QR Cota


Se há coisa que me esfrangalha os nervos é quando algo se torna moda e se torna um tal ai-jesus que passa a ser usada para tudo e mais alguma coisa. 


O título é mesmo este, não é gralha, não se pretendia escrever QR Code e saiu assim; é mesmo cota, naquele sentido de pessoa mais velha que a largueza geográfica trouxe à língua portuguesa. Um tipo, quando – como se costuma dizer a puxar ao eufemismo – já não vai para novo, começa a ficar rabugento e bota-de-elástico. Começa a ficar ou, quando já o era, piora a olhos vistos. Será certamente o meu caso, até porque, mesmo antes de atingir o estado de já não ir para novo, nunca fui imune a embirrações. Nos últimos tempos, tenho uma de estimação. O QR Code.

Melhor dizendo, alguns usos que lhe dão, porque o código propriamente dito, em si e por si, não me puxa pelo fel, antes aliás pelo contrário, sendo certíssimo que lhe reconheço inúmeras vantagens, e é uma invenção e tanto. Muito bonito, muito prático, muito útil.

É certo que tem problemas, sim senhor, onde avulta, como se assinala amiúde, e bem, a questão dos dados e afins, ou seja, é mais um instrumento da imensa pegada digital, mais um meio de saber e registar onde andamos, o que fazemos, et cetera. Mas não é essa questão – embora muito relevante – que me traz aqui. São coisas mais prosaicas, mais ao jeito da patetice e do marasmo estivais.

Se há coisa que me esfrangalha os nervos é quando algo se torna moda e se torna um tal ai-jesus que passa a ser usada para tudo e mais alguma coisa, matando-se, de uma penada, o mundo velho, como se, pondo umas rápidas pazadas de terra sobre Hegel, a síntese não fosse o encontro de tese e antítese, mas antes permanentes saltos à Pichardo. Exemplo: o QR Code nos restaurantes.

Cada vez mais, chega-se lá, e ou ninguém nos diz nada, e que descubramos o quadradinho algures para captar no telemóvel, ou vem alguém que nos aponta o dito cujo, e faça favor de se orientar. E não é só cá, diga-se – para quem se preocupa muito com o que traz o Sud Express –, pois lá fora também é assim.

E se um tipo, por acaso, não tem telemóvel (e já nem falo em não saber captar o Code)? Uma chatice, porque começa logo por levar com um olhar de viés, como se tivesse saltado diretamente das paredes de Altamira, Lascaux ou Foz Côa. E, para além disso (o que já cria suficiente angústia para o jantar), corre o risco de nem haver um exemplar da ementa, digamos, em suporte físico, uma relíquia do mundo antigo. 

Ora, não acho bem, por duas razões, uma prática e outra existencial. A primeira é esta: é que não é prático andar sempre com telemóvel. Por exemplo, um sujeito vai jantar agora na altura do calor, com pouco atavio, de corpinho bem feito (como se dizia na minha terra, em miúdo). Põe o telemóvel onde? Arranja uma pochete? Pendura-o ao pescoço? Entala no bolso das calças, mesmo superando a justeza das mesmas que agora está na moda? Leva na mãozinha o aparelho, como se fosse verdadeira parte do corpo, extensão essencial da mão.

Já se vê que não é prático, nem estético, nem nada. Mas há uma outra questão, e essa atinge-me mesmo os nervos, quase em jeito de nevrose oitocentista. É que isto só acentua uma coisa que já existe muito, e que – acho eu, salvo melhor opinião – é triste. Que é estar à mesa, acompanhado, mas muito metido com o seu telemóvel, como se não estivesse ali mais ninguém. Seja em par, seja em trio, seja em mais.

Tratar de um assunto, responder a uma mensagem, sim senhor, mesmo colocar uma foto num qualquer social media, para fazer prova de vida, pronto, vá lá. Agora passar o tempo com a cara metida no aparelho, como se não estivesse ali vivalma? Isto existe, e é triste. Claro que depende muito da vontade de cada um, mas andar sempre com o telemóvel atrás e ter que usá-lo para tudo não ajuda a contrariar esta tendência.

Se calhar é inevitável, será porventura mesmo assim, se calhar é o resultado da célebre improbabilidade da comunicação, ou será talvez o dito certeiro de Schopenhauer sobre “o invencível tédio gerado pela abundância”, pois o resultado da abundância é a saciedade, mas esta tem, entre outros, o preço do tédio. Mas eu não gosto, cota teimoso. Eu quero um papel com os dizeres sobre o que há para comer e beber, quero dois dedos de conversa, quero olhos nos olhos. 

QR Cota


Se há coisa que me esfrangalha os nervos é quando algo se torna moda e se torna um tal ai-jesus que passa a ser usada para tudo e mais alguma coisa. 


O título é mesmo este, não é gralha, não se pretendia escrever QR Code e saiu assim; é mesmo cota, naquele sentido de pessoa mais velha que a largueza geográfica trouxe à língua portuguesa. Um tipo, quando – como se costuma dizer a puxar ao eufemismo – já não vai para novo, começa a ficar rabugento e bota-de-elástico. Começa a ficar ou, quando já o era, piora a olhos vistos. Será certamente o meu caso, até porque, mesmo antes de atingir o estado de já não ir para novo, nunca fui imune a embirrações. Nos últimos tempos, tenho uma de estimação. O QR Code.

Melhor dizendo, alguns usos que lhe dão, porque o código propriamente dito, em si e por si, não me puxa pelo fel, antes aliás pelo contrário, sendo certíssimo que lhe reconheço inúmeras vantagens, e é uma invenção e tanto. Muito bonito, muito prático, muito útil.

É certo que tem problemas, sim senhor, onde avulta, como se assinala amiúde, e bem, a questão dos dados e afins, ou seja, é mais um instrumento da imensa pegada digital, mais um meio de saber e registar onde andamos, o que fazemos, et cetera. Mas não é essa questão – embora muito relevante – que me traz aqui. São coisas mais prosaicas, mais ao jeito da patetice e do marasmo estivais.

Se há coisa que me esfrangalha os nervos é quando algo se torna moda e se torna um tal ai-jesus que passa a ser usada para tudo e mais alguma coisa, matando-se, de uma penada, o mundo velho, como se, pondo umas rápidas pazadas de terra sobre Hegel, a síntese não fosse o encontro de tese e antítese, mas antes permanentes saltos à Pichardo. Exemplo: o QR Code nos restaurantes.

Cada vez mais, chega-se lá, e ou ninguém nos diz nada, e que descubramos o quadradinho algures para captar no telemóvel, ou vem alguém que nos aponta o dito cujo, e faça favor de se orientar. E não é só cá, diga-se – para quem se preocupa muito com o que traz o Sud Express –, pois lá fora também é assim.

E se um tipo, por acaso, não tem telemóvel (e já nem falo em não saber captar o Code)? Uma chatice, porque começa logo por levar com um olhar de viés, como se tivesse saltado diretamente das paredes de Altamira, Lascaux ou Foz Côa. E, para além disso (o que já cria suficiente angústia para o jantar), corre o risco de nem haver um exemplar da ementa, digamos, em suporte físico, uma relíquia do mundo antigo. 

Ora, não acho bem, por duas razões, uma prática e outra existencial. A primeira é esta: é que não é prático andar sempre com telemóvel. Por exemplo, um sujeito vai jantar agora na altura do calor, com pouco atavio, de corpinho bem feito (como se dizia na minha terra, em miúdo). Põe o telemóvel onde? Arranja uma pochete? Pendura-o ao pescoço? Entala no bolso das calças, mesmo superando a justeza das mesmas que agora está na moda? Leva na mãozinha o aparelho, como se fosse verdadeira parte do corpo, extensão essencial da mão.

Já se vê que não é prático, nem estético, nem nada. Mas há uma outra questão, e essa atinge-me mesmo os nervos, quase em jeito de nevrose oitocentista. É que isto só acentua uma coisa que já existe muito, e que – acho eu, salvo melhor opinião – é triste. Que é estar à mesa, acompanhado, mas muito metido com o seu telemóvel, como se não estivesse ali mais ninguém. Seja em par, seja em trio, seja em mais.

Tratar de um assunto, responder a uma mensagem, sim senhor, mesmo colocar uma foto num qualquer social media, para fazer prova de vida, pronto, vá lá. Agora passar o tempo com a cara metida no aparelho, como se não estivesse ali vivalma? Isto existe, e é triste. Claro que depende muito da vontade de cada um, mas andar sempre com o telemóvel atrás e ter que usá-lo para tudo não ajuda a contrariar esta tendência.

Se calhar é inevitável, será porventura mesmo assim, se calhar é o resultado da célebre improbabilidade da comunicação, ou será talvez o dito certeiro de Schopenhauer sobre “o invencível tédio gerado pela abundância”, pois o resultado da abundância é a saciedade, mas esta tem, entre outros, o preço do tédio. Mas eu não gosto, cota teimoso. Eu quero um papel com os dizeres sobre o que há para comer e beber, quero dois dedos de conversa, quero olhos nos olhos.