Há uma imagem, de Hermann Broch, da qual se pode partir para compreender um conjunto de obras nossas contemporâneas. Talvez os últimos textos de Manuel de Freitas, este último livro de Jorge Roque, um certo Rui Nunes, que também pode ser lido segundo essa clave, estes três, pelo menos, podem ser ritmados por esta imagem de Broch escrevendo à pressa para ir depositar a obra na Biblioteca de Alexandria. É certo que os textos escapam por todos os lados e não se deixam prender por imagem alguma – mas isso não significa que não se possa proceder obliquamente, usando uma imagem onde a urgência e a catástrofe são dois centros luminosos e obscuros.
A literatura, aquilo que se convencionou intitular de literatura, pode designar uma certa relação a um texto escrito – mesmo quando este não contenha as marcas normais que acompanham o texto literário. Parece ser daí que decorre tanto o facto de todo e qualquer texto poder ser lido literariamente como, de forma semelhante, o facto de nenhuma frase ser, em si mesma, literária – a Bíblia talvez seja, neste sentido, um exemplo paradigmático de literatura, não apenas porque conte histórias, mas porque se abre a uma exegese infinita e infinitamente diversa, desprovida de mediadores que não sejam outros textos.
Mas, dentro desta relação, é possível colocar em destaque aquilo que se pode chamar de experiência selvagem da literatura. Em que consiste esta? Em aprender de cor (um filósofo francês, Gilles Deleuze, tem longas e belas páginas sobre essa potência inesgotável da repetição. Eis uma citação: “A cabeça é o órgão das trocas, mas o coração é o órgão amoroso da repetição”). Aprender de cor não é gostar – bem pelo contrário. Gostar é ainda demasiado activo, é aquilo que faz o leitor, que acaba por também ele participar no livro, no texto. Gostar é movimento, é soberania, é capacidade. Esta outra experiência de que se dá conta é tanto mais pobre quanto ela diz respeito, tantas vezes, a uma incapacidade. É a experiência da sujeição, mais do que do sujeito, é estar apanhado, capturado, é não conseguir sair – mesmo quando não se gosta. É não compreender, é falhar sempre. É uma música que não se consegue esquecer, uma frase, uma palavra, que continua a ecoar muito tempo depois, é um livro, um poema, que se agarra à memória. Se esta experiência parece selvagem isso deve-se ao facto de não haver aí qualquer escolha e de, em última análise, ela não restringir qualquer conjunto de objectos (o verso de uma música, uma imagem de um mau poema que, de repente, não nos deixa em paz). Não se escolhe, não se consegue, igualmente, esquecer – o que não significa que se é escolhido. Há um desencontro fundamental entre nós e ela, esta frase, este poema, esta imagem, um desencontro sem redenção, sem possibilidade de alguma vez escapar deste beco sem saída – um pouco como a morte, andamos sempre um passo à frente ou atrás dela, nunca coincidimos nem nunca poderemos coincidir.
Uma destas imagens que persegue – há já muitos anos – é essa de Hermann Broch. É de fácil compreensão, sabe-se de onde vem, conhece-se o contexto, as páginas – admiráveis – de Maria Filomena Molder, outras, menos ou igualmente admiráveis. E, no entanto, há sempre alguma coisa que escapa, um ligeiro incómodo que se instala, uma falta de fôlego que não permite acompanhar o pensamento. É uma falta, uma falha, qualquer coisa de irrecuperável que se movimenta na imagem. A imagem, esta, já foi referida, é aquela que fala da Biblioteca de Alexandria. A urgência que nela se deixa ler, esta inevitabilidade da catástrofe – catástrofe da cultura, mas, acima de tudo, do livro, do texto – tudo isso se compreende sem se compreender bem, consegue-se equilibrar com dificuldade, como diria um poeta.
É esta imagem de Broch que parece coordenar de longe – talvez demasiado longe – o mais recente livro de Jorge Roque, Eu e Tu. O título leva a outro lugar, pode levar a Martin Buber, leva, sem dúvida, a uma concepção ética da escrita e da literatura, a esse gesto de estender a mão para o outro que continua sempre e irremediavelmente lá longe, a uma distância indecomponível que nunca poderá ser ultrapassada – gesto múltiplo, evidentemente, que vai da oração ao perdão, à suplica, ao pedido, mas nunca mais do que dois, “eu” e “tu”, mesmo que um terceiro esteja estruturalmente, digamos assim, pressuposto na relação.
No entanto, antes ou depois desta concepção ética – imerso nela ou ao contrário – há esta imagem, esta urgência que é, igualmente, a consciência íntima de uma catástrofe que é tanto anterior como posterior – em todo o caso inadiável, inevitável, mas sem desespero. A corrida denuncia esta paradoxal urgência que nada irá salvar, a Biblioteca da Alexandria é já passado e ainda futuro. Parece que são desta ordem as pequenas histórias (não interessa muito saber se serão contos ou outra categoria qualquer) que se encontram coligidas em Eu e Tu. Há um tema comum ao longo delas, sem dúvida, a solidão e a excentricidade, a diferença que esta institui numa vida determinada, mas, além ou aquém desta solidão e das suas consequências, encontramos uma disseminação inescapável, encontramos a solidão como a marca, a fogo, da dispersão sem sentido, da errância.
“viajam agora dentro de mim as suas palavras como carruagens sem destino e o enigma da vida revela-se no enigma nenhum que é, completo e vazio. O que prendia, o que inquietava, não era a razão ou a justiça com que expressava o que bem podia ser parcial ou enviesado, mas o facto de falar para ninguém voltado para os pilares da arcada. O absurdo de prosseguir, enérgico e convicto, como se entre os ferros e o cimento dos pilares houvesse alguém que o ouvisse. E as suas palavras, justas ou injustas, lúcidas ou insensatas, extinguiam-se no vento frio de janeiro sob o testemunho da rua deserta.”
São pequenas histórias. O termo “pequenas”, aqui, não diz respeito ao tamanho, mas ao tom. São arabescos, palavras ditas numa noite qualquer, lançadas a ninguém, que morrem “no vento frio de janeiro sob o testemunho da rua deserta”. É a escrita que, mais do que a história – todos se lembram da injunção da Blanchot: “Uma narrativa? Não, nada de narrativas. Nunca mais” –, surge como um relatório dessas vidas danificadas e sem salvação, vidas votadas ao esquecimento (como são todas) mas que parecem fazer do esquecimento a sua matéria. Não se trata de compreender o que quer que seja nem de salvar – tudo retórica de humanista ou de escritor –, porque nunca foi para isso que a escrita, ou a literatura, foi feita. Trata-se, sim, de estender a mão, sabendo, no entanto, que isso de nada serve, que a distância é inultrapassável, trata-se de ir a correr depositar estas pequenas histórias para nada na Biblioteca de Alexandria – também este gesto é desesperado, sem sentido, mesmo que seja também ele inescapável, não tendo, no entanto, qualquer réstia de heroísmo.
“E eu fiquei a pensar que só a solidão pode abarcar pode abarcar a solidão. Só a solidão pode entrever que a porta reside noutra solidão. Dor do outro, dor de mim, dor universal de que cada um de nós, altivo ou cabisbaixo, sereno ou furioso, é a personagem sem escolha. Drama irredutível de cada vida e a gargalhada que absurdamente a ilumina, jubilosa e humílima, sofrida e feliz, a consumar sem brilho o nada vulgar e ridículo de todas as vidas”
Jorge Roque confere a estas histórias uma espécie de movimento reflexivo. Elas acabam sempre, ou maioritariamente, por este breve momento, como se se tratassem de contos de fadas onde a moral da história chega como um movimento último do texto, um vislumbre de uma pequena porta, fechada mas ainda assim aí – mas aqui não há moral alguma, nem lição alguma, há uma escrita que se mantém na imanência destas vidas vazias, “vida todos os dias adversa, falhada sofrida. Vida consumada no erro, para sempre perdida”.
São pequenos monumentos erigidos de forma frágil – como estes palavras que ecoam numa noite sem fim – e não pretendem ser mais do que isso. Na sua sobriedade, estas vidas que são apenas efeito sem causa deixam estas palavras que dão conta de si mais do que as contam. E Jorge Roque vai coligindo-as, arquivador de vidas danificadas, depositando-as depois, à pressa, na Biblioteca de Alexandria – antes que a catástrofe, que ele sabe inevitável, tudo consuma.