O percurso académico forjou um engenheiro, mas Miguel de Carvalho não coube no molde. O canudo da Geologia depressa foi trocado pelo juvenil rolo de notas com que partia para a Figueira da Foz para comprar livros, cheio de entusiasmo e inexperiência. Dele se poderia dizer que é um livreiro em marcha, de candeias às avessas com a ideia de rotina. Não admira pois que, quando o visitámos na livraria que em 2018 abriu na Figueira da Foz, o plano de mudança de espaço estivesse já em andamento: da Rua de O Figueirense para a Rua Dr. José Jardim. A conversa que com ele mantivemos replica a oscilação que se acha no seu livro de poemas [“Neste estabelecimento não há lugares sentados”,] e que vai do negrume das crónicas nocturnas de amor e desapego às atmosferas matinais, às albas das canções de amigo. Desde 2018, o ano que Coimbra o viu partir para a Figueira da Foz, que por detrás de lombadas sem qualquer destino definido e alinhadas nas muitas prateleiras, que trabalha à secretária sob o olhar firme, tutelar de Camões, pousado em retrato numa das paredes da sala de entrada da livraria que já no início do próximo vai mudar de pouso. De Coimbra trouxe um magnetismo muito pessoal e alguns projectos culturais que lhe fazem faiscar o entusiasmo que nunca perdeu. O seu “Auto-Retrato” leva-nos à ideia dessa especialíssima tauromaquia que é a literatura, segundo Michael Leiris. Sabe circundar as palavras, as imagens, golpeás-las no momento certo.
Com os acasos, esse jogo ilimitado de possibilidades, mantém Miguel de Carvalho uma especial relação, que continua a alimentar com leituras de Breton e reflexões que partilhou com o i.
Em 2018, abriste uma livraria na Figueira da Foz, depois de mais de duas décadas em Coimbra. Em que pé estão as tuas relações com a cidade dos estudantes?
Apaixonei-me em Coimbra por uma senhora chamada Cultura, que adoeceu, definhou e morreu. Enterrei-a e não a pretendo ressuscitar. Foi a desilusão total com aquela Baixa, urbanisticamente desprezada e culturalmente a definhar. Estava apaixonado por aquele lugar, não tinha problema nenhum em ir da Figueira para Coimbra diariamente. Não me zanguei com as pessoas, desencantei-me da cidade, foi o desânimo. Deixei de a visitar. Volto a Coimbra quando me chamam para ir comprar livros, mas não é daquelas cidades onde vá à procura de livros.
Bem diferente será a relação que manténs com a Figueira da Foz. Como a descreverias?
É uma relação genética, de quatro ou cinco gerações. Nasci no Luxemburgo, mas os meus pais e avós eram da Figueira. O meu avô de Tavarede era passador de pessoas. Na altura do fascismo, levava pessoas para o estrangeiro; era, além de amador de teatro, taxista de carros de grande porte. No boom da emigração, nos anos 60, conhecia os pastores e entregava-lhes as pessoas, seguia o caminho dele e depois, do lado de lá da fronteira, apanhava-as. Os meus pais também foram numa dessas levas. Por isso fui nascer ao Luxemburgo, mas anualmente vínhamos a Portugal, porque tínhamos muito interesse em estar com a família. As viagens eram fantásticas, muito marcantes, intensas. No início da adolescência vim para a Figueira, estudei na Escola João de Barros. Mas não tenho vida social na Figueira, sou muito recolhido, tenho muita colagem para fazer [risos].
No princípio não era o livro: eram as rochas. Um ano depois de se ter licenciado em engenharia geológica, decide dedicar-se aos livros. Porquê esta viragem?
No meu curso havia cadeiras em que tinha de fazer a história da Geologia e, para apresentar relatórios e informação distinta da dos meus colegas, decidi ir directamente à fonte. A Universidade Nova de Lisboa não tinha um fundo antigo, de modo que fui para a biblioteca da Academia das Ciências e mergulhava lá naquilo que me era permitido aceder. Esse contacto com o livro como objecto, com encadernações sumptuosas, cabedal, papel encorpadíssimo (uma folha de papel podia equivaler a 16 páginas de um livro actual), tudo aquilo me atraía. Por outro lado, tinha um amigo, estudante de história da arte, que me acompanhava sempre, o Bernardo Trindade, filho de um grande livreiro, o Tarcísio Trindade. No final do curso, propus ao Bernardo irmos comprar livros.
Assim sem mais?
Sim. Éramos uma espécie de buscadores. Começámos a pôr anúncios e começaram a chover contactos, pessoas que queriam vender o seu espólio. Éramos dois jovens que pouco percebiam de livros mas com algum jeito para o negócio. Íamos de São Martinho do Porto, onde também vivi, para a Figueira com algumas notas enroladas para comprar livros dentro de um grande carrão.
Era um elemento de peso, o carro? Tinha um papel a jogar no negócio?
Sem dúvida. Um amigo da Catalunha dizia-me que é importante um livreiro ter um bom carro. Na altura não percebi porquê, mas depressa lá cheguei: causa impacto, as pessoas ficam agradadas; é a nossa sociedade de fachada, de consumo, a manifestar-se mas o certo é que funcionava. Daí que sempre me tivesse esforçado por ter carros de média-alta cilindrada [risos]. Por vezes o que se encontrava nos livros era mais importante do que os próprios livros. Acontecia.
E o que é que se encontrava? Fala-me dos teus achados.
Dinheiro, desenhos de estudantes, caricaturas, bilhetes de cinema, fotografias de desconhecidos que chego a guardar, um cigarro, datado de 1958, que diz: “lembrança da nossa primeira noite”. Tenho um arquivo onde vou guardando o que mexe comigo, o que me emociona. A peça mais forte foi a carta que um suicida deixou a um familiar, era um senhor que escrevia muito mal. Também já encontrei coisas valiosíssimas, como um selo raríssimo posto numa cinta de jornal, um D. Pedro V Cabelos Anelados com um considerável valor de mercado.
Num tempo em que anda tudo um pouco desregulado, achas que persiste ainda uma certa confusão entre livreiros, vendedores de livros em feiras, simples manuseadores de livros, alfarrabistas, antiquários? Gostas de estabelecer a diferença?
Há uma expressão em geologia que é “a ganga da rocha”, que é aquilo que não interessa de uma rocha quando é analisada à microscopia ocular. Neste meio, também há uma ganga de livreiros muito grande. Há os que compram e vendem simplesmente, que é o que acontece nas feiras de rua de fins de semana, e que são simples negociantes: tratam da vida, e bem; numa altura de dificuldades tudo serve para limpar as armas. Nos instalados, há aqueles que seguem uma linha que os norteia do ponto de vista daquilo que lhe interessa mais na vida. Há grandes livreiros que pensam só em fazer fortuna e andam atrás das raridades e há os outros que não conseguem fazer fortuna porque trabalham mais com o que os apaixona e, muitas vezes, não se conseguem desfazer desses livros e vão guardando o seu próprio acervo.
É o teu caso?
Sim, tenho um acervo pessoal e de vez em quando lá vai uma peça, tenho de largar um anelzito para que fique cá o dedo. Os livreiros também se interessam em aglomerar um círculo de clientes e trabalham mais certos temas, não alargam o perímetro comercial em massa. Há um aperto do leque mas sabem que contam com aquelas pessoas que aportam saber. Aprendemos muito com os clientes. Durante uma transacção é possível aprender mais do que em muitos meses. E nesse sentido vamos moldando o nosso caminho.
Disseste-me já que a Geologia também acabou por moldar o teu caminho. Em que sentido?
A geologia é a ciência das coisas brutas, como se dizia no séc. XVIII, é a ciência que trata da história da terra através dos testemunhos que ela nos deixa. Sabendo ler a terra, sabemos o que lhe está na origem. Essa relação com a terra explicam-na bem os agricultores. Aos cientistas da geologia atrai-os uma linguagem para comunicar com a terra, para a interpretar e ler. Não é uma ciência abstrata mas é uma ciência que exige articulação de pensamento no tempo e nos acontecimentos. Por outro lado, a ciência da geologia não admite nada que não seja aquilo mesmo, é uma coisa científica. Mas se quisermos usar a linguagem como algo mais poético, podemos usá-la e esse lado da poesia na geologia encanta-me sobremaneira. Recordo-me de um professor na faculdade que, perante uma resposta menos esperada, atirava-me com a frase: “Isso é muito poético”. E eu perguntava: “Mas porque não?”. A poesia é tão valida como a ciência. Havia ali muita substancia para além da ciência, é esse ir mais além que me atrai. E a relação com esse lado paralelo da linguagem, ao olharmos para a terra, é uma forma de estar na vida.
A que se vão agregando sedimentos do próprio vivido dos começos profissionais…
Eu arranjei logo emprego na execução de túneis, na Gardunha, onde estive uns meses largos. Foi uma experiência enriquecedora no sentido empresarial porque o objetivo daquele trabalho era obter receitas: gerir pessoas, gerir maquinaria, gerir tempo, gerir materiais. Tudo isso deu-me uma filosofia de empresário. Foi graças à engenharia geológica que ganhei um sentido empresarial. Quando preveni os meus pais da mudança, eles puseram as mãos à cabeça, ficaram preocupadíssimos, mas eu avancei com convicção, fui sempre atrás daquela linha.
E houve pedras no meio do caminho?
Tive dificuldades durante os primeiros anos, mas depois vinguei, fui conhecendo pessoas que me ajudaram.
E como estão a correr as coisas, depois da vinda para a Figueira da Foz?
A Figueira tem felizmente bons leitores e há aqueles que não me visitavam em Coimbra e agora o fazem. A minha actividade ao balcão é reduzidíssima, o que me dá uma certa liberdade de ir à procura dos livros. O meu percurso de livreiro sempre foi em zonas escondidas, nunca em zonas de grande passagem, também por isso.
E com um claro desapego pelo rés-do-chão…
Não gosto de estar em zonas de grande fluência de massas, desde a primeira livraria, justamente num primeiro andar. Sempre quis estar neste ramo de forma livre: se hoje não me apetece vender livros, e me apetece ler, vou ler; se amanhã quiser ir à procura de livros para outras cidades, vou, saio do meu espaço habitual, não entro em rotinas. Estar deslocado dos grandes centros permite-me essa liberdade, que me parece essencial num livreiro.
E essa procura ou busca de livros como é que se processa? Há um caminho já traçado ou há uma bússola que vai apontando a agulha em diferentes direcções?
No meu caso, não vou com um sentido definido, vou ao acaso, ponho-me a jeito, como dizia o Breton. Quando me desloco para cidades, fico atento aos sinais, que depois é preciso descodificar e isso requer alguma prática. Vou simplesmente, começo por visitar antiquários, falo com pessoas, estabeleço contactos, sigo sinais e de repente estão a acontecer coisas. É por isso que há clientes que por vezes dizem que concentraram a minha porta fechada… E isto serve também para oxigenar o nosso quotidiano, as nossas rotinas. Em Coimbra, tinha um espaço grande para permitir que acontecessem coisas. Se as pessoas não me comprassem livros, não ficava nada preocupado. O importante é que as coisas aconteciam. A sobrevivência de uma livraria passa por transmitir ao público que uma livraria é um local de acasos onde acontecem coisas que não imaginamos e que a internet retira, pelo alto grau de previsibilidade. O cliente que chega a minha casa e diz: “quero o livro A”, se não tenho, ele volta costas e não volta (e eu também não pretendo que volte). Prefiro o outro, que chega e pede para circular, é pessoa a cativar, vem à procura de um livro e encontra outros em que não tinha pensado.
O destino a dar aos livros por parte de quem os acumula parece ser, cada vez mais, uma preocupação e até uma angústia de alguns face a dificuldades, desinteresses e até indiferença de espaços que os acolham. Sentes isto?
Uma biblioteca é algo de muito pessoal, que norteou uma pessoa numa fase ou ao longo do seu percurso, mas só a norteou a ela, a mais ninguém. A pessoa cria um sentimento de paternidade que só ela tem e esse conflito vai-se acentuando ao longo da vida. Já lidei com muitas situações dessas e, muitas vezes, isso até dificulta o negócio. Daí que eu defenda que os livros não são nossos, são da humanidade. De forma que não devemos escrever nos livros, assiná-los, riscá-los, porque um dia vão deixar de ser teus e vão passar a ser de alguém; e aquelas marcas são só tuas. Pagamos um livro para que ele esteja nas nossas mãos durante uma fase da nossa vida. Aqui, a ideia de consumismo tem um aspecto filosófico por detrás. Quando vamos a um supermercado e compramos um qualquer artigo, pagamos para consumir e a ideia de consumo segue até ao fim; no caso dos livros, o acto não fica consumado. É uma espécie de aluguer. Tenho aqui livros com 500 anos que não estão consumados. O sentimento de posse do livro está distorcido na sociedade de consumo, daí que depositamos o nosso ego na nossa biblioteca. O importante é preservar os livros.
O que te dizem os teus grandes clientes sobre essa matéria?
Um dos meus grandes clientes foi o Prof. Aníbal Pinto de Castro, que nunca comprava só um livro, comprava às dezenas. Era um comunicador, tinha sempre histórias incríveis, era o Camilo do final do século XX. Dizia que os livros o empurravam para fora de casa. Retive sempre esta ideia, que é muito forte. Se sabes que te querem expulsar de casa, gera-se um sentimento muito negativo, mas se sabes que os livros te expulsam, o teu amor por eles é ainda maior. Há clientes que sabem muito daquilo que procuram. E nessa medida somos sempre pupilos dos leitores que nos procuram.
E o surrealismo, o que te ensinou?
Estar ligado ao surrealismo fez-me aprender muito. Não é uma corrente artística, é uma ideologia, um modo de estar na vida. Em 2002, tive a sorte de adquirir o espólio de Ernesto Sampaio, que conheci por acaso. Face às edições importantes do movimento, a autores que ele traduziu, houve um chamamento. Para o catalogar, trabalhei muito, envolvi-me em tudo aquilo e aí foi a luz, a estrela da manhã de que fala o Michael Löwy. Decidi não fragmentar aquele espólio.
Foi uma decisão difícil?
Não, foi fácil e quase imediata. Não quis fragmentá-lo. O espólio está neste momento no Centro de Estudos do Surrealismo da Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova de Famalicão, que me apresentou uma proposta. E a partir daí foi um abrir de portas, de conhecer pessoas que criam. Depois, nasceu a editora DSO. Dou muita importância aos acasos. O Breton, que eu sigo e leio bastante, dizia que na vida a única coisa que não é por acaso é o acaso. É nesses carris que me movo e faço coisas.
Chegaste a colaborar com o Mário Cesariny, certo?
Sim. Está, aliás, para sair um volume organizado pelo Perfecto Cuadrado, em que há uma seleção de textos colectivos em que participo. O primeiro contacto para o visitar partiu dele, pediu-me para lhe ligar quando fosse a Lisboa e assim foi. Começámos a fazer textos colectivos, também por brincadeira, jogos de disparates, como ele lhe chamava. O último foi escrito a uns quinze dias antes de ele falecer, estava ainda com algumas faculdades.
E que ideia é que te ficou dessa convivência?
Que ele era uma pessoa difícil, ou amava a pessoa ou desprezava-a, e isso viu-se na relação que manteve com o Cruzeiro Seixas, por exemplo. Mas mantivemos uma relação de amizade, cheguei a ir ter com ele à Costa da Caparica. Durante o tempo em que convivemos, fazia questão de me receber. Quando pensei em criar uma revista, o Cruzeiro Seixas, com quem cheguei a ter mais proximidade, recomendou a opinião do Cesariny, que disse que as melhores revistas são aquelas que morrem no primeiro número. Lancei-me à primeira revista, numa tiragem restrita, tudo feito à mão, uma caixa grande cheia de objectos poéticos e o certo é que ficou naquele número. Já tenho colaboração para o n.º 2 mas ainda não tive alento nem vontade para avançar. Estou nesse impasse.
E a relação de amizade com o Cruzeiro Seixas?
A princípio correu bem, depois começou a correr muito mal. Organizei na minha livraria uma exposição, sem fins comerciais, de cartas que ele escrevia aos amigos, cartas onde desenhava, pintava. Queria explorar essa faceta do Cruzeiro, de artigos que ele não tinha, só os amigos. Propus-lhe a ideia e ele aceitou de imediato. E aconteceu e correu muito bem. Esses amigos estavam espalhados pela Holanda, Estados Unidos, Brasil, França, Espanha. Criou-se uma simpatia e passámos a ter uma correspondência, ora electrónica ora por correio. Comecei a fazer imensas viagens, a visitá-los, a partilhar, a levar, a trazer. As pessoas achavam que eu era o modo de chegar ao Cruzeiro Seixas de forma rápida, uma espécie de ferramenta; mandavam mensagens, recados.
E essa dinâmica desagradou-lhe?
O Cruzeiro começou a não gostar, a dizer que eu não era o secretário dele. Talvez fosse – penso hoje – um pouco de inveja. Depois, comecei também a mostrar aquilo que produzia com as outras pessoas, até que houve, na República Checa, um grupo público de pessoas, em Brno, que me convidou para eu fazer lá uma exposição, uma espécie de agradecimento depois de lhes dedicar no Museu de História Natural, em Coimbra, uma grande exposição com catálogos a cores. Foi a gota de água. E a partir daí começou a ser muito violento comigo nas cartas, cortou-me de tudo o que era currículo, começou a difamar-me junto do movimento. Mas felizmente a coisa não correu muito bem para o lado dele. E a verdade é que mantenho esses contactos até hoje e tenho grandes amigos desse tempo, como o Sérgio Lima.
Entretanto, o teu dinamismo cultural conduziu-te ao Movimento independente “Figueira A Primeira”, candidato às próximas Autárquicas. O que te fez aceitar o convite de Pedro Santana Lopes?
Um livreiro é um agente cultural de proximidade, em que propomos aquilo de que gostamos a alguém. E por si só este é um acto político. Em Coimbra, havia pessoas que não entravam na minha casa porque me julgavam ligado a um partido, achavam que eu era comunista, não sei porquê… quando eu sou apartidário. O projecto de um livreiro tem quase sempre uma conotação política, parece-me. Eu tenho propostas culturais, não as vendo, partilho-as, ofereço-as; tenho ideias para fazer coisas. Na Figueira, algumas foram acolhidas pelo veredeador da cultura António Tavares. Fora disso, quase tudo me era negado por razões que desconheço. Com a passagem da pasta ao actual presidente de Câmara, sinto que a cultura está a definhar completamente. A cultura não é aquela que se apresenta em pacotes de programas eleitorais.
Cultura e entretenimento têm-se indistinguido?
O entretenimento é uma facção da cultura, que contacta com o grande público nas horas vagas. O professor Paulo Quintela, que eu não conheci apesar de lhe ter comprado o espólio, usava com frequência uma expressão: “Isto é um pastelão”: há passas, pinhões, frutas, o diabo, mas está tudo misturado. Hoje em dia, a cultura de uma maneira geral é um pastelão.
Na Figueira, queres separar essas águas, ou a massa, de que são feitas as coisas?
Sim, pretendo. O Dr. Pedro Santana Lopes convidou-me a integrar o Movimento, procurou conhecer as minhas ideias e eu vejo aqui uma oportunidade para dar o meu contributo com alguma possibilidade de execução, e que não está circunscrito ao Movimento. Sempre fui independente, vou continuar sempre a sê-lo. Ao longo dos anos, fui juntando no meu acervo pessoal livros antigos sobre a Figueira. Tenho uma ideia da projecção, da importância, do valor cultural que a Figueira tinha e que se tem vindo a perder. Vinham para cá grandes intelectuais, como Jorge de Sena, o Eugénio de Castro passava férias na Figueira, o Manuel de Arriaga, o João de Barros, Joaquim de Carvalho, um dos maiores pensadores do século XX em Portugal. Produzia-se muita cultura, uma coisa sólida que actualmente está entregue ao marasmo. Por outro lado, havia imensas revistas culturais, que eram simultaneamente instrumentos de procura e investigação e locais de partilha. Vinham à Figueira nomes importantes do cinema internacional. Nos últimos tempos, nada tem havido a que se possa chamar cultura. Nota-se bem o interesse que lhe desperta a área.
É desinteresse, inépcia, desprezo?
O que sei é que só a dois meses das autárquicas vamos assistindo a pequenos apontamentos que o executivo designa por cultura. O grande laboratório cultural existente na Figueira, até há bem pouco tempo, era uma coisa chamada o Sítio das Artes e o actual presidente fez o favor de tirar de lá tudo o que é organismo cultural – universidade sénior, companhias de teatro – para albergar lá o Instituto do Emprego e Formação Profissional. Atribui-lhe pequenos espaços, aqui e acolá, pequenos escritórios. O Sítio das Artes morreu e, com ele, também a dinâmica cultural criada com os versos fixados nos bancos do jardim público, entretanto arrasado, destruído.