de sol a sol, alterna as aulas com biscates na apanha de marisco, e mesmo assim não consegue fazer mais do equivalente a 70 dólares por mês, uns 60 euros. «Com 70 dólares não consigo comprar tudo o que preciso, mesmo a nível de coisas básicas como comida», conta, com angústia.
«Estou a tentar arranjar emprego em qualquer sítio fora do Líbano», continua a professora. «Todos estão a tentar imigrar, todos aqueles que têm estudos estão a tentar ir trabalhar para fora do país».
É uma tendência que «coloca em risco o futuro desenvolvimento a médio e longo prazo», nota Santos Pinto. Mas não é de admirar, de maneira nenhuma, «as pessoas não veem uma alternativa». As que ficam, ou que não conseguem sair, terão de lidar com um país cada vez mais instável.
«Em situações de desespero o mercado negro aumenta, é normal», refere a investigadora. «Seja para produtos básicos, como alimentos e medicamentos, mas também do ponto de vista do armamento».
É algo particularmente preocupante num país com tantos velhos ódios, onde milícias sectárias armadas são regra, algumas delas – como o Hezbollah, apoiada pelo Irão, cujos combatentes têm ganho cada vez mais experiência de combate na Síria, ao lado do regime de Bashar al-Assad – com um poder equiparável ou superior às próprias forças armadas, montando checkpoints que se tornaram parte do quotidiano.
Essa experiência bélica ficou à vista de todos com a escala da reação ao massacre desta quinta-feira. Momentos após snipers abrirem fogo contra a multidão que se dirigia ao Palácio da Justiça, em protesto, combatentes xiitas avançaram sem hesitar, ajoelhando-se, abrigando-se em esquinas, abrindo fogo com metralhadoras, espingardas e lança-rockets, varrendo o bairro de Tayyoune. Não era a primeira vez que este bairro sofria um horror assim – durante a guerra civil, Tayyoune servira como linha da frente.
«Esta experiência foi basicamente o que nós passámos na altura», contou Jumanah Zabaneh, uma moradora que viu o começo do tiroteio pela janela, sabendo que o seu marido estava na rua, lá em baixo, e as suas duas filhas a ter aulas numa escola ali ao pé. Nesse momento, como tantos dos seus colegas, tentavam esconder-se debaixo das mesas, a chorar, confusas, enquanto o seu pai corria para as ir buscar e levá-las para longe.
«As miúdas não paravam de nos perguntar sobre o que estava a acontecer. Mas não havia nenhuma história que lhe pudéssemos contar», explicou Zabaneh à Al Jazeera, com a voz ainda a tremer.