Francisco Xavier de Oliveira, o Cavaleiro de Oliveira, num texto da Recreação Periódica, escreveu que “no amor, como na guerra, cumprir o dever é pouco”. Palavras muito avisadas, e que deveriam estar na mesa de cabeceira de todos e de cada um, não só pela importância que têm na vida as artes amorosas e as artes bélicas, mas também porque não é só a tais lides que se aplica o ensinamento. Vale para muito mais.
Por exemplo, e indo agora ao ponto, para a transição energética, expressão algo pomposa que se crismou para abarcar tudo quanto respeita à diminuição do uso e à substituição das fontes de energia tradicionais, nomeadamente as mais poluentes, digamos assim.
Ora, está muito bem o objetivo, acho eu, embora não seja um dos que vive sob terror e tremor à la Thunberg, mas percebo a questão, sou-lhe sensível e procuro fazer alguma coisa – não suficiente, é verdade, mas alguma. E também observo, procuro saber, reflito.
E, tal como no amor e na guerra, et cetera, constato que não chega cumprir o dever, ou seja, não chegam bons sentimentos, boas ideias, grandes palavras, programas, roteiros, estratégias e vontades. É preciso, também e muito, cuidar do dia a dia, das coisas práticas, do detalhe.
O amor, a guerra e a transição energética – e tantas outras empreitadas de que nos possamos lembrar – fazem-se em grande parte nas trincheiras, e disso muito depende o seu maior ou menor sucesso.
Ora, aqui fica um desafio, que baseio num episódio de que tenho ciência direta, e não de ouvir dizer, e que creio muito ilustrativo da importância das coisinhas práticas, sob pena de a celebrada transição se ficar apenas pelo cumprimento do dever das ideias e das intenções.
Pois, experimente o caro leitor meter-se num automóvel elétrico, desses que não têm centenas de quilómetros de autonomia (que a transição energética quando nasce é para todos, e não apenas para quem tem um bólide mais moderno, mais caro e mais autónomo), e experimente sair de Lisboa, por exemplo para sudeste, percorrendo mais ou menos 170 quilómetros. Depois, diga-me quantas horas lhe levou a jornada.
Eu diria talvez umas quatro ou cinco, contando por baixo, e não é porque o automóvel ande pouco. É porque precisa de ser carregado, e só por si a operação já leva algum tempo.
Mas as quatro ou cinco horas não são tanto por conta disso, mas mais por conta de uma outra coisa: é que é o cabo dos trabalhos para encontrar um carregador e, mais ainda, um carregador que funcione, e, depois de o encontrar, por montes e vales, vamos lá ver se está livre, porque os que há, e os que há a funcionar então nem se fala, são sempre poucos – e já vai havendo algumas almas que se aventuram em automóveis elétricos, pelo que há razoável procura.
Pois é assim: nas áreas de serviço das autoestradas, até há, mas poucos e muitas vezes avariados, pelo que é preciso sair da autoestrada e andar em busca, à la recherche de um carregador que esteja apto e livre. Coisa raríssima, mas lá se encontra depois de montes e vales (que neste caso são cidades e vilas, não é o fim do mundo), carrega-se, e leva um ror de tempo – porque carregadores rápidos é ainda maior raridade. Volta-se à estrada, mais um pedaço de caminho.
Nova necessidade de carregamento. A mesma cegada – procura, encontra, avariado, desvia, busca, encontra, avariado ou ocupado, lá encontra, após mais veredas e demónios, e carrega, espera. Volta. Anda. Et cetera, e tal. E lá chega, umas horas depois, e muito desanimado com a transição energética. Dever cumprido, mas muito a custo; e o dever não basta, lá está.