Onde o olhar enternecedor de Fiama derruba arestas

Onde o olhar enternecedor de Fiama derruba arestas


Há oitenta e três anos, nascia em Lisboa, a 15 de Agosto de 1938, Fiama. De origem italiana, este nome que remonta à Idade Média significa “pequena chama”. E foi também de pequenas chamas que se ergueu, palavra a palavra, cena viva a cena viva, o seu clarão literário.


Poesia, ficção, tradução, teatro, revolução. Fiama que fez parte da coletânea Poesia 61 com mais quatro poetas, viu nessa altura Morfismos o seu primeiro conjunto de poemas ser publicado a par de A Quarta Dimensão da autoria de Luiza Neto Jorge, Tatuagem de Maria Teresa Horta, Canto Adolescente de Casimiro de Brito e de A Morte Percutiva de Gastão Cruz. 

“Onde as mãos derrubam arestas/ a palavra principia.” Estes são os dois últimos versos de Grafia I, poema primeiro de “Morfismos” que inauguraria de acordo com Gastão Cruz, poeta com quem foi casada e pai dos seus dois filhos, “uma das linguagens mais autónomas e originais da poesia portuguesa da segunda metade do século XX”. Uma linguagem que segundo o poeta e crítico “documenta uma capacidade de constante renovação, uma vontade permanente de reinvenção e de pesquisa”.

Podemos encontrar toda a sua poesia reunida em Obra Breve pela chancela da Assírio & Alvim. “Em Obra Breve, os pequenos livros de meus poemas reúnem-se de uma forma contígua – tal como foram vividos. As cortinas delimitam, confundindo-os, livros e partes de livros; poemas inéditos preenchem alguns intervalos. Na verdade, cada livro tinha sido apenas um corte – a poesia vai sendo escrita, transformada, recordada, ao correr do tempo todo”.

Diante do seu extenso percurso poético, os seus leitores continuam a ser testemunhas desses cortes a que a autora se refere. Cortes que implicaram uma reescrita constante e rigorosa. Cortes que se corporalizaram em diferentes passagens, em diferentes diálogos, em diferentes osmoses, em diferentes mutações, em diferentes registos. É que de Morfismos até A Matéria Simples, um conjunto de quatro poemas, os últimos escritos por Fiama no verão algarvio de 2000, a poeta foi mergulhando em outros caudais, em outros infinitos. Se a sua contenção inicial se foi esbatendo, assim como o experimentalismo, por sua vez, o lirismo, o tom mais confessional tão ausente na sua poesia inicial, passou a tomar conta da sua estética. Mas tudo porque “o movimento é a única realidade essencial”. Porque “as coisas transformam-se umas nas outras. É como se alguém estivesse a puxar duas grandes fitas”.

Mas não foi só de versos que a sua obra se consolidou. Em 1958 Fiama publicou em prosa Em Cada Pedra um Voo Imóvel, livro escrito no ano anterior à sua publicação, que arrecadou o prémio Adolfo Casais Monteiro. Dividido em duas partes, a primeira “Recitações Dramáticas” e a segunda composta por curtos textos em prosa poética, é um livro que merece um enorme destaque pois foram os seus primeiros textos neste formato. Nele encontram-se compilados além do título que lhe empresta o nome, O Aquário (1962), O Retratado (1985), Falar Sobre o Falado (1988), e o seu único romance Sob o Olhar de Medeia (1998).

“A Fiama contemplava tudo com um olhar que parecia querer absorver pessoas e coisas, a luz e a natureza, no deslumbramento de quem colecionava imagens, fixava imagens” escreveu Gastão Cruz em A Vida da Poesia.

Não há dúvida que toda a sua obra, quer seja teatro, poesia ou prosa está assente em imagens lavradas por águas correntes; pelo fogo das queimadas; pelas traves que sustém as casas; pelas estações por adormecer; pelas “quedas de bátegas contínuas no ramo estéril”; pelas “brumas dos mares seculares cortados”. Não há dúvida que é sempre o contacto com a natureza que desencadeia a movida e o deslumbramento na sua linguagem.

Se atentarmos à epígrafe de Kantan no livro em análise “O orvalho dos crisântemos gotejando cada madrugada quantas miríades de gerações levará até formar um lago?” realizamos que são as flores, os colares de flores, o orvalho, o vento, os lagos, as rias, os animais, as luras, os primeiros indicadores da magnificência natural que tanto a assombrou. Que são as personagens ligadas à terra, como o Oleiro, o Talhador de Madeira, a Figura de Madeira, a Figura de Barro de O Mito e o Homem, ou o Pescador, o Salineiro, a Varina de Luar e Sal ou ainda a Ceifeira e a Papoila de O Trigo Não Morre, os principais eixos da sua realidade imagética.

Também no único romance que escreveu encontramos personagens ligadas à terra, como o Caseiro, Lázaro ou Marta. E nele embarcamos no tempo das colheitas, no tempo do marmelo e das uvas esmagadas na prensa. Das romãs com os seus bagos vermelhos nos fins de Setembro. Mas mais do que uma realidade bucólica, vemos por cada fenda das suas histórias emergir aos solavancos uma tão grande urgência de nomeação, de designação, de depuração, que na maioria das vezes essa urgência se deixa menear com jeitos de fantasia e desse modo os leitores são transportados para o campo assombroso, se bem que por vezes inquieto e desconhecido dos sonhos. Sonhos que englobam vultos, sombras e vozes indefiníveis. Esta característica é recorrente quer na poesia quer na prosa como podemos constatar em muitos dos seus poemas, neste mesmo romance ou em O Aquário por exemplo. Podemos ler nos primeiros parágrafos desta narrativa “A mulher debaixo da lua era um lago. Os peixes nadavam-lhe nos olhos, esgueirava-se entre os seios, flexíveis, revolviam-lhe as coxas. Os peixes sorviam o silêncio da noite. Esbranquiçavam-se nos intervalos das árvores, na sombra das árvores. Os dentes da mulher eram peixes-lanternas a alumiar a noite”.

Não podemos esquecer que Fiama cresceu numa pequena quinta em Carcavelos, a Vivenda Azul. Na segunda parte de Recitações Dramáticas, temos a sensação nítida de percorrer pela sua mão firme essa mesma quinta como se dela fossemos íntimos. É certo que sabemos por Gastão Cruz que a quinta tinha um caramanchão, um terraço com azulejos, uma grande gaiola crivada de dezenas de periquitos, uma madressilva, um lago com peixes. É certo que talvez seja por isso quase automático associarmos este lugar encantador à sua infância e juventude (e também ao seu romance). De qualquer maneira, são descrições únicas, memórias de uma geografia idílica, de um tempo imenso, transparente, tingido de memórias. Um tempo em que as “árvores são de vidro”, e os montes são “grandes borrões cor-de-rosa”. Se nos demorarmos no contraste borrões versus cor-de-rosa damo-nos conta de um tempo tranquilo, mas de igual modo fatalista. Denso e de igual modo em equilíbrio. Um tempo para sempre por cronometrar. Fictício e real como podemos comprovar ao ler “Encostado ao muro do quintal havia um pedaço de terreno que era meu. Os torrões eram romãs que eu apertava nos dedos. Gostava de esfregar o pó ruivo, ao de leve, nas costas das mãos. Uma vez, plantei dois bolbos de dálias. Todas as manhãs os regava. Gostava de deixar cair a água sempre no mesmo sítio para fazer uma cova. Quando, às vezes, passada uma hora, voltava, ainda havia uma poça. Um dia encontrei a terra revolvida. Tinham arrancado as dálias. E, no entanto, as minhas dálias cresceram. Eram cor de coral. Ao amanhecer, tingiam-se de azul. À tardinha, cheiravam a maresia. Nunca ninguém viu as minhas dálias. No meu quarto, em frente da janela, tenho uma jarra que está sempre cheia de dálias cor de coral. É por isso que gosto de jarras sem flores”.

Embora extremamente poéticos estes textos, eles não constam em Obra Breve. Fiama quis desenhar-lhes um pulmão à parte. Para Gastão Cruz a única hipótese desta exclusão talvez fosse “o facto de Fiama considerar estes livros algo imaturos. Porque na coletânea de 1974 houvera lugar para as prosas que nela se misturavam com os poemas em verso e, mais tarde, viriam a ser publicadas separadamente, constituindo o livro Falar sobre o Falado (1988), obra a que não foi dada ainda a atenção que a sua importância, no contexto da obra de Fiama Hasse Pais Brandão, justificaria”. O que não se percebe, já que Falar Sobre o Falado é um livro de suma importância. Este talvez seja de todos o seu livro mais desafiante e mais hermético

Eduardo Lourenço acerca do seu hermetismo escreveu no seu texto Fiama ou o Inelutável que “Ninguém entra na hermética paisagem de Fiama como em casa. Nem sequer como quem se perde, entre pânico e delícia, na floresta de um enigma levando na mão as pedras brancas do herói de Grimm”.

Mas porque é que ninguém entra na hermética paisagem de Fiama como em casa? Porque por vezes são opacos os símbolos, efervescentes os monólogos, os personagens, os lugares, as mensagens, as perspectivas. Porque a espessura das histórias vai-se tecendo muitas vezes com a mitologia, com evocações dispersas que se sobrepõem. Por ser duro acompanhar a intertextualidade com que os seus pensamentos se entretecem. Tão depressa em Falar Sobre o Falado tropeçamos em Hegel, Hamlet, Camilo Pessanha, como nas florestas de Ardenas ou nos fuzilados do Três de Maio de Goya. Porque nos sentimos por vezes estonteados a descer escadarias labirínticas por onde nunca se esgotam as suas equações semânticas, as suas fadas, os seus homens, a sua visualidade.

Mas talvez ninguém entre na hermética paisagem de Fiama como em casa, porque ao entrarmos em casa nunca nos lembramos “que a solidão é um aquário sem peixes”.

Voltando ao enigma a que Eduardo Lourenço se refere, é importante verificarmos que em Fiama esse enigma conduz-nos a todo o momento um estado meditativo, de profunda introspeção. No capítulo X de Falar Sobre O Falado Fiama escreveu como que desejando que palavra e natureza fosse um só ser, uma só aliança. “Meditar, como se por momentos a narrativa se mudasse e a natureza pudesse ser reflexo (como na frequente queda romântica de rouxinol em um rio) de quaisquer pensamentos”.

Ao contrário de todos os textos aqui referidos, não esquecendo Os Contos Da Imagem, Sob o Olhar de Medeia publicado no fim dos anos 90 é o único romance de Fiama. Um romance que também nem por um milímetro se desvia desse enigma e de uma mediação fluída da natureza narrativa para com a natureza Natureza.

O teatro a par da poesia foi sempre desde os tempos de faculdade, a viagem que lhe permitiu mergulhar “o fundo invisível dos poços.” Já nos anos 50 Fiama escrevia peças de teatro. Basta recordarmos O Cais por exemplo, peça encenada por Armando Cortês na faculdade de Letras de Lisboa. Por esta altura fundou o grupo de teatro hoje, embora tenha sido na década seguinte mais representativas as peças A Campanha, O Golpe de Estado, Diálogo dos Pastores e Auto Da Família. Destas quatro, apenas a terceira não foi considerada ameaçadora porque as restantes foram consideradas pela PIDE como sendo nefastas à ordem do estado. Chegou a ser presa pela policia de Salazar durante uma greve de estudantes, mas nem assim nunca se vergou pela liberdade.

Noites de Inês- Constança, peça em três actos e um epílogo foi por sua vez, a sua última peça teatral.

Trabalhou como bibliotecária durante mais de vinte anos ao serviço do Centro de Estudos Linguísticos da Universidade de Lisboa, onde embora tenha frequentado os primeiros anos de licenciatura em Germânicas, nunca tenha terminado o curso. Traduziu para português John Updike, Brecht, Antonin Artaud, Novalis e Tchekov e em 2007 deixou-nos. Eduardo Lourenço sabiamente a respeito de Fiama dizia que a poeta «está entre a palavra e as coisas», por isso ela nunca deixará de estar entre nós e a palavra. Intacta, envolvente, harmoniosa.