Benedetta. Um insulto à Igreja ou um desvendar de segredos passados?

Benedetta. Um insulto à Igreja ou um desvendar de segredos passados?


Paul Verhoeven voltou aos grandes ecrãs e, mais uma vez, com um filme que já começou a “agitar o mundo”. Benedetta existiu, foi freira e era lésbica. A obra conta a sua história e membros da Igreja católica já começaram a protestá-la. 


Verhoeven não seria Verhoeven se não fizesse tremer as audiências. Verhoeven não seria Verhoeven se deixasse de quebrar convenções morais desafiando a indústria cinematográfica ao explorar questões relacionadas com sexo, violência e religião. Com ele temos assistido a produções que se debruçam sobre retratos de voyeurismo, sadismo, masoquismo, perversão, repressão, rebelião e lutas pelo poder e o seu último filme, Benedetta, não é exceção. 

Desde que foi partilhada a primeira notícia sobre a sua produção, em 2017, rios de tinta têm corrido sobre esta longa metragem inspirada no livro Immodest Acts: The Life of a Lesbian Nun in Renaissance Italy da historiadora britânica Judith Brown. Filmado um ano depois, em sigilo absoluto devido ao medo de possíveis boicotes de associações católicas, a sua apresentação estava marcada para o Festival de Cannes 2019. 

Contudo, uma doença grave do realizador fez com que a pós-produção do filme fosse interrompida, passando a ser considerado para o ano seguinte. Mas, mais uma vez, não foi possível: a pandemia levou a que a Croisette não visse o seu festival no ano passado e tanto o produtor do filme, Said Ben Said, como o realizador holandês decidiram não aceitar a chancela Cannes 2020, adiando a estreia para quando fosse efetivamente possível mostrar o filme no certame – este ano. 

A verdade é que muita gente conhece Verhoeven como “o terrorista do género cinematográfico que sempre gostou de incomodar o espetador”. A sua imagem mais icónica é a famosa cena do cruzamento de pernas de Sharon Stone em Basic Instinct – Instinto Fatal (1992).

Porém, todos os seus momentos de passagem por Hollywood são um compêndio de “como explodir os códigos morais e visuais predominantes”. Já antes tinha “atiçado” o mundo com Turks Fruit (1973), “metido o dedo na ferida” do imperialismo norte-americano em filmes como Robocop (1987) ou Starship Troopers (1997), chocado com  Showgirls (1995) e incendiado uma certa moral francesa com Elle (2016).

A História de Benedetta 

O anúncio de que, no seu próximo filme, Verhoeven iria adaptar o livro de Brown, sobre uma freira lésbica na Itália do século XVII, foi saudado com alegria pela cinefilia: parecia não haver melhor argumento para o “grande provocador holandês” voltar às grandes telas.

O filme é baseado na história real de Benedetta Carlini, uma abadessa do século XVII que foi investigada pela Igreja Católica pelas suas alegadas visões místicas e milagres que passou décadas atrás das grades por ter tido relações sexuais com outra freira. 

Passada na cidade italiana de Pescia durante o século XVII, numa época marcada pelo obscurantismo e pela peste, a história começa quando uma congregação de freiras enclausuradas concorda em receber uma menina chamada Benedetta (Virginie Efira). Com o passar dos anos, Benedetta, totalmente integrada na vida do convento, começa a ter visões de Jesus – visões muito diferentes daquelas a que a Igreja Católica está acostumada. A chegada de uma jovem chamada Bartolomea (Daphne Patakia) acaba por provocar na protagonista o despertar de um inesperado desejo carnal.

E, como seria de esperar, Verhoeven teria de retratar a vida do convento teatral de Pescia, desafiando o que é comumente conhecido como “bom gosto”: várias das suas cenas apresentam uma estátua da Virgem Maria convertida num vibrador; numa outra cena, uma empregada extrai leite de um dos seios diante do olhar lascivo de um núncio (representante diplomático permanente da Santa Sé); e o primeiro contacto entre a protagonista (Virginie Efira) e a jovem Bartolomea (Daphne Patakia) realiza-se nas latrinas (lugar para dejeções humanas), ao ritmo da música emitida pelos intestinos. Depois de admitir ter visões com Jesus Cristo, Benedetta afirma tê-lo tocado, e insiste que as marcas no seu corpo são verdadeiros marcas causadas ​​or essas experiências místicas.

As perguntas que se colocam são: o seu corpo e alma serão realmente transmissores da divindade? Será Benedetta uma mentirosa sedenta de poder com toda uma história planeada? Ou, ao invés disso, estará a protagonista presa num sistema de crenças que não lhe permite distanciar a realidade da ilusão? Por mais que não exista uma resposta, graças à publicidade que é gerada em torno de si, a protagonista sobe ao topo da hierarquia do convento – o que lhe permite possuir um quarto privado onde vive uma história de amor. A sua fama torna-se um íman para doações e peregrinações, mas isso não impede a abadessa deposta, Irmã Felícia, de procurar formas junto das autoridades eclesiásticas para “desmascarar” quem ela considera uma impostora.

A contestação 

Por toda esta “ousadia”, foi quase inevitável que a produção não tenha ofendido certas secções da cristandade. A primeira sessão de Benedetta, que decorreu no dia 26 de setembro no Festival de Cinema de Nova Iorque, fixado na sala de concertos do Lincoln Center – Alice Tully Hall –  teve direito a um protesto à porta organizado pelo grupo católico “America Needs Fatima”. Com cartazes, faixas e megafones, os cerca de 20 manifestantes tinham como alvo o “filme lésbico blasfemo que insulta a santidade das freiras católicas”.

Inspirado pelas aparições de Nossa Senhora de Fátima que alega representar 120 mil católicos nos EUA, America Needs Fatima tem várias petições no seu site contra filmes, homossexualidade e diversos produtos LGBTQIA+. A associação costuma também organizar protestos junto de clínicas de planeamento familiar.

“Eles estão chateados com o retrato “blasfemo” das freiras e do catolicismo. Estão a repetir Ave-Marias em megafones”, disse Christian Blauvelt, o editor-chefe da IndieWire (site de opinião a respeito da indústria cinematográfica). 
Embora nem o cineasta holandês, nem nenhum dos protagonistas estivessem presentes, a exibição contou com a presença do roteirista David Birke que explicou ter seguido o roteiro “linha por linha” para dar a conhecer o filme, pois “a culpa não é sua e a história simplesmente apoia uma outra história”. 

Como “toda a publicidade é boa publicidade”, não só o protesto chamou ainda mais a atenção para “Benedetta”, como a organização do Festival de Cinema de Nova Iorque partilhou uma fotografia da manifestação para promover a sessão seguinte.

Mas os protestos não se ficaram pela “cidade que nunca dorme”: No dia 2 de setembro, a plataforma “pró-vida e defensora da família”, CitizenGO, lançou uma campanha apelidada ‘STOP the blasphemous film Benedetta’, que já conta com o apoio de mais 200 mil assinaturas e que tem como objetivo a interrupção da distribuição do filme.

No decorrer do relato, afirma a plataforma internacional, “o diretor recria de maneira explícita” cenas que mostram Benedetta num “jogo erótico-lésbico com uma companheira de cela, Bartolomea” e “mostra um jogo sexual de ambas com uma pequena imagem da Virgem Maria”.

CitizenGO afirmou que o filme “é tão agressivo” que “recebeu críticas” dos meios de comunicação seculares e não conservadores, pelo “seu alto nível de erotismo e violência”, ao ponto de ser considerado um “filme pornográfico hiperperturbador”. Diante disso, a plataforma publicou uma carta dirigida ao diretor do filme onde é expressada a preocupação da “comunidade de 2 mil milhões de cristãos do mundo” pela “exibição aberta e obscena de uma blasfémia”.

A carta destaca o “mal-estar gerado pelo filme” e a “ofensa aos sentimentos religiosos da comunidade”, pois não só “se regozijam com a homossexualidade de pessoas consagradas, como também as mostram tendo prazer sexual com uma imagem da Virgem”. Por fim, a plataforma exige que, não só se acabe com a distribuição de um filme “altamente ofensivo”, como se peça desculpa à comunidade cristã, “gravemente prejudicada”.

Na Rússia, não demorou muito para que as críticas se transformassem em censura direta. O comunicado de imprensa oficial do Ministério da Cultura da Rússia chegou no dia 17 de setembro anunciando que o filme, com estreia marcada para 7 de outubro, não seria lançado. Contudo, a declaração não forneceu uma motivação precisa para essa decisão. 

A imprensa russa depressa analisou o caso, defendendo que reduzir todo o filme de Verhoeven a “uma simples sequência de cenas pornográficas entre duas mulheres é um insulto à verdadeira intenção do autor”. A notícia, inicialmente divulgada pelo Courrier International, não passa despercebida, mesmo que poucos esperem uma mudança de rumo por parte do governo russo que até então nunca lidou bem com as questões relacionadas com a homossexualidade. 

Apesar de não revelarem qual a parte do filme em questão, de acordo com o ministério, o filme contém “uma cena com conteúdo provocativo que viola a lei russa sobre liberdade de consciência e religião”.
 
A opinião do cineasta 

Por sua vez, numa entrevista ao jornal espanhol El País, o cineasta holandês partilha a sua tristeza com as contestações: “Não entendo por é que chamam blasfêmia a algo que realmente aconteceu. Não podemos mudar a história, não podemos mudar os factos. Podemos dizer se os consideramos certos ou errados, mas eles não deixam de ser factos”, afirmou, acrescentando que “usar a palavra blasfémia neste caso parece estúpido”.

Reativamente à questão da nudez, Verhoeven relembrou que, “em geral, quando as pessoas fazem sexo, tiram a roupa”: “Surpreende-me que as pessoas não queiram ver a realidade”, argumentou. “De onde vem este novo puritanismo? Não sei! Mas é só ir à praia e dar uma olhadela… Já ninguém faz topless (algo comum nos anos setenta e oitenta). Estamos a entrar numa época ridícula em que este puritanismo trata os corpos humanos como se fossem grandes segredos”, sublinhou. O filme estreia no dia 25 de Novembro, em Portugal.