Michel de Montaigne. Agora bem podia ser a hora da nossa morte

Michel de Montaigne. Agora bem podia ser a hora da nossa morte


Em “Que Filosofar É Aprender a Morrer” (VS Editor), Michel de Montaigne desafia o mais vulgar de todos os medos, numa ousada meditação sobre o verdadeiro sentido da mortalidade humana.


A morte está cheia de caruncho; tem o bote onde nos vai levando meio desfeito, isto de tanto atracar às horas mais absurdas em qualquer cais, e, no entanto, não se atrapalha. Segue, mesmo roída, larvada, com um ar que só não mete mais medo porque assim ainda alimenta a quem a vê surgir uma certa esperança de que ela mesma desfaleça. E a respeito deste género de insana esperança, nota Montaigne que “não há homem tão decrépito que, vendo Matusalém à frente, não pense ter ainda vinte anos no corpo”.

Quanto mais frágil nos surge a morte pela frente menos convincente nos parece. Como se nos víssemos no espelho, vem sobre nós o impulso voluptuoso de um gesto derradeiro de delicadeza, não se sabe se ainda dirigido a um outro, ou se apenas com essa impressão estranha com que, por vezes, somos devolvidos e nos enterramos fundo em nós próprios, numa vertigem que nos faz tremer os ossos. A morte, seja como for, é de uma dedicação atroz ao seu ofício.

E, contudo, e de forma inexplicável, raramente foi cantada de forma digna nos nossos dias; isto, talvez, porque nem os mais ousados poetas tenham encontrado em si esse atrevimento que, para ser puro, deve ser incauto e também o gozo desalmado necessário para prender por um instante que seja a sua atenção. Continuamos a ouvir falar muito da morte como se fosse um harpejo medonho, desses que se supõe que arrepiem a todos, causando um tal pavor que, mesmo os que não tenham encontrado o menor indício de Deus entre as graças desta vida, logo se benzem ao ouvi-la ser nomeada.

Da morte, hoje, na arte só vemos passar uma sombra esgazeada, contentando-se os artistas com ociosas presunções próprias de quem nunca confrontou decididamente os seus medos. Se o remédio do vulgo é não pensar nela, como diz Montaigne, a maioria dos artistas fazem pior julgando tirar-lhe as medidas, pois representam-na como um monstro inexplicável, absolutamente convencidos dos seus aterradores atributos. Raríssimos são aqueles que a desafiam, e só uns poucos desdenham dela. Não falta apesar de tudo aqueles que se lhe lançam desesperadamente e quase lhes rasgam as imundas vestes. Mas falta por aí quem a corteje ligando galanteria e coragem. Falta quem ambicione ver-lhe as faces magras e pálidas enrubescer de súbito ao sentir um piropo cravar-se-lhe entre as vértebras desse vazio que arrasta as almas para o outro mundo.

Mas primeiro que tudo, é preciso que aquele que se lance nessa façanha potencialmente fatal o faça com o enlevo dos exploradores, os que se deixam aliciar pelas paixões dilacerantes e pelos prazeres finais dos condenados. Para isso é bom que alimente no espírito a noção de que agora é tão boa hora como qualquer outra para que venha a morte. O que não pode haver na voz de quem a cante é esse engulho que denuncia os cobardes. De uns vão-se ouvindo uns lamentos antecipados, como se carpissem que nem viúvas de si mesmos, vestindo de luto para tornar mais extensa a impressão processional, como se assim comprassem um rastro mais longo e fundo ao invés da concisa cova que chega para fazer desaparecer na terra outro caixão. Também não falta quem passe os dias hamletianamente a assediar sepulturas alheias, servindo-se de caveiras como adereços para ensaiar delírios a ver se, assim, enxota a sua morte.

Ainda que não se quisesse ir mais longe, perante os sinais da sua passagem, poderia revelar-se ao menos algum humor, como o que demonstrou o dramaturgo Tristan Bernard, que certa vez mandou parar um carro fúnebre como se fosse um táxi, e que, quando o veículo se deteve, inquiriu alegremente: “Está livre?”

Este humor justifica-se, de resto, sempre que a morte se chega antes da hora e não parece interromper nada de extraordinário, antes vindo prestar um serviço, levando-nos daqui quando a vida estava naquele estado degradado em que o que de melhor ainda consegue é aborrecer-nos. De resto, note-se que, no que toca aos seus expedientes, às suas abordagens e gerais técnicas de engate, nunca lhe faltou um certo tom faceto. Montaigne lembra como Ésquilo morreu depois de apanhar em cheio na pinha com uma carapaça de tartaruga que escapou das patas de uma águia no ar. De um outro nos conta que terá morrido por causa da grainha de uma uva, e lembra-se também daquele imperador que se foi por causa do arranhão de um pente ao pentear-se. Ainda ilustra esse caprichoso relevo que distingue a assinatura da morte com o caso de Emílio Lépido, a quem bastou ter batido com um pouco de força a mais com o pé na soleira da porta, e, elenca depois alguns exemplos de homens que deixaram escapar o seu último fôlego por entre as coxas das mulheres.

Um bom resumo daquilo em que Montaigne acreditava e exprime no ensaio “Que Filosofar é Aprender a Morrer” (que agora nos chega com tradução de Diogo Paiva) é feito por Julian Barnes no seu livro “Nada a Temer”, dizendo-nos que aquele, consciente de que nada se pode fazer para derrotá-la, desenha a sua estratégia por meio de contra-ataque: “pensar na morte sempre que o nosso cavalo cai ou cai uma telha dum telhado”.

O conselho, parecendo simples, faz da morte uma companhia que pode desmanchar prazeres antes de amansarmos os devaneios e as engenhosíssimas frioleiras que nos provoca. “E para começar a retirar-lhe a sua maior vantagem contra nós, tomemos um caminho completamente contrário ao usual. Retiremos-lhe a estranheza, acostumemo-nos a ela, não tenhamos nada tão frequentemente na cabeça como a morte. A todo o instante, representemo-la na nossa imaginação e em todas as suas formas.”

Montaigne chega mesmo a sugerir que até nos momentos de festa e alegria lhe deve ser dado espaço para também ali soltar os seus cabelos sujos sobre a mesa: “repitamos sempre esse estribilho da memória da nossa condição, e não nos deixemos tão excessivamente arrastar pelo prazer que, às vezes, não nos venha à memória de quantos modos essa nossa alegria é o alvo da morte e com quantas formas de a capturar ela a ameaça”. Depois lembra como os Egípcios tinham o hábito de, a meio dos seus festins e entre a sua melhor comida, fazer entrar como uma iguaria num prato maior a anatomia seca de um homem morto para servir de advertência aos convivas.

Como vinca Barnes, de acordo com esta atitude, “antecipar assim a morte é soltarmo-nos da sua servidão: além disso, se ensinamos uma pessoa a morrer, ensinamo-la a viver”. E aqui é útil recordar o que escreveu logo no arranque deste célebre ensaio até aqui inédito o pai do ensaio, homem que levou uma vida aventurosa mesmo nos tantos anos que passou refugiado na torre que albergava os seus livros, naquele castelo onde nasceu e morreu, dedicando-se a esse estado de embriaguez natural que as ideias produzem se nos deixamos picar pelo seu enxame, pela proliferação ilimitada destas no seu jogo de espelhos: “o estudo e a contemplação retiram, por assim dizer, a nossa alma de nós e a ocupam fora do corpo, o que é uma certa aprendizagem e uma assemelhação com a morte; ou porque toda a sabedoria e palavreado do mundo se reduzem, por fim, a ensinar-nos a não temer morrer”.

A morte vence-se assim não lhe virando costas, mas mergulhando mais fundo na instabilidade que esta nos promete, nessa espécie de vertigem que, em vez de nos impor um limite terrífico, afinal desdobra um horizonte que torna cada instante mais profícuo. De resto, se Montaigne prescreveu como remédio formular um comprimido de consciência que nos permita trazer o sabor da morte na boca e o seu nome na língua, Julian Barnes diz-nos que esta constante consciência da morte não tornou Montaigne melancólico e que antes o dispôs ao devaneio extravagante, à fantasia. “Ele espera que a morte, sua companheira, sua parente, lhe faça a última visita quando ele estiver a meio de uma tarefa comum – como plantar couves.”

De algum modo, a morte funciona como um catalisador ensaístico, um regime libertador que abre caminho a esse processo de descoberta do próprio eu. Assim, a morte torna-se a origem de uma outra vida: “A premeditação da morte é a premeditação da liberdade. Quem aprendeu a morrer, desaprendeu de servir. O saber-morrer livra-nos de qualquer sujeição e constrangimento. Nada há de mal na vida para aquele que compreendeu que a privação da vida não é um mal”, conclui Montaigne.

A morte faz de nós monges bastante compassivos, lidando com a mais espinhosa das crenças, aquela que nos põe diante do nosso próprio fim. Haveremos de sofrer até que a ideia se nos acostume e chegue a contentar-nos, pois ficará claro que a vida não se prolonga sem um preço que é precisamente o da erosão do nosso ser, das qualidades que em nós mais estimámos, até ao ponto de sermos só uma teimosa persistência já incapaz até de levar minimamente longe a aspiração de transcendência.

Além do mais, como frisou Somerset Maugham em “Exame de Consciência”, “a grande tragédia da vida não é os homens perecerem, mas deixarem de amar”. O mesmo escritor anotou também naquela que é a primeira entrada de 1902, no seu diário, algumas impressões que são bastante esclarecedoras sobre o alívio e até a justiça que a morte impõe: “Os homens, banais e medíocres, não me parecem talhados para enfrentar o feito descomunal da vida eterna. Com as suas pequenas paixões, pequenas virtudes e pequenos vícios, estão bem adaptados ao mundo de todos os dias; mas o conceito de imortalidade é demasiado vasto para seres moldados em escala tão pequena.”

Julian Barnes, no livro já citado, lembra que, antes de se tornar escritor, Maugham estudara Medicina, e vira morrer doentes pacífica ou tragicamente. E sobre essa sua experiência com a hora final de tantos garantiu que nunca vira, no último momento, nada que sugerisse que o espírito de qualquer um deles fosse eterno. “Morrem como morre um cão.”

Mas se morremos como cães, se não temos como evitar “a banal democracia da morte”, se nem a arte vem em nosso socorro como meio de deixar um rasto mais longo e fundo nesta terra, aspirando, senão à imortalidade, pelo menos a uma extensão do crédito um pouco para lá dos anos que um corpo é capaz de digerir, isto antes de ficar com uma sensação de permanente congestão ou enfartamento, podemos pelo menos aprender a aliviar-nos destes humores vulgares e nocivos, ajudando-nos primeiro a nós próprios e depois também aos outros a morrer melhor. Assim, Montaigne dá-nos o seu exemplo, e diz: “Tanto quanto já não me apego tão fortemente às comodidades da vida, pela razão de começar a perder-lhes o uso e o prazer, vejo a morte de uma perspectiva menos assustadora. Isso faz-me acreditar que quanto mais eu me afaste dessa e me aproxime daquela, mais facilmente aceitarei trocar uma pela outra.”

Resta-nos, portanto, cantar a morte, cantá-la também por aquilo que Tonino Guerra aprendeu com um velho, isto quando andava a passear pelos campos num feriado em que toda a gente foi pôr flores aos cemitérios. O velho estava a trabalhar na vinha, e quando passava por ele Tonino quis explicar que andava por ali para evitar os cemitérios por ter medo da morte, ao que o outro lhe respondeu: “A morte não é aborrecida. Só nos visita uma vez.”

Aquele velho terá compreendido o mesmo que Montaigne, quando este afirma que “nada pode ser tão grave se só acontece uma vez. Há alguma razão para temer durante tanto tempo uma coisa tão breve? Viver muito tempo ou viver pouco tempo tornam-se no mesmo através da morte.” Mais à frente, perto do fim, diz ainda isto: “Creio, na verdade, que são esses trejeitos e aparatos assustadores de que nos rodeamos que nos dão mais medo do que ela: uma forma de viver completamente nova, os gritos das mães, das mulheres e das crianças, a visita de pessoas atordoadas e transidas, a assistência de um conjunto de criados pálidos e lacrimosos, um quarto sem luz, círios acesos, a nossa cabeceira cercada de médicos e pregadores; em suma, todo o horror e pavor à nossa volta.”

Assim, todo este teatro tortuoso talvez seja, no fundo, um modo de escondermos uns dos outros que é a vida, na verdade, o que nos provoca tanta agonia. E pode ser até que o segredo que mais nos escondemos seja algo como um pressentimento de que, no fim, o medo da morte poderá dar lugar a um desejo de se lhe entregar. E se, afinal, sob tudo isto, correu sempre o desejo de esquecimento? De não estar aqui, não estar em parte alguma. Como se o vazio que se sente durante a vida fosse apenas uma saudade, uma ânsia de sermos devolvidos ao nada.