Vergílio Ferreira. Um modo de partir

Vergílio Ferreira. Um modo de partir


Manhã Submersa oferece-nos um relato espesso, profundo, de um momento marcante que constitui, para o humano, o partir. Mesmo em ambientes mais cosmopolitas, menos provincianos, perene será o partir e seus indeléveis traços.


O quebrar de um ciclo – no caso de António, ainda a infância -, uma ruptura primeira e primordial, com um mundo que nos acolheu e, primariamente, formou; as ansiedades, as expectativas, os medos gerados por esse marco. A exposição desprotegida ao mundo. A alteridade do mundo. A sua putativa (necessária?) hostilidade. Nesse sentido, como testemunho (pungente) de um rito iniciático, calam fundo as palavras do menino a caminho do Seminário:

"Pela primeira vez estremeci de medo até aos limites da vida, não tanto, porém, da fúria do comboio, como dessa coisa insondável e enorme, tão grande para mim, que era partir. E então desejei ardentemente, profundamente, ficar. Mas era tarde: tudo quanto eu tinha feito desde há meses, tudo quanto fizera D. Estefânia, conduzia justamente àquilo mesmo – partir. Por isso, apertado de amargura, ameaçado de lágrimas, fui-me deixando abraçar em silêncio pelo Calhau (…) Mas espoliado abruptamente da minha infância, aturdido de solidão, sentia-me quase bem dentro do choro. Inesperadamente, por entre a minha dor, eu descobria em mim o aceno de um passado. Era a grande montanha a oriente, a sua liberdade espacial, era o bafo quente de um amor perdido, a flor original de uma alegria morta. E então voltei para lá a minha face molhada, e tudo em mim disse adeus longamente" (p.13)

[os figos secos comidos na camarata a recordarem paisagens físicas e humanas com as quais se estava a cortar; as cartas enviadas à mãe; os dias cortados ao calendário lembrando o que faltava para o regresso a casa]

Para a aclimatação a um novo universo, será necessário "matar" o que fica para trás? Não haverá, de qualquer forma, aqui ou ali, essa tentação? Ou será resignação? Não exigirá o "novo mundo" que o anterior seja arrumado?  "Dois criados trouxeram para o topo do salão dois enormes cestos de verga. Depois, foi o largar dos despojos de um belo mundo que morrera" (p.31). Que universo se formará no indivíduo como coisa outra que cada um dos mundos por que passa?

Por muito que haja uma família de origem (os Borralho), por muito que se encontre uma família de acolhimento (D. Estefânia), por mil amigos – Gama, Gaudêncio – que se fixem, não pode o sujeito furtar-se a uma solidão que será lugar de revelação: um face a face que implica escolhas, decisão, opção, angústia. O tom existencialista tem uma cadência e gradação crescentes ao longo da narrativa, sendo que, após a morte de Gaudêncio (e o estourar de dois dedos na festa do dr. Alberto), o véu se rompe para obrigar a uma determinação decisiva: "Havias tu outrora, havia o Gama e o conforto de ambos para a minha cobardia. Mas agora há só a minha cobardia" (p.181)

Neste contexto, a decisão de António abandonar o Seminário – mesmo perante as prédicas da mãe, aspirante a um dia frequentar, com "as beatas ricas", a missa presidida pelo filho; mesmo sendo a via clerical um degrau acima no ascensor social; mesmo não querendo ser posto na rua, na casa de D.Estefânia que o queria sacerdote; mesmo sendo essa a expectativa, pois, de todo o meio envolvente – é uma radical afirmação de liberdade, contra o destino traçado; uma declaração anti-trágica: "e outra vez, como nunca, parecia-me que a minha mãe queria lutar contra uma força maior do que nós e que a minha sorte [ser padre] era para ela sem remédio" [p.182]. Arcando com todas as responsabilidades e consequências da sua decisão – a pobreza, a falta de um amparo, a ausência de emprego certo -, António afirma-se livre.

"-Mãe! Não volto para o seminário!"
(…)
"Que sabes tu da vida? – continuou ela [mãe de António], animada com o meu silêncio. Toda a minha vida tenho sido uma cadela de fome e de trabalho. Se fosses padre, podia passar uma velhice boa. E os teus irmãos tinham um encosto. Nunca quis pensar nestas coisas, mas um dia tinha de pensar. E agora que vou fazer? (…) Eu logo vi! Eu logo vi que era sorte de mais – massacrava-me ainda minha mãe, campeando já sobre o meu silêncio – Agora a do Borralho com um filho padre! Poder comer queijo velho no Inverno! Dar-se com as beatas ricas! Era já mesmo para mim! Estava mesmo ali guardado para os meus queixos!" (pp.159-160)

A primeira divisão que António faz, quanto aos colegas do seminário – "os fatos pretos" – é entre bonitos e feios. Aqui a fealdade remeterá, em medida completa, para uma condição social (as mãos brutas ou calejadas; o dorso duro; a tez denunciadora da ascendência; por contraposição, por exemplo, aos "filhos de uma farda", de um agente de autoridade, que sabiam os preceitos, os gestos a prosseguir, as capacidades não cognitivas bem desenvolvidas; por outro lado, "fora da caixa" não conseguindo habitar o mundo, sem ritmo para criatividades, estas mais próprias de quem tem, desde cedo, que imaginar para se desenrascar; vide o dia de campo, de férias) : "a maioria vinha da raça da gleba" (p.26). António será remetido para a cozinha, nas refeições, a quando das férias, em casa de D. Estefânia; destratado, vezes sem conta, pelos filhos da sua "protectora" (ela mesma lembrando frequentemente as origens do rapaz, com indiscutível virulência: "Pois se não tem vocação, rua! Vá lá para a fome dos Borralhos! Vá comer palha! Aqui nem mais uma hora! Rua!", p.84); "o meu pai morrera, a minha mãe era pobre, eu brincara na lama da minha condição – sim…" (p.39), tudo se concretizando na maneira com Estefânia, nos anos do filho Alberto, estudante de Medicina em Coimbra, berra com os filhos, "distribui bofetões" para que estes não lancem bombas e foguetes ao céu e deixem que seja António a fazê-lo, porque as bombas podem estoirar…e estoiraram: António fica sem dois dedos.
No seu diálogo interior, António não parece esclarecido quanto a este episódio o ter determinado, de vez, a abandonar o seminário – veja-se o resultado de ser tratado e de sentir-se "filho de um deus menor" e na medida em que Deus nos vem pelos outros, com mediações -, se a decisão estava tomada e os dedos foram pretexto (homicídio ou suicídio, quanto ao sentido?).

A visão de António, relativamente ao Seminário, é o de uma prisão. Uma prisão que coloca fim a uma infância ("porque eu desejaria proclamar precisamente que o seminário era uma prisão (…) para gritar a traição à minha infância", pp.60-61). Uma ideia que parece pré-concebida – antes de o ser já o era -, em um tempo em que a imagem de Deus aparece manifestamente adulterada ("e Deus era o puro terror", p.166). Este ídolo – deus castigador – que o tempo se encarregaria, posteriormente, de demonstrar equivocado face ao Deus absoluto Amor que os textos sagrados apresentavam, surgia como que assumido nas sevícias do padre Lino, por exemplo. Nesta obra de Virgílio Ferreira, parece assumir-se a crítica que Nietzsche fez a um modo de conceber o cristianismo como negação da vida; assim vê, António, o Seminário, fuga mundi, "quero ser homem! quero ter mulher!" (p.161), onde o sistema anula a pessoa: "como não tinha já nada em mim para opor à minha sorte, deixei-me trabalhar sincronizado com o regulamento. Transformei-me devagar, apertado em disciplina, num autómato correcto, e as minhas notas de Comportamento subiram até ao nível de um seminarista exemplar" (p.164). 

O texto ilustra muito bem a ingenuidade dos anos finais de infância, a ira quando António ouve nomes como "padreca", a necessidade, às vezes, de auto-engano (p.60), a defesa de instituições a que se pertence mesmo quando nelas não se acredita, os frutos da amizade, a irupção da adolescência e de um tempo centrado religiosamente na moral sexual, a relação única mãe-filho ("num ímpeto, levantei os braços, rebentei as cordas do medo e atirei-me a minha mãe num abraço de desesperado (…) Desprendi-me dela, mas tomei-lhe logo as mãos e fitei-a e senti que o sangue dela entrava de novo nas minhas veias e passava de novo às suas, como se outra vez me estivesse aquecendo no ventre", pp.70-71), a auto-ilusão (promessas, a cada ida para férias, de não mais voltar ao Seminário), as tentações (os colegas que não aparecem mesmo, após férias, e que reforçam em outros o desejo de sair), mas, sobretudo, a irredutível solidão de quem não se sente confortável, já, em nenhum dos mundos por onde avança – quando regressa a casa, o tom "lôbrego", expressão usada amiudadamente na obra, com uma distância face aos jeitos mais polidos do futuro sacerdote mostram a este que já ali não pertence inteiramente; em casa de D.Estefânia é remetido para a cozinha; no encontro com amigos de infância na mata, estes procuram provocá-lo a dizer palavrões e não se sente agora confortável entre eles; no Seminário, já vimos, a ideia de prisão (mas que é isso de um homem ser livre por não ter vinculações?; em todo o caso, mesmo no ambiente um tanto gélido que nos é oferecido como descrição do local, ainda assim uma figura como a do padre Alves ressoa como um "resto cristão" que sempre permanecerá) – e que terá que se haver com as grandes questões (Gaudêncio e a existência de Deus; vida para Deus/vida mundana), cabendo-lhe uma indeclinável palavra final: "Quanto custa viver!" (p.182), reconhece a mãe de António perante o seu dilema).