António Leão. “Corremos o risco de ter uma pandemia de outras doenças a seguir à covid-19”

António Leão. “Corremos o risco de ter uma pandemia de outras doenças a seguir à covid-19”


O diretor-geral da Lilly Portugal e vice-presidente da APIFARMA considera que o subfinanciamento da saúde “é crónico”.


O início do seu percurso académico decorreu na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa. Tinha como principal objetivo tratar dos animais?

Vamos construindo o nosso ser e aquilo que somos através da nossa experiência. Esta ideia da Medicina Veterinária sempre me acompanhou ao longo da minha vida de estudante, era muito clara. Por vezes, quando nos aproximamos da altura de escolher um caminho universitário, não sabemos bem aquilo que queremos, mas eu sabia. Todos aqueles testes de orientação profissional coincidiram. Neste curso, como noutros, temos vários percursos. Nunca quis estar apenas ligado à prática clínica, mas sim à inovação e à investigação. Não me interessava muito tratar de pequenos e grandes animais constantemente porque aquilo que me apaixonava era ligar as duas vertentes. Daí, passei pelo Laboratório Nacional de Investigação Veterinária (LNIV), foi o passo natural que aconteceu a seguir. Foi perfeito. Fiz clínica no princípio.

E gostou?

Sim, mas não estava descansado porque tinha o "bichinho" da inovação. Logo que abriram as vagas para o LNIV, acabei por entrar e adorava aqueles professores. Conhecíamo-nos bem e, por isso, foi extremamente enriquecedor. É uma época em que somos particularmente permeáveis a estes projetos que abracei desde o primeiro momento. Havia toda uma confiança que se traduziu no começo de uma vida profissional da qual guardo excelentes memórias. E surgiu a oportunidade da indústria farmacêutica.

Quando entrou na Lilly Portugal em 1989, como sales & marketing coordinator na área da saúde animal.

Exatamente. Já eu tinha de novo o melhor dos dois mundos porque fazia este apoio técnico-científico a toda a organização da empresa, muito virada para os animais de produção industrial e pouco para os de companhia, e também tinha a possibilidade de trabalhar os produtos, apanhá-los em primeira mão, vê-los nascer no mercado. As coisas foram acontecendo de forma natural. Uns três, quatro anos depois estava a gerir as operações em Portugal e percebi que era pouco porque precisava de conceitos de gestão.

E em 1995, assumiu a posição de marketing manager para o centro e leste Europeu e esteve em Viena. 

A área da inovação está muito ligada ao saber, à curiosidade constante que me acompanha e que eu estimulo. Não podemos deixar de progredir do ponto de vista técnico-científico porque as coisas são verdadeiras enquanto alguém não prova o contrário. Estar de perto do saber, especialmente em áreas que complementam a minha função, levou a que fizesse três pós-graduações: uma em Marketing, outra em Finanças e a última em Business Administration and Management. Sempre quis procurar soluções novas para problemas novos, pois, na maior parte das vezes, temos respostas que não nos levam a lado nenhum. Também estive num MBA da Católica, mas obrigava-me a ter um tempo que não tinha e frequentei apenas o ano curricular. Aquilo que me importava era aprender, não ter um currículo académico. Por isso é que, hoje em dia, quero garantir que os nossos colaboradores estudam: temos pessoas em diversos ciclos de estudos que recebem apoios financeiros e também em termos de flexibilização horária.

Para que não haja uma estagnação do conhecimento.

É fundamental que isso não aconteça. Quando x progride, y percebe que também consegue. Esta dinâmica tem dado bons frutos, o feedback é sempre muito gratificante. Isto porque, quando há uma ajuda, existe um compromisso e as pessoas entendem que não é algo para se ir fazendo, mas sim para fazer. Para além do esforço financeiro, a dedicação pessoal também está em jogo. As pessoas curiosas aprendem muito melhor.

Porque se questionam mais?

Claro. O status quo não nos agrada. De que vale permanecermos sempre iguais? Tentamos evitar isso a todo o custo. Por isso é que fui para Viena. Fui com a família, de armas e bagagens, como se costuma dizer. O meu segundo filho nasceu em Portugal, mas aprendeu a andar e a falar na Áustria. Estive lá ligado ainda à saúde animal e, algum tempo depois, surgiu a oportunidade de voltar a Portugal e enveredar pela medicina humana. Havia outras possibilidades, por exemplo, no Japão, mas tomei a minha decisão. 

Qual foi o principal motivo?

O mercado da saúde animal não é muito grande. 

O facto de ter passado por diversos cargos levou a que fosse um gestor mais qualificado?

Acho que a nossa vida vai sendo construída pelas experiências que vamos tendo. Quando estava na faculdade, se me perguntassem se a minha vida passaria pela medicina humana, creio que não diria que sim. Mas a oportunidade surgiu. Nas multinacionais, há uma vantagem: sempre permaneci nesta companhia, mas fiz muitas coisas diferentes e penso que foi isso que me enriqueceu. Ajudou-me a aceitar e valorizar a diferença. Como é que se constroem e lideram equipas? Não com gente igual, mas sim diferente. É da diferença que nasce a discussão, a inquietação e a necessidade de crescer. Podem ser homens, mulheres, de género indefinido, não é isso que me preocupa, mas sim a forma de pensar. Quero que sejam indivíduos com estruturas e processos de decisão diferentes. Tudo aquilo que podemos fazer, em Gestão, é ter sucesso através das pessoas. E isso ajudou-me a construir melhores equipas, mais produtivas e sólidas, mas igualmente a perceber que as pessoas não reagem todas aos mesmos estímulos e têm necessidades díspares. Mas são elas que constroem as companhias. Este edifício, amanhã, é outro qualquer. Que diferença faz? São os trabalhadores que importam. Seria uma pessoa menos eficiente e tolerante se tivesse feito sistematicamente a mesma coisa. Estaria formatado para uma determinada forma de pensar. Costumo dizer, quando estamos em reunião, que se não discutirmos, não fico satisfeito.

Quer que haja um brainstorming até chegarem a um consenso?

Nós, portugueses, somos muito vivos nas discussões. Empenhamo-nos, falamos alto, interrompemos. Implica uma participação que nos é muito querida e penso que isso nos valoriza enquanto povo. Não me admira absolutamente nada que a vacinação esteja a correr tão bem: por vezes, arrancamos mal, mas fazemos as coisas bem. Podemos demorar muito no debate, programamos pouco e não nos preparamos adequadamente, temos uma forma de implementar um pouco arcaica, mas empenhamo-nos mais. Não ficamos calados. E é isto que procuro. Os perfis iguais não acrescentam nada. As equipas de sucesso ultrapassam os seus objetivos e há uma receita para fazê-lo: não é única, mas tem sempre ingredientes comuns como o diálogo. Quando vejo que algo corre mal, falo imediatamente. 

No artigo “Inovação para fazer face aos desafios”, publicado no site da Hays, escreveu que “o acesso dos doentes à inovação crescente que tem chegado à saúde, é um dos grandes desafios de hoje e de um futuro próximo”, sendo que “começamos a ver em Portugal uma maior, ainda que tímida, disponibilização desta inovação, porém é necessário tornar o acesso mais célere e mais ágil”. O que falta fazer para que os doentes tenham acesso, de forma igualitária, a esta inovação?

A equidade é um valor essencial. Se me perguntarem se os doentes portugueses são tratados de forma pior do que os seus congéneres europeus, digo que não. Acho que temos um Serviço Nacional de Saúde sólido e profissionais excecionais, temos é de melhorar as nossas valências. O SNS tem dado provas de resiliência, ainda mais, durante a pandemia. Para melhorarmos, precisamos de ver aquilo que os países mais eficientes fazem. Isto dá-nos um pano de fundo para, posteriormente, sabermos que rumo seguiremos. 

Quais são os grandes exemplos?

Não vou apontar nomes de países porque acho que as mesmas soluções poderiam não funcionar em Portugal. É em x condições que y país faz melhor. Aquilo que temos de entender é quais são os determinantes que devem ser comuns. Uma inovação que chega ao mercado é algo positivo, um investimento, nomeadamente, as novas tecnologias na área dos medicamentos. É uma oportunidade de melhoria e não um custo. Enquanto isto não ficar claro, vamos ver a saúde como um gasto e este é um mau princípio. Isso é algo bem mais real.

O verbo faz toda a diferença. Se os portugueses ouvirem "investir" em vez de "gastar", por exemplo, no discurso da classe política, sentem-se melhor.

É claro. E esse investimento traz várias responsabilidades: dos decisores políticos que tem a ver com um correto financiamento que não está a acontecer, até porque a saúde está subfinanciada nas palavras dos próprios políticos. Tivemos ministros que saiam da Assembleia, no dia da aprovação do Orçamento de Estado, a dizer "Este é um orçamento que vamos gerir durante o ano respetivo, mas sabemos, à data de hoje, que é insuficiente". Portanto, é crónico. Mas não é somente a correção desse problema que trará uma melhor saúde aos portugueses: é preciso inovar. Posso dar um exemplo relativamente a esta crise que vivemos, espero eu, durante não muito mais tempo: desenvolvemos uma série de novas ferramentas que não faz sentido acharmos que vão desaparecer. 

Quais?

Um medicamento, por norma, demora 10-15 anos a chegar ao mercado desde que a molécula é descoberta. No caso da vacina contra a covid-19, demorou menos de um ano. Isto parece impossível, mas não é: todos trabalharam juntos, daí o valor acrescentado. Cada um desempenhou a sua função da melhor forma que soube. Um doente com Alzheimer, por exemplo, não pode esperar anos a fio para ter determinado tratamento.

Atualmente, existem poucos fármacos para combater a doença. A Memantina, a Rivastigmina, o Donepezil, a Galantamina e pouco mais.

Mas não pode ser assim. Isto é crítico. Não podemos explicar às pessoas que as soluções já existem mas que podem demorar oito anos a ser validadas. Não estou a dizer que as decisões têm de ser positivas, até podem ser negativas, mas tem de haver uma. O nosso sistema é resiliente e bom, mas precisa de ser mais célere. Estas evoluções têm de chegar mais cedo aos doentes. E não passa só pelo Infarmed: são as companhias farmacêuticas, os hospitais… Todos têm de trabalhar em conjunto. Caso contrário, o hospital vai empurrar o problema para a frente porque não tem dinheiro e existe uma bola de neve.

Qual é a solução?

Temos de incorporar aquilo de que melhor alterámos durante a pandemia. Progredimos aquilo que, provavelmente, progrediríamos em muitos anos. Não estou a dizer que tudo deve ser aproveitado, mas não podemos dar-nos ao luxo de desperdiçar a maior parte. Outro exemplo que me parece muito característico: desde o surgimento do novo coronavírus, houve uma união entre a indústria farmacêutica, os armazenistas e os hospitais para que os doentes com doenças crónicas recebessem a sua medicação em casa ou na farmácia ou hospital mais próxima/(o). Não podemos voltar ao modelo que tínhamos em que o doente, todos os meses, ou quase, faz 300 quilómetros para cada lado para ir buscar os fármacos. Isto não faz sentido nenhum. Acima de tudo, o doente deve estar no centro. Relativamente à forma como estamos a vacinar as pessoas: colocámos as pessoas com aplicações, mensagens frequentes, transmitimos a informação, houve toda uma campanha para que pudessem decidir conhecendo os factos, envolvemos a classe médica, a científica, a política… Os doentes são vacinados perto de casa, fazem testes dentro e fora de carros… Porquê? Porque a logística foi otimizada. O doente está realmente no centro do sistema de A a Z. O centro deixou de ser se eu poupo mais ou menos um bocadinho se o doente não se vacinar. A campanha poderia ser uma coisa completamente diferente se optássemos por otimizar os recursos que são alocados. Se calhar, íamos construir, na cidade de Lisboa, dois ou três centros e as pessoas acumulavam-se lá. Quem diz em Lisboa, diz Porto, Leiria, Setúbal, etc. Não foi esta a perspetiva, mas sim a dos benefícios evidentes. A inovação terapêutica traz pontos positivos à economia também. Ficou claro, neste controlo da pandemia, quão importante é a saúde. Não há economia que resista a um vírus como este. Quando fazemos pesquisa primária, e fazemo-lo com alguma frequência, e há um nível de desemprego elevado, as pessoas posicionam o emprego em primeiro lugar na lista de prioridades e, imediatamente a seguir, vem a saúde. E se, em determinada altura, a questão do emprego não for tão problemática, a saúde vem em primeiro lugar. As pessoas perceberam há muito aquilo que os políticos estão agora a concluir.

A dinamização de todos os recursos, no âmbito da covid-19, tem a ver com o facto de todos sermos afetados. Como a Alzheimer não atinge toda a população, não se mobilizam tantos meios.

Precisamente. Mas se virmos a saúde de uma forma mais holística, percebemos que cada doente tem as suas necessidades. Aquilo que nos une é a gestão da saúde. Temos de aprender com os melhores, não simplesmente copiar os modelos. O sistema não pode passar pelo número de medicamentos, consultas ou cirurgias multiplicado por um preço. Isso já não funciona. Aquilo que o doente quer saber aquilo que o medicamento lhe dá, se melhora a sua qualidade de vida, não o custo do mesmo. Temos todos de trabalhar para a sustentabilidade: o Estado, os prestadores, a indústria farmacêutica… Outro problema que identifiquei é que há doentes que saem das consultas sem entender a terapêutica que lhes foi prescrita.

Há pessoas que não sabem sequer ler. De acordo com os Censos 2011, quase meio milhão de pessoas são analfabetas em Portugal. Como é que podem perceber a medicação que devem tomar?

E ainda há a importância de a tomar bem, os doentes ficam com essa responsabilidade. Temos toda uma cadeia de valor que culmina numa ação de um médico e uma do doente. A questão do estatuto do cuidador informal é muito crítica neste aspecto porque é fundamental que os doentes cumpram aquilo que lhe é pedido porque, de outro modo, esta cadeia resulta em nada ou muito pouco. E gera o quê? Desperdício. Um doente a quem é diagnosticada uma doença, sofre um primeiro choque, mas depois tem de cumprir aquilo que o saber de hoje recomenda. Por exemplo, se tiver uma gripe sazonal e o médico disser que tenho de tomar um medicamento durante cinco dias, e ao fim de três dias sentir-me melhor e parar de o fazer, uns sete ou oito dias depois vou recair. Não será uma nova patologia, mas sim a mesma. Isto implica perda para mim e para o sistema. Temos de melhorar também como doentes. 

Mas a literacia em saúde parece ser insuficiente, apesar de um plano ter sido implementado em 2019, pelo Governo, pelo Serviço Nacional de Saúde e pela Direção-Geral da Saúde para mudar este panorama.

Para as pessoas que têm, atualmente, 70 ou 80 anos é um desafio aumentar a literacia em saúde. A curiosidade não tem limite. Infelizmente, é muito difícil modificar esta realidade. Enquanto portugueses, centramo-nos nos projetos de curto prazo: os de médio e longo prazo são pouco acarinhados por muito importantes que sejam. Esta questão da literacia é fundamental.

Quais são os passos principais a serem dados?
Sou apaixonado pela nova geração. São pessoas brilhantes, excecionalmente bem preparadas que têm de entrar no mercado de trabalho. Não podemos "exportar" estas pessoas. 

A fuga de cérebros não é recente.

Pois, mas temos gente muito promissora que vai construir o Portugal de amanhã. Estas pessoas têm de ter condições para ficar no seu país. Como é que vamos garantir que serão contratadas? Boa parte das políticas deviam ser viradas para estes temas e não para aqueles que são retóricos. Não quero apontar nomes de países para não centralizar a conversa, mas há nações que atraem os nossos cérebros e as pessoas não emigram apenas por causa dos salários. Há outros pontos como a flexibilização dos horários e a compatibilização do emprego com os estudos. Se falarmos com um médico que tem uma formação mais prolongada do que outros profissionais, vai terminar a sua especialidade com mais ou menos 31 anos. Quando é que estas pessoas têm filhos? Exatamente nesta idade. Têm como prioridade compaginar a sua vida pessoal com a laboral. Não me espanta absolutamente nada que o ordenado não seja o motivo primordial para sair do país. Se trouxer massagistas para a Lilly, os trabalhadores podem ficar mais satisfeitos, mas não é o conhecimento que vai aumentar. Se não temos recursos para tudo, temos de prioritizar. Em Portugal, queremos agradar a todos, mas temos de distinguir aquilo que é crítico daquilo que não é. E manter os mais jovens em Portugal é, efetivamente, urgente. 

No artigo anteriormente mencionado, que remonta a 2019, citou a revista Forbes, explicando que a mesma apontava oito tendências na saúde para o respetivo ano, sendo elas sintetizadas no crescimento dos modelos de pagamento por resultados em saúde e na “crescente digitalização da saúde”. Como é que estes modelos podem ser concretizados?

Os países desenvolvidos, que têm um sistema nacional de saúde bem implementado e em que as pessoas confiam, têm de melhorar. Esta história da autoflagelação não me agrada muito. É inevitável que estes modelos sejam sustentáveis. Temos uma população envelhecida: as pessoas vivem durante mais tempo e, simultaneamente, temos menos nascimentos por mulher. É fácil dizer isto, mas tem uma importância muito grande nas políticas. Do ponto de vista da esperança de vida à nascença, em 1974, era de 68 anos. Em 2000, já era de 76 anos. Há dois anos, era 81. Isto é bom, não é um problema, mas sim um desafio. 

O desafio de garantir a qualidade de vida.

As pessoas têm de ter vidas mais ativas e preenchidas. Estamos ao nível dos melhores em relação à esperança média de vida, mas não à qualidade no final de vida. E porquê o fim? Aos 65 anos, em 1974, uma pessoa poderia viver mais 13 anos. Em 2000, 17, e, em 2019, 20. Com esta idade, ainda temos 20 anos de esperança de vida, em Portugal, hoje. Isto leva-nos a um tópico muito importante: é preciso que a saúde mental esteja no centro das preocupações das políticas públicas. Não podemos ter uma legião de gente a viver sozinha nos últimos anos de vida. É exatamente o mesmo que verificámos no âmbito da covid-19 e que se pode medir pelo aumento do consumo de ansiolíticos e antidepressivos. 

A Lilly é responsável pela comercialização de vários medicamentos, entre eles um antidepressivo que, em 2020, era prescrito a 40 milhões de pessoas. Em junho de 2020, Portugal era o quinto país da OCDE que mais consumia ansiolíticos e antidepressivos.

Não temos de nos preocupar com o consumo, mas sim com as causas do mesmo. O isolamento das pessoas é gravíssimo. As autarquias têm um papel essencial e devem dinamizar as populações e tirar as pessoas de casa. Principalmente, as idosas. Se isto não acontece, há um dominó que se arrasta. A saúde mental não tem sido uma prioridade, mas tem de ser. Por outro lado, em 1974, tínhamos 6.4 pessoas em idade ativa por cada pessoa acima dos 65 anos. Em 2000, eram 4.2 e, em 2020, são 2.9. Há impactos brutais que já estamos a sentir. Foram criados rácios para que a idade da reforma aumente e ainda bem. Não sei se esta visão das coisas é muito popular, mas não vejo qual é o interesse que as pessoas têm em deixar de trabalhar mais cedo. Associar a reforma a uma pensão mensal que deixa de estar vinculada a uma atividade profissional é profundamente errado e é gerador de problemas. As companhias deviam ter a possibilidade de continuar a integrar estas pessoas nas equipas, por exemplo, diminuindo a carga horária. O conhecimento seria transmitido aos mais jovens. Desperdiçar este capital é mau para as empresas e, por outro lado, não aguentam esta despesa. Devem ser encontradas fórmulas interessantes em que isto seja funcional e atrativo. Há uma coisa na nossa sociedade que me escandaliza um pouco: não vemos manifestações de pessoas que não estão empregadas. Nas gerações mais jovens, há pessoas qualificadas que não trabalham. Devem protestar e a sociedade tem de as ouvir.

Isto significa que os modelos tradicionais podem ser alterados pelos mais novos?

Não devemos temer esta era da inteligência artificial. Essas visões catastróficas do big data e da utilização indevida dos dados… É claro que tudo tem de ser regulamentado e respeitado, mas, a partir daí, a inteligência artificial – que já entrou nas nossas vidas e está presente nos mais pequenos detalhes – tem de ser posta ao serviço das pessoas. A digitalização ajuda-nos a ser mais eficientes. 

Mas, por exemplo, a aplicação StayAway Covid nunca foi muito instalada pelos portugueses. No início do mês, só 20% dos utilizadores mantinham-na nos telemóveis.

Foi realmente um fracasso. Pareceu-me construída de cima para baixo. Se colocassem o doente no centro, isto teria sido muito mais fácil. Aconteceu tudo por imposição e chegou-se a ponderar a obrigatoriedade da instalação. Temos de ouvir as pessoas. Houve uma altura que me pareceu crítica e tinha tudo para não correr bem, mas penso que se contornou o problema: a vacinação dos mais jovens. Foi bom falar com transparência. O nosso plano de vacinação, em Portugal, tem vacinas que são essencialmente úteis mais tarde. A professora Maria do Céu Machado, uma pessoa que teve uma responsabilidade política muito importante, disse claramente que não estávamos a inovar na proteção dos cidadãos. Temos taxas de vacinação gigantes e isto é algo com que temos de aprender. Nem todo o digital é bom: tem de facilitar a vida e não a complicar. Não estou a insinuar que a aplicação era boa ou má, mas não foi bem recebida. Em gestão, não podemos criar regras que não são auditáveis, pois isso descredibiliza quem as implementa. Aqui está em jogo a equidade como noutros pontos.

Pode exemplificar?

A legislação portuguesa permite que um cidadão se vá tratar a qualquer zona do país. Isso não nos passa pela cabeça porque não precisamos. A inovação só é inovação quando chega à vida das pessoas. Até lá, é uma descoberta ou um desenvolvimento. O modelo, em Portugal, é muito burocrático. Temos o Infarmed com pessoas competentes, mas tudo demora demasiado tempo. E eles próprios deverão estar de acordo. Raramente conseguimos cumprir os prazos legais porque é tudo intrincado. Há uma forma de aceder de à inovação: através dos Programas de Acesso Precoce (PAP). Percebendo que o processo é moroso, criaram-se processos mais céleres. O problema destes mecanismos é que continuam a ser burocráticos e os critérios de avaliação são estreitos. Em oncologia, por exemplo, ter um PAP é algo que devia ser natural. Uma pessoa vai regredir e, depois, utilizar o medicamento? Os doentes não podem esperar dois anos por uma inovação terapêutica. Um critério usual na aplicação de um PAP é que não pode haver um produto já aprovado para aquela situação porque, senão, esse será o primeiro a utilizar. E se houver, quando deixar de funcionar, o PAP é considerado. 

Em março, a jovem Constança Braddell, de 24 anos, fez um apelo nas redes sociais: precisava de um medicamento, urgentemente, para sobreviver à fibrose quística. O Infarmed veiculou que existia a possibilidade de acesso ao medicamento, da iniciativa do hospital, através de Autorização de Utilização Especial (AUE), ao abrigo de um PAP. 

Concordo com o modelo em que os hospitais são responsabilizados pelas suas decisões, isto é válido, mas devia haver limites. Não é razoável que os doentes de determinada região tenham acesso mais rápido a determinado medicamento do que os restantes. Há uma autonomia hospitalar que é salutar, mas não à custa dessas decisões: as terapêuticas foram avaliadas anteriormente pela Agência Europeia do Medicamento e pelo Infarmed, a sua eficácia e segurança estão comprovadas. A Apifarma também tem de fazer um trabalho melhor, as associações de doentes têm de os alertar para estas situações, para que os políticos entendam que há coisas inaceitáveis. 

O Acordo Governo APIFARMA, assinado em julho, pode ajudar a contrariar este problema? No vosso site oficial, é possível ler que o mesmo “prova a disponibilidade da Indústria Farmacêutica para salvaguardar a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS), para que os portugueses tenham acesso aos medicamentos e às tecnologias de saúde mais inovadoras”.

Não me lembro de um ano em que não tenhamos assinado este acordo. A APIFARMA tem de trabalhar sobre estes valores: a equidade, o acesso atempado dos doentes aos medicamentos inovadores, as questões relacionadas com os direitos de propriedade intelectual e que nem se colocam em países desenvolvidos e, claro, com a sustentabilidade do sistema.

Constança acabou por morrer em julho. O facto de pessoas como ela perderem a vida na luta contra diversas patologias prova que ainda temos um percurso para fazer ou, por outro lado, incentiva a indústria farmacêutica a fazer mais e melhor e a colaborar com as restantes entidades, como o Infarmed e o Governo?

Foi um caso que tocou toda a gente. Foi dramático e não acabou bem, mas temos de aprender e procurar fazer melhor, é isso que lhe devemos. Aquilo que me preocupa é que o sistema não foi suficientemente célere. E permaneceu ou não permaneceu igual? Se nada mudou, fico ainda mais apreensivo. Se algo mudou, e se este caso resultou numa melhoria, este óbito serviu, pelo menos, para deixar o mundo melhor. Acho que a família da Constança também sente isto: é horrível quando sentimos que as nossas perdas aconteceram em vão. Quando sabemos que acontecerá o mesmo a outras pessoas. É inaceitável que haja tanta precariedade na saúde. As decisões técnico-científicas estavam tomadas e o medicamento foi selecionado para esta doente pela ciência. Como é que há regras que lhe vedaram o acesso ao mesmo? Não quero saber do preço, essa é uma preocupação dos políticos. A família e os amigos da Constança ficarão sempre a pensar se ela ainda estaria viva se o processo se tivesse desenvolvido mais rapidamente.

No passado mês de abril, a presidência portuguesa da União Europeia juntou em Lisboa “os principais líderes internacionais do setor da saúde, para falar da acessibilidade a estes produtos”, como se pode ler na TSF. “O objetivo, é corrigir, ou seja, perceber e corrigir os erros e falhas detetados desde o inicio da pandemia, com as cadeias logísticas de tudo o que a saúde precisa para trabalhar, desde equipamentos de proteção, dispositivos e maquinaria clínica e medicamentos e vacinas”. Têm sido estes os maiores desafios para a indústria da saúde desde março de 2020?

Em relação ao papel da saúde durante esta presidência, acho que fomos muito bem representados e houve muita atividade importante. Acerca da questão dos desafios, penso que são três. O primeiro passa pela preocupação com as questões logísticas, que esteve presente em relação ao abastecimento das farmácias e hospitais, pois existem outras doenças para além da covid-19 e estas pessoas precisam de medicamentos e não foram acarinhadas. Por outro lado, fica claramente notória a transformação digital: um médico, quando tem acesso ao perfil de um doente, devia saber quantos exames fez, onde e quando os fez… Para que nada seja repetido. E penso que tem de se capturar esta mais-valia. 

Esse processo está muito mais agilizado no setor privado.

Mas não tem de ser assim. Não podemos aceitar uma medicina a duas velocidades. O Serviço Nacional de Saúde foi a maior conquista da Revolução. Permite que as pessoas que não são bafejadas por um determinado rendimento possam ter acesso aos cuidados de que precisam. O doente não quer saber se o hospital é público ou privado, só quer ser tratado e, hoje em dia, gravita no sistema: ou conhece-o ou perde-se. Vai a um hospital que não tem uma determinada terapêutica disponível, mas está no do lado. O doente informado vai ao do lado, mas o menos informado, que provavelmente pertence a uma classe desfavorecida, será prejudicado. 

O que é que a Lilly faz para garantir que ninguém fica para trás?

Temos programas de intervenção em 51 países e já distribuímos, desde 2009, num só programa, 2.4 milhões de doses de insulina. Os nossos doentes, em Portugal, felizmente, podem ter uma vida próxima da vida sem patologia. Não é por serem diabéticos que não são ativos. No entanto, há partes do mundo onde isto não acontece. E queremos ajudar 30 milhões de pessoas até ao ano 2030. Há mais companhias a fazer isto, é uma responsabilidade da indústria farmacêutica.

E qual foi o terceiro desafio? 

Já tenho mais dúvidas sobre as consultas à distância porque têm de ser muito bem caracterizadas. Não servem para avaliar doentes, mas sim para fazer um acompanhamento. Um médico não pode fazer um diagnóstico virtualmente. Se transmitirmos a ideia de que as videoconsultas servem para poupar recursos, penso que não será o melhor caminho. Servem para otimizar recursos. Em último lugar, houve uma preocupação com todos os profissionais que estão ligados à saúde. Veem os doentes como a sua obra de todos os dias. 

Então com 14 anos, Leonard Thompson foi a primeira pessoa com diabetes a ser tratada com insulina, em 1922. 

E dá nome, hoje, ao Prémio Leonard que implementámos. Há muitas pessoas diabéticas que não atingem os objetivos terapêuticos possíveis. Só 17% dos jovens e 21% dos adultos diabéticos é que alcançam a meta definida pelos médicos. Quando isto não é conseguido, surgem complicações tardias como patologias do pé, amputações ou cegueira. É uma doença silenciosa e atinge todos, estando em larga expansão nos países desenvolvidos devido à vida que temos, que é a correr. A forma como vivemos determina em muito a nossa saúde. 

No comunicado que veicularam, acerca do mesmo, explicaram que o mesmo prende-se com o reconhecimento de projetos de excelência que se dediquem à gestão da diabetes e que apresentem abordagens inovadoras.

Serão selecionados cinco vencedores e, posteriormente, a Lilly doará 100 mil dólares, o equivalente a 84 mil euros, à Life for a Child, uma organização sem fins lucrativos que fornece acesso a cuidados, educação e medicamentos e suprimentos que salvam vidas para crianças e jovens com diabetes tipo 1 em países com menos recursos. Variadas pessoas podem concorrer desde jovens entre os 18 e os 25 anos que vivam com diabetes ou com alguém que padeça desta doença, passando por médicos, educadores e enfermeiros, entre outros. Pensamos que os conhecimentos distintos gerados por cada uma das áreas do saber levarão a que os projetos sejam mais ricos.

A insulina foi descoberta há cem anos. A nível mundial, 1,1 milhão de crianças e adolescentes (com menos de 20 anos) têm diabetes tipo 1 (IDF Atlas, 9.ª edição, 2019), sendo uma das doenças crónicas mais comuns na infância. Apesar disso, não existe um registo único para determinar quantos insulinodependentes existem em Portugal, tendo sido lançada a petição “Quantos somos com diabetes tipo 1?”, pela APDP, no ano passado. Que estratégias a Lilly implementa para combater esta doença?

Durante a pandemia, assegurámos que todos os trabalhadores estavam protegidos para continuarem a produzir as soluções injetáveis. Quando há uma crise, as pessoas perdem todas as certezas. Com a agravante de que a covid-19 é mais grave nos diabéticos e, por isso, questionaram-se muito. Por outro lado, acho que a discussão acerca da capacidade de produção de vacinas na Europa pode fazer algum sentido, mas devíamos poder confiar uns nos outros. Para produzir uma vacina, com toda a certeza, são necessários muitos fatores. Se começam a olhar para si, todos perdem. E eu não sei se é possível um único conjunto de países produzir tudo aquilo que é necessário, sendo autossuficientes. 

Nesta doença, houve uma lacuna: a diminuição das consultas do pé diabético.

Os doentes não-covid não foram devidamente acompanhados. Se um doente tem sintomas e não procura ajuda, vai acabar por ter uma patologia, qualquer que ela seja, muito mais grave, sendo diagnosticada numa fase em que será de difícil controlo. Afastaram-se dos hospitais por medo, achavam que ficariam infetados. Foram criados circuitos diferentes e, portanto, a probabilidade de serem infetados é diminuta. Como é que é possível que o número de rastreios de doenças oncológicas, de pé diabético e continuidade de outros tratamentos tenham diminuído e tenha existido uma tolerância? Está tudo bem? Os serviços concentram-se nos doentes covid-19. Concordo, mas temos de atender ao resto das patologias que não deixaram de existir. Deixámos que fosse criada uma imagem de perigosidade da ida ao centro de saúde ou ao hospital. Corremos o risco de ter uma pandemia de outras doenças a seguir à pandemia que vivemos. Podia e devia ter sido diferente.

A Lilly comercializa duas soluções injetáveis para o tratamento da diabetes. Atualmente, a quantas pessoas são prescritas estas canetas? 
Entre 100 e 120 mil pessoas, em Portugal. 

No passado mês de fevereiro, anunciaram uma nova formulação de insulina, sendo esta solução uma opção para adultos com diabetes mellitus tipo 1 e tipo 2, permitindo um melhor controlo glicémico. De que modo este medicamento difere dos restantes? O que mudará na vida dos diabéticos?
Há variados tipos de diabetes e, portanto, queremos ajudar todos os doentes. Uma única solução não se adequa a todos. 

Portugal está na linha da frente na luta contra a diabetes ou, por outro lado, há muito a melhorar e concretizar?
A APDP faz um trabalho muito recomendável que passa por gerar imensos dados acerca da diabetes, penso que este é um ponto que deve ser realçado. 

Quais são os seus principais objetivos para a Lilly e a APIFARMA?
Os objetivos da APIFARMA são os da indústria, pois é a essa área que pertencem os seus associados. Toda esta área relacionada com o acesso à inovação é primordial. Somos cidadãos europeus de corpo inteiro, não podemos aceitar como determinado que o acesso a medicamentos em Portugal seja mais tardio do que nos vizinhos. Temos de ter os olhos postos naqueles que fazem melhor. Não podemos melhorar se estivermos satisfeitos. Todos temos diversas responsabilidades, mas repito que existe um subfinanciamento crónico. Sem a o corrigirmos, não vamos solucionar outros como o da sustentabilidade. Ouve-se com frequência frases como "A cada ano investimos mais na saúde". E? Aquilo que gostava de saber é se o esforço financeiro que é feito tem crescido. Não chega crescer, mas sim crescer à medida do que é necessário. Nunca atraímos investimento por termos um clima favorável ou por sermos um país seguro: isso é importante, mas precisamos de mais. Em todas as comunicações internacionais que faço, defendo o investimento em Portugal, mas temos de ser mais amigos da inovação, alinhando os interesses da indústria com os do doente. Não podemos dizer às segundas, quartas e sextas que há inovação e mostrar as falhas às terças e quintas. Não pode haver brechas.