O “caso Rendeiro” e alguns disparates


Nos últimos tempos, fora um ou outro jogo de futebol e o rescaldo das eleições autárquicas, creio que foi o tema Rendeiro o mais importante para a vida da humanidade…


Não é preciso começar por dizer do que trata “o caso”, suponho que quase toda a gente saiba – a avaliar pelo facto de tantos terem metido prego ou estopa a propósito, ou pelo volume de ruído sobre o tema. Aliás, nos últimos tempos, fora um ou outro jogo de futebol e o rescaldo das eleições autárquicas, creio que foi o tema mais importante para a vida da humanidade. E, de uma penada, segundo ouvi dizer (ou gritar), caiu o sistema de justiça, o sistema legislativo, o sistema político, entre outras quedas de estrondo – só não caiu Carmo e Trindade, porque essa queda já se deu há muito. Ora, eu não nego a importância do caso, nem que o mesmo dê que pensar. O que nego – uma, duas ou mesmo três vezes – são algumas coisas que ouvi e li, e que acho, não só erradas, como graves e até perigosas. E é por isso que lhes chamo disparates, não é por húbris, não é por falta de atenção à necessidade de humildade intelectual, não é por falta de respeito por opiniões diferentes. É apenas para – com a força de um substantivo que também adjetiva – chamar a atenção para o erro, a gravidade e o perigo. Se calhar estou eu errado, mas aqui vai, brevitatis causa. 

Primeiro disparate: querer mudar logo as leis a propósito de um caso concreto. O que tem, pelo menos, três problemas, um que emerge da crença muito exagerada de que fazer leis ou mudá-las é o remédio para tudo (e não é, apesar da importância do quadro normativo), outro que decorre do facto de, assim, estarmos sempre a mexer na legislação, com o que isso gera de confusão e instabilidade, e, finalmente, o problema que se prende com a necessidade de legislar com ponderação, frieza e tendo presente o caráter geral e abstrato da norma jurídica, o que é o oposto de ir a correr, sob o calor, a emoção e o ruído causados pelo “caso”, fazer uma lei ou mexer nela. Segundo disparate: defender que com a antecipação do trânsito em julgado das decisões condenatórias se evitam situações como o “caso Rendeiro”.

Duplo disparate: à uma, porque não se evitam, pois quem quer fugir antes do trânsito em julgado foge no momento em que este se aproxima, e tanto faz que este se aproxime após a decisão da primeira instância, após a da segunda ou após outra qualquer. O tema do momento do trânsito em julgado não tem nada que ver com as fugas, e misturar uma coisa com outra dará muitos likes, e servirá até para os defensores da antecipação voltarem a trazer o tema para a agenda, mas não misturemos alhos com bugalhos. Mas, à outra, também é disparate, e dos mais perigosos, porque conduz ou associa-se a uma outra ideia, que é a de que há fugas porque há muitas garantias, o que não só não é verdade (há fugas porque há fugas, e sempre houve e sempre haverá, é da natureza humana, digamos), como leva a querer (e amiúde conseguir), uma vez mais, encurtar e erodir garantias, com o que “vai o bebé com a água do banho” e “paga o justo pelo pecador”. Aliás, nesta lógica – que francamente já enjoa – de que as garantias têm a culpa de tudo, até das fugas de quem quer e pode fugir, podemos facilmente chegar à conclusão de que, melhor ainda que antecipar o trânsito em julgado para a segunda instância, é antecipá-lo para a primeira, ou até mesmo extinguir o recurso, ou – porque não, a bem da eficácia? – acabar mesmo com o processo, que assim resolvia-se a coisa e era fechá-los logo na gafaria, como em O Físico Prodigioso, de Jorge de Sena. Boa ideia, não? Era tiro e queda para acabar com “esta pouca-vergonha”. 

Terceiro disparate: começar-se logo – e até pessoas com especiais responsabilidades, deuses nos valham – a decretar falências deste ou daquele sistema e/ou a apontar culpas graves. Calma. Vamos ver exatamente o que aconteceu, e se alguém – para além de quem foge – tem ou não culpas no cartório. É preciso ver, porque pode dar-se o caso de haver culpas ou não haver, pois há fugas que acontecem – gostemos ou não (e não gostamos, evidentemente) – por mais que todos nos vários sistemas tenham feito o seu melhor. E há outras que acontecem porque alguém pode ter falhado. O que ainda não sabemos. Mas mesmo que tenha havido falha (e uma eventual falha de alguém não é uma falha sistémica, por definição), o que se não pode é desatar a decretar sentenças e a gritar aos sete ventos que é culpa do sistema de justiça, e uma desgraça para o mesmo, que é responsabilidade do sistema político, e uma vergonha, e/ou que o sistema legislativo é que falhou, e que assim não pode ser. O que não pode ser, na verdade, é tanta precipitação, tamanha generalização, uma preguiçosa superficialidade e esta fácil demagogia. Enche espaço noticioso e de opinião, dá bruaá, alimenta conversas de café, fica bem na lapela dos tremendistas do costume, de opinadores profissionais e dos sacerdotes do “está tudo mal”, mas não nos leva a lado nenhum. Antes, até, pelo contrário. 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira

 


O “caso Rendeiro” e alguns disparates


Nos últimos tempos, fora um ou outro jogo de futebol e o rescaldo das eleições autárquicas, creio que foi o tema Rendeiro o mais importante para a vida da humanidade...


Não é preciso começar por dizer do que trata “o caso”, suponho que quase toda a gente saiba – a avaliar pelo facto de tantos terem metido prego ou estopa a propósito, ou pelo volume de ruído sobre o tema. Aliás, nos últimos tempos, fora um ou outro jogo de futebol e o rescaldo das eleições autárquicas, creio que foi o tema mais importante para a vida da humanidade. E, de uma penada, segundo ouvi dizer (ou gritar), caiu o sistema de justiça, o sistema legislativo, o sistema político, entre outras quedas de estrondo – só não caiu Carmo e Trindade, porque essa queda já se deu há muito. Ora, eu não nego a importância do caso, nem que o mesmo dê que pensar. O que nego – uma, duas ou mesmo três vezes – são algumas coisas que ouvi e li, e que acho, não só erradas, como graves e até perigosas. E é por isso que lhes chamo disparates, não é por húbris, não é por falta de atenção à necessidade de humildade intelectual, não é por falta de respeito por opiniões diferentes. É apenas para – com a força de um substantivo que também adjetiva – chamar a atenção para o erro, a gravidade e o perigo. Se calhar estou eu errado, mas aqui vai, brevitatis causa. 

Primeiro disparate: querer mudar logo as leis a propósito de um caso concreto. O que tem, pelo menos, três problemas, um que emerge da crença muito exagerada de que fazer leis ou mudá-las é o remédio para tudo (e não é, apesar da importância do quadro normativo), outro que decorre do facto de, assim, estarmos sempre a mexer na legislação, com o que isso gera de confusão e instabilidade, e, finalmente, o problema que se prende com a necessidade de legislar com ponderação, frieza e tendo presente o caráter geral e abstrato da norma jurídica, o que é o oposto de ir a correr, sob o calor, a emoção e o ruído causados pelo “caso”, fazer uma lei ou mexer nela. Segundo disparate: defender que com a antecipação do trânsito em julgado das decisões condenatórias se evitam situações como o “caso Rendeiro”.

Duplo disparate: à uma, porque não se evitam, pois quem quer fugir antes do trânsito em julgado foge no momento em que este se aproxima, e tanto faz que este se aproxime após a decisão da primeira instância, após a da segunda ou após outra qualquer. O tema do momento do trânsito em julgado não tem nada que ver com as fugas, e misturar uma coisa com outra dará muitos likes, e servirá até para os defensores da antecipação voltarem a trazer o tema para a agenda, mas não misturemos alhos com bugalhos. Mas, à outra, também é disparate, e dos mais perigosos, porque conduz ou associa-se a uma outra ideia, que é a de que há fugas porque há muitas garantias, o que não só não é verdade (há fugas porque há fugas, e sempre houve e sempre haverá, é da natureza humana, digamos), como leva a querer (e amiúde conseguir), uma vez mais, encurtar e erodir garantias, com o que “vai o bebé com a água do banho” e “paga o justo pelo pecador”. Aliás, nesta lógica – que francamente já enjoa – de que as garantias têm a culpa de tudo, até das fugas de quem quer e pode fugir, podemos facilmente chegar à conclusão de que, melhor ainda que antecipar o trânsito em julgado para a segunda instância, é antecipá-lo para a primeira, ou até mesmo extinguir o recurso, ou – porque não, a bem da eficácia? – acabar mesmo com o processo, que assim resolvia-se a coisa e era fechá-los logo na gafaria, como em O Físico Prodigioso, de Jorge de Sena. Boa ideia, não? Era tiro e queda para acabar com “esta pouca-vergonha”. 

Terceiro disparate: começar-se logo – e até pessoas com especiais responsabilidades, deuses nos valham – a decretar falências deste ou daquele sistema e/ou a apontar culpas graves. Calma. Vamos ver exatamente o que aconteceu, e se alguém – para além de quem foge – tem ou não culpas no cartório. É preciso ver, porque pode dar-se o caso de haver culpas ou não haver, pois há fugas que acontecem – gostemos ou não (e não gostamos, evidentemente) – por mais que todos nos vários sistemas tenham feito o seu melhor. E há outras que acontecem porque alguém pode ter falhado. O que ainda não sabemos. Mas mesmo que tenha havido falha (e uma eventual falha de alguém não é uma falha sistémica, por definição), o que se não pode é desatar a decretar sentenças e a gritar aos sete ventos que é culpa do sistema de justiça, e uma desgraça para o mesmo, que é responsabilidade do sistema político, e uma vergonha, e/ou que o sistema legislativo é que falhou, e que assim não pode ser. O que não pode ser, na verdade, é tanta precipitação, tamanha generalização, uma preguiçosa superficialidade e esta fácil demagogia. Enche espaço noticioso e de opinião, dá bruaá, alimenta conversas de café, fica bem na lapela dos tremendistas do costume, de opinadores profissionais e dos sacerdotes do “está tudo mal”, mas não nos leva a lado nenhum. Antes, até, pelo contrário. 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira