Nevermind. Um sucesso para o qual ninguém estava preparado

Nevermind. Um sucesso para o qual ninguém estava preparado


Foi o disco que mudou uma geração e conduzu o seu líder a um infeliz final de vida. Nevermind, disco maior dos Nirvana, fez na passada sexta-feira trinta anos.


Tudo começou como uma brincadeira, uma paródia até, do hino de rock de arena dos Boston, a música ‘More Than A Feeling’. Os contagiantes acordes que marcam o ritmo desta canção, que quase obrigam os fãs a levantar os braços ou a partir para uma sessão de “air guitar”, eram algo com que Kurt Cobain pretendia gozar quando, pela primeira vez, tocou o lendário riff de ‘Smells Like Teen Spirit’.

“Era uma linha de guitarra tão clichê”, confessou o líder dos Nirvana à Rolling Stone, numa entrevista em 1994. “Era tão parecido aos riffs dos Boston ou à ‘Louie Louie’. Quando toquei pela primeira vez esta parte da guitarra, o Krist [Novoselic, baixista do conjunto] olhou para mim e disse: ‘Isso é tão ridículo’”.

Ridículo ou não, piada privada ou paródia, esta enxurrada de acordes, primeiro com um som limpo e depois distorcidos, que marcam o início de ‘Smells Like Teen Spirit’ e de Nevermind, o segundo disco dos Nirvana, que celebrou no dia 24 de setembro o seu 30º aniversário, acabaram por se tornar a imagem de marca de uma das músicas mais populares de todos os tempos e um sinónimo dos anos 1990.

Este disco foi um completo ponto de viragem na vida dos membros dos Nirvana (sem falar na forma como influenciou os milhares de milhões de pessoas que ouviram as suas músicas) que apenas iria terminar no trágico final de vida do líder do conjunto.

“Ele estava em casa, só de cuecas brancas e descalço, muito típico do seu pai, Don Cobain, e ele tinha uma cassete na mão, eu perguntei-lhe o que era aquilo, ele disse que era a uma cópia mestre do seu disco [Nevermind] e pediu para pôr a tocar na aparelhagem”, recordou a sua mãe, Wendy Cobain, no documentário sobre a vida do seu filho Montage of Heck (2015).

Uma vez que o seu padrasto estava na sala a ver um jogo de futebol americano, Kurt disse que podia colocar um volume mais reduzido, mas a mãe pediu para elevar os decibéis, “é a única forma que consigo ouvir música”, disse.

“Olhei para ele e quase comecei a chorar, mas não era de felicidade, era de medo. Isto vai mudar tudo e avisei-o: ‘É melhor preparares-te, porque não estás pronto para isto’”.

 

O ponto de viragem

A lenda de Nevermind está mais que batida. Depois do lançamento de Bleach, em 1989, um álbum muito mais cru, violento e despido, o grupo tornou-se uma coqueluche do rock alternativo e do grunge, designação atribuída aos grupos de Seattle pois ninguém conseguia bem perceber se faziam parte dos típicos grupos barulhentos: o heavy metal ou o punk.

O conjunto de bandas que surgiu no final dos anos 1980 e início dos anos 1990 de Seattle refutava completamente a afiliação ao movimento metal, onde também estão incluídos grupos como os Soundgarden, que chegaram a fazer tour com os Pantera, ou Alice in Chain, mesmo tendo começado como uma banda de glam-metal.

Este movimento recusava ser comparado às bandas de metal que eram consideradas misóginas, como os Poison ou os Motley Crue, e a sua atitude de durão, preferindo falar sobre as suas debilidades, com o consumo excessivo de drogas ou da exclusão da sociedade, ou dar concertos enquanto adornavam vestidos, algo que fazia parte da sua mensagem pró-feminismo.

O termo punk, com que estes grupos mais se identificavam, era igualmente questionável. Mesmo que alguma da agressividade e liberdade criativa estivesse presente em algumas faixas, nem todas as músicas dos Nirvana eram rápidas descargas de acordes, faixas como ‘About a Girl’ apresentavam uma estrutura mais convencional e uma certa sensibilidade pop, que mais depressa se aproximava de uns Beatles “musculados” do que dos Black Flag (aliás, a música foi criada depois de Cobain passar uma tarde inteira a ouvir o disco Meet the Beatles!).

Os Nirvana e Kurt Cobain viviam neste limbo, a vontade de criar prolificamente canções, enquanto ambicionavam tornar-se um sucesso e alcançar uma estabilidade financeira. 

Foi com este mindset que os músicos se atiraram a Nevermind. Os portões começavam a abrir-se para as bandas alternativas e independentes depois do sucesso de grupos como os Pixies ou os Sonic Youth, que tinham começado a trabalhar com uma grande editora, a Geffen Records, que, mais tarde, viria também adotar a banda de Seattle.

O disco começou a ser preparado no início de 1990, ainda na editora Sub Pop, com o provocativo título Sheep, mas Cobain estava com dificuldades em completar as letras e o grupo não tinha certeza sobre que músicas deviam fazer parte do alinhamento final do disco.

Mas estes não eram os únicos problemas nos Nirvana, que, nesse mesmo ano, depois da saída de Chad Channing, estavam sem baterista. 

A solução surgiria através de Dave Grohl, na altura baterista da banda de hardcore Scream e, atualmente, mais conhecido por ser o líder e fundador dos Foo Fighters, que, por intermédio de Buzz Osbourne, vocalista dos Melvins, uma das maiores influencias de Cobain, faria uma audição para a banda de Seattle e, devido ao estilo físico e bruto de tocar bateria, acabou por integrar o alinhamento da banda.

“Acredito que eles precisassem de alguém que tocasse de forma mais agressiva que todos os outros e que não estivesse preocupado com grandes floreados”, disse o baterista à revista Rhythm, em 1993. 

Efetivamente, Grohl era a última peça do puzzle que faltava para completar Nevermind – “ele era alguém que podia ajudar os Nirvana a chegar ao próximo ‘nível’, escreve a Louder, e, em estúdio, apesar de ainda estar a interpretar algumas partes de Channing, a identidade do novo baterista ajudou a banda a criar as 13 músicas que iriam mudar gerações.

 

Poemas desconstruídos, sátiras e malhas

Ao pensar em Nevermind é quase impossível não surgir como um relâmpago a guitarra que introduz ‘Smells Like Teen Spirit’, música cujo título foi inspirado por um grafiti feito por Kathleen Hanna, pioneira do movimento riot grrrl e vocalista de Bikini Kill e Le Tigre, que escreveu na parede de uma igreja “Kurt cheira a Teen Spirit”. Esta mensagem foi uma epifania para o vocalista dos Nirvana que, na altura, não fazia ideia de que Teen Spirit era o nome de um desodorizante para jovens adolescentes.

Recordar só esta música é, no entanto, um grande erro. Nevermind é um ambicioso projeto repleto de músicas grandiosas ao longo dos seus cerca de 50 minutos.

Após o icónico hino do grupo, surge uma das letras mais satíricas assinada por Cobain, ‘In Bloom’, música dedicado a todos os fãs que se começaram a interessar pela banda apenas quando esta começou a ficar famosa. 

“He’s the one who likes all our pretty songs / And he likes to sing along and he likes to shoot his gun / but he don’t know what it means”, é o refrão da música, um retrato dos fãs “machões”, o tipo de pessoa que Kurt odiava, escrito de uma forma propositadamente contagiante para obrigar as pessoas que estavam a ser criticadas a cantar sobre elas próprias.

Devido ao final trágico dos Nirvana ou a seriedade e temática pesadas de algumas das suas músicas, é fácil esquecermo-nos que o grupo tinha um sentido de humor bem apurado.

O disco também está cheio de canções estranhas, como é o caso de ‘Lithium’, nome retirado de um medicamento indicado para bipolares, que serve evitar as recaídas das depressões ou da fase de euforia, o que ajuda a explicar as letras repletas de contradições e alusões a doenças mentais: “I’m so happy ‘cause today I found my friends, they’re in my head”.

As contradições e letras que, aparentemente, podem parecer desprovidas de sentido, Cobain utilizava na sua escrita a técnica de corte, popularizada por um dos seus escritores favoritos, William S. Burroughs, com quem chegaria a colaborar numa música spoken-word narrada pelo escritor, é algo que ajuda a criar a sensação de alienação para com os seus pares e a sociedade.

“As minhas letras são totalmente recortes”, citou o crítico musical Jim Derogatis, que entrevistou o falecido músico, num texto de 2001. “Utilizo versos de vários poemas que escrevi e vou construindo a partir do tema que concebi, mas, às vezes, nem eu consigo perceber o significado da minha canção”. 

Esta sensação é uma das razões que torna ‘Come As You Are’, terceira faixa de Nevermind, para além da incrível linha de guitarra, que utiliza um efeito chorus que parece que Cobain está a tocar a música dentro da piscina que ilustra a capa do disco, uma das músicas que melhor ilustram o espírito dos Nirvana.

“Come as you are, as you were / As I want you to be / As a friend, as a friend / As an old enemy”, um intimidante convite que nos obriga a refletir sobre quem realmente somos e quem queremos ser aos olhos dos outros. 

Em termos sonoros, ‘Come As You Are’, também é um bom exemplo daquilo que Nevermind pretendia ser, um ambicioso exercício que não poderia ser catalogado como heavy metal, punk ou uma música de puro rock comercial que passaria numa rádio popular.

Reza a lenda que Cobain não estava satisfeito com a qualidade final de Nevermind, considerava o disco demasiado pop e acessível. Para tal, convidou o produtor Andy Wallace, que tinha trabalhado com as lendas do trash metal Slayer no seu disco Reign in Blood ou South of Heaven, cuja mudança no som agradou todos os membros da banda, um sentimento que só viria mudar depois do disco começar a vendar milhões de cópias, com o vocalista a confessar sentir-se “embaraçado” pelo produto final.

“É uma mistura perfeita de um som limpo e simpático com uma produção inocente”, disse Cobain ao biografo Michael Azerrad. “Pode ser extremo para pessoas que não estejam habituadas a este tipo de som, mas eu, pessoalmente, considero um bocado foleiro”.

Mas, honestamente, que outra opinião contraditória se podia esperar de um homem que cantava em ‘Stay Away’ “rather be dead than cool”.

 

A herança de Nevermind

O segundo álbum dos Nirvana viria a ser um sucesso esmagador. Apesar de, inicialmente, apenas terem sido impressas 50 mil cópias por parte da editora, já foram vendidas, em todo o mundo, mais de 30 milhões.

O trabalho imaginado por Kurt, Krist e Dave foi responsável por finalmente chutar Dangerous de Michael Jackson da tabela da Billboard e por colocar um fim ao sucesso do glam metal.

“O meu manager pediu-me para me sentar – estava nos meus trintas”, recorda Desmond Child, escritor de hits como ‘I Was Made For Lovin’’ You dos Kiss ou ‘Livin’ on a Prayer’ dos Bon Jovi, ao Los Angeles Times. “Ele disse-me: ‘basicamente, estás acabado. Fiquei surpreendido, com a minha idade?”, confessou o compositor, comparando ainda o video-clip de ‘Smells Like Teen Spirit’ a “Elvis Presley a ver os Beatles na TV”.

No entanto, já sabemos como a história de aclamação e fama dos Nirvana terminou. A banda ainda gravou o seu aclamado terceiro disco, In Utero, mas a popularidade e o sucesso foram demasiados para os seus membros. 

Krist afundou-se no álcool, o próprio confessou que bebia três garrafas de vinho tinto por noite, e Kurt mergulhou na heroína.

Apesar de nunca ter escondido que desejava ser popular e bem-sucedido, Kurt nunca quis ter de lidar com os problemas que o estrelato acarretava, sentia-se um hipócrita que tinha traído as suas filosofias antissistema. 

A sua morte chegava no dia 5 de abril de 1994 com uma carta de suicídio onde anunciava “it’s better to burn out than to fade away”, citação retirada da música ‘My My, Hey Hey (Out of the Blue)’, de Neil Young. 

Anos depois da sua morte, o legado de Cobain continua presente de diversas formas, seja pela prevenção que o seu trágico fim levantou entre músicos, pelo seu estilo que ainda é imitado por adolescentes que insistem em usar camisas de flanela ou em comprar os óculos de sol brancos que este utilizou em tantas sessões fotográficas e, claro, na música.

O fim dos Nirvana abriu a oportunidade para inúmeras bandas independentes e alternativas, como os Melvins ou os Flaming Lips, receberem orçamentos e propostas bastante lucrativas por parte de estúdios gigantes que queriam encontrar a “próxima grande cena” e permitiu que muitas destas bandas, no final dos anos 1990, gravassem as suas obras primas. 

Claro que esta busca nem sempre produziu resultados que dignificassem o nome dos seus antecessores, nomeadamente o movimento que ficou conhecido como pós-grunge, onde estão incluídos bandas “controversas” como Nickelback, Creed ou Puddle of Mudd, que aproveitaram o vazio deixado pela banda liderada por Kurt Cobain e pelo crescente sucesso de bandas como Pearl Jam e Soundgarden para poderem criar uma versão mais atenuada e comercial deste estilo musical, cuja única semelhança era a estrutura musical baseada na guitarra limpa e distorcida, as vozes arranhadas e as camisas de flanela.

Este estilo musical, eventualmente, acabou por cair em desuso e mesmo tendo deixado uma mancha no legado do movimento iniciado em Seattle e protagonizado pelos Nirvana, as músicas deixadas por este grupo continuam a ecoar nas novas gerações e até em diferentes estilos musicais, Jay-Z e Justin Timberlake samplaram ‘Smells Like Teen Spirit’ na música ‘Holy Grail’ e o rapper Post Malone chegou a fazer um concerto tributo à banda durante a pandemia.

“A minha mente não resistia a este tipo de música”, confessou Will Toledo, líder de Car Seat Headrest, uma das mais bem sucedidas jovens bandas de indie rock, à Spin. “No sétimo ano comprei a compilação dos maiores êxitos da banda, depois aventurei-me no experiencialismo do Incesticide, na poesia e produção crua do In Utero e na amostra da energia criativa que é a compilação de trabalhos não editados que é With the Lights Out. Para mim, estes trabalhos redefiniram o que a música podia ser e o Nevermind é a prova que isso pode tudo ser resumido num trabalho único simples, poderoso e coerente”, explicou o músico.

“Sinto que as músicas do Kurt vão ser recordadas muito depois da sua fama e da sua breve presença nas tabelas pop”, disse o biografo do músico, Charles R. Cross, e ex-editor do jornal de música de Seattle, The Rocket. “As suas músicas foram escritas com tanta emoção e risco que irão continuar a significar algo para as gerações futuras. Continuo a ser surpreendido pela quantidade de jovens leitores que continuam a ler esta biografia [Heavier Than Heaven]”, disse Cross.

Seja em guitarras distorcidas por um pedal Big Muff para imitar o som do guitarrista, a imitar a sua voz rouca ou apenas a usar uma camisa de flanela ou uma t-shirt do Daniel Johnston, uma pequena parte de Kurt Cobain vai continuar a viver dentro de nós durante muito tempo.