Cabrita Reis. Um artista “perseguido” pelo vandalismo

Cabrita Reis. Um artista “perseguido” pelo vandalismo


Pedro Cabrita Reis, um dos mais aclamados e internacionais artistas de Portugal, tem passado os seus mais de 40 anos de carreira a ser “perseguido” por atos de vandalismo. Mas quais as razões que levam alguém a destruir o trabalho de outra pessoa? E como lida um artista com essas situações?


Imaginemos que caminhamos ao longo do pontão do rio Tejo em frente à antiga central elétrica de Lisboa, onde outrora atracavam os batelões que forneciam carvão para a fábrica de energia. De repente, duas torres em alumínio, conexas e iluminadas, com 10 metros de altura, saltam à vista. Encontrar no espaço público uma intervenção contemporânea que nos interpela não é nada de inusitado. O problema é que nem toda a gente aceita pacificamente o estatuto de obra de arte.

Conhecido pelas suas instalações em grande escala compostas por objetos encontrados, como portas e molduras de janelas velhas, pedaços de ferro enferrujado, vigas de aço e lâmpadas fluorescentes de fábricas extintas, Pedro Cabrita Reis tem sido ao longo dos anos “perseguido” por práticas de vandalismo que afetam e alteram as suas obras.

Elogiadas pelos críticos como “meditações poéticas sobre habitação, migração e espaço”, as grandes e ousadas peças podem, inversamente, não significar “absolutamente nada” para outras pessoas – que as pintam, danificam ou destroem. O que levará alguém a vandalizar uma escultura feita, na verdade, para todos, isto é, para si? Para a cidade onde habita, visita, passeia? E o que é que significará isso para a pessoa que a construiu?

A OBRA “AFUNDADA” O mais recente ato de vandalismo de uma obra de Cabrita Reis leva-nos até Coimbra. No dia 3 de agosto, a escultura Cogito, instalada inicialmente em 1991 no Jardim dos Patos, na Alameda Júlio Henriques, foi reposta depois de ter sido vandalizada, totalmente destruída e submersa no lago do jardim. Inicialmente concebida para “homenagear a figura emblemática do estudante de Coimbra”, trata-se de uma escultura contemporânea de caráter figurativo e geometrizante, executada em mármore branco, constituída por uma mesa retangular onde repousavam diversos livros executados no mesmo material. Face ao “ataque”, Cogito foi então reinstalada, exatamente no mesmo local, desta vez em aço (material mais duradouro e menos sujeito a ações que coloquem em perigo a sua integridade).

Mais uma vez, o artista revelou a forma “tranquila” e pragmática com que lida com este tipo de situações. Depois de ter sido avisado, demonstrou imediata disponibilidade para avaliar os danos e remover o que restou da escultura. A Câmara decidiu adquirir uma nova escultura ao artista de forma a proceder à substituição da obra danificada, com o objetivo de “repor a dignidade da obra e do espaço para onde foi concebida”. O investimento foi de 73.800 euros (IVA incluído).

“O DINHEIRO DOS NOSSOS IMPOSTOS” Pelo que transparece nos exemplos seguintes, um dos principais motivos para o descontentamento das pessoas que destroem ou grafitam as esculturas exibidas no espaço público é, efetivamente, o dinheiro.

Já em 2019, duas semanas após ter sido inaugurada, uma peça escultórica da autoria do artista plástico lisboeta, instalada junto ao Farol da Boa Nova, em Leça da Palmeira, Matosinhos, surgia vandalizada. “Vergonha”, “300 mil €”, “os nossos impostos” e “isto é Leça” foram algumas palavras pintadas a tinta preta nas vigas de ferro que compõem a obra, assim como o símbolo de um tridente, “partilhado por diversas organizações de diferente teor mas todas unidas por um pensamento de extrema direita ao longo da Europa”, relatou, na altura, Pedro Cabrita Reis ao Observador, considerando que o ato de vandalismo com mensagens dirigidas “ao sistema político em que nós vivemos, com um discurso populista de ódio explora algumas sensações de frustração das pessoas”.

Denominada A Linha do Mar, a peça é composta por vigas de ferro industriais, apresentando, na descrição do município, “uma nova perspetiva sobre a linha de horizonte do mar e sugerindo diversas interpretações através da forma e geometria e da sua sobreposição com o oceano”.

Uma das maiores críticas apontadas ao trabalho já havia sido o valor avultado da obra, que custou ao município de Matosinhos 307,5 mil euros (250 mil euros da obra +57,500 de IVA) algo que Fernando Rocha, vereador com o pelouro da Cultura na Câmara municipal de Matosinhos, justificou com a “excelente situação financeira” da autarquia no momento. O vereador admitiu ainda que o valor planeado para a escultura era até mais alto do que o que foi gasto: “O município tinha previsto gastar 400 mil euros, mas bastaram 307,50 mil euros para a conceção, produção e instalação da obra. Ao colocarmos estas obras, fazemos isto como forma de atração. Grandes nomes também atraem visitantes, turistas, valorizam o espaço público e o objetivo é esse”, salientou ao Observador.

Para Fernando Rocha nunca esteve em causa o facto de as pessoas não gostarem da peça. Tratou-se apenas, no seu entender, de “um ato de destruição gratuita, que não podemos aceitar e tolerar”. O vereador sublinhou ainda a singularidade da arte contemporânea que “não é uma arte imediata”. “Toda a gente sabe que o minimalismo e o abstracionismo não são facilmente interpretáveis ou podem ter várias interpretações. Temos consciência disso, mas também temos consciência que o tempo nestas coisas ajuda a consolidar as ideias. Temos o maior respeito por todas as pessoas que não concordam com a opção, não gostam da peça ou não gostam do artista, não podemos compactuar com atos de vandalismo e crimes públicos”, frisou.

Na sua página do Facebook, numa publicação sobre o ato de vandalismo, a presidente da Câmara de Matosinhos, Luísa Salgueiro escreveu que “o investimento na cultura está longe de ser consensual e é perfeitamente respeitável que as pessoas tenham a opinião de que esta não seja uma responsabilidade do Estado, privando o seu acesso à classe média e baixa”. Contudo, para a autarca, “existem diversas formas legais, democráticas e menos lesivas do nosso património comum para evidenciar essa opinião”. “A política cultural é determinante para combater a intolerância”, porque “a diversidade de opiniões, a discussão de ideias antagónicas e a tolerância terão sempre lugar em Matosinhos”, referiu.

“AS MINHAS CUECAS TAMBÉM SÃO ARTE” Aproximadamente um ano depois da inauguração, A Linha da Mar voltou a ser vandalizada, o que reacendeu a controvérsia. Um emigrante português em Inglaterra montou um estendal com roupa interior na escultura e t-shirts com inscrições que punham em causa a obra de Cabrita Reis. Na altura, Pedro Almeida, assim se chama o manifestante, natural de Leça, afirmou à Lusa que “a arte é aquilo que o artista quiser. Por isso, se umas vigas são arte para o Pedro Cabrita Reis, para mim umas cuecas com perguntas escritas também são arte. A minha arte”, adiantou.

Na sua rede social Facebook, o emigrante assumiu a autoria da “instalação artística/política”. Pedro Almeida assegurou que as pessoas com quem falou “disseram que detestavam a chamada escultura” e “falaram da frustração de ver os casos em Matosinhos a acumularem-se e nada se resolver”. “Matosinhos precisa de uma varridela (a juntar à roupa lavada)”, defendeu. Apesar da distância da sua terra natal, garantiu que de tudo faz para se manter informado sobre o concelho e que a escultura de Pedro Cabrita Reis “fica mal naquele local”, acrescentando ainda que esta deveria ser transportada para outro sítio. Após “ter conseguido passar a mensagem de descontentamento com o rumo do concelho”, o português recolheu os seus pertences e as molas, garantindo “estender novamente as questões quando voltar a Portugal”.

PAGAR PARA ABANDONAR? Mais recentemente, em março de 2021, o artista plástico foi alertado para o estado ferrugento da Linha do Mar. Apesar de a reposição ter sido feita há pouco mais de um ano, a escultura já não está igual. As quase sessenta vigas de ferro viram o seu branco reluzente dar o lugar à ferrugem. Pedro Cabrita Reis desconhecia o estado atual da obra e agora, enquanto ao mesmo tempo restaura outras obras públicas do concelho, a Câmara Municipal de Matosinhos adianta ter assegurada no futuro a manutenção da polémica obra. Para isso, chegará “o custo da tinta”, não existindo “qualquer verba a ser despendida”. A Câmara considerou ainda ter passado tempo suficiente para que a escultura esteja já em estado de degradação. “Encontra-se com as marcas características do tempo e da localização”, adiantou.

Em Belém, Lisboa, aconteceu precisamente a mesma coisa. Feita com madeiras, escadas, pneus e lâmpadas para representar a navegação marítima e para “aproximar o Rio Tejo e o mosteiro”, a instalação de Cabrita denominada Amarração foi colocada em frente ao Mosteiro dos Jerónimos em 2008, ali permanecendo durante anos. A estrutura metálica com pneus pendurados foi-se degradando ao longo do tempo, motivando a indignação e as reclamações de alguns turistas descontentes com a convivência entre a arquitetura manuelina e a intervenção contemporânea. Em 2015, em entrevista ao i, Isabel Cruz Almeida, na altura diretora do Mosteiro dos Jerónimos, chegou mesmo a revelar a sua tristeza com o resultado final da obra: “Fartei-me de lhe dizer [ao escultor] que era muito difícil conseguir concretizar o projeto inicial (pôr um raio de luz vertical para rebentar com esta horizontalidade). Vieram vários estruturalistas e acabaram por dizer que não era exequível. Aquilo de que ele andava há meses a falar e que defendeu até à última, depois mudou em dois dias”, explicou, acrescentando que “a obra não teve impacto e confesso que não encontrei qualquer diálogo com o monumento”.

CABRITA REIS E O “turno da noite” Em 2001, o artista doou uma obra ao município de Santo Tirso que esteve 18 anos por terminar. Só a concluiria em 2018 “da maneira como entendi”, descreveu, na altura. Cabrita Reis trabalhou a martelo a superfície de uma construção em tijolo numa reinterpretação de “um casinhoto tosco feito com tijolos”, como o próprio classificou. Mas alguém terá seguido e continuado o trabalho de uma forma que não estava prevista. Em vez de um casinhoto tosco, a peça ficou um casinhoto tosco com buracos, erodido como se estivesse ferido com a passagem do tempo. Alguém decidiu acrescentar “feridas” à peça e deitou abaixo a parte da porta.

Na altura, a PSP de Santo Tirso registou a ocorrência, mas o artista, voltou a surpreender… Ao contrário do que seria de esperar, olhou para o crime anónimo com “alguma ternura e absoluta compreensão”. No seu entender, “fez com que alguém tivesse experimentado uma forma de estar que aproximou a sua relação com a arte”: “No caso de Santo Tirso, o que houve foi um desenvolvimento do trabalho que eu e os meus assistentes tínhamos realizado durante o dia. Durante a noite, alguém foi lá e fez o turno da noite”. Para Cabrita Reis, essa intervenção não trouxe consigo uma “carga negativa”, ao contrário do que aconteceu com A Linha do Mar, não considerando, por isso, este como um ato de vandalismo: “A minha interpretação não é essa. Não é vandalismo, é manifestação da criatividade de alguém que não quis deixar de se associar ao processo artístico”, defendeu.

OUTROS MONUMENTOS VANDALIZADOS A vandalização de obras de arte é uma prática antiga com desenvolvimentos recentes no Padrão dos Descobrimentos, em Belém (Lisboa) e no Jardim da Sereia, em Coimbra, onde se situa o parque escultórico do artista Rui Chafes. Tanto um como o outro foram vandalizados no passado domingo com grafitis. Em Lisboa, o famoso monumento que “nos conta a história dos descobrimentos”, foi marcado com um graffiti de 20 metros numa das suas laterais. A mensagem, entretanto apagada, estava escrita em inglês e com erros ortográficos: “Blindly sailing for monney, humanity is drowning in a scarllet sea”. O que, numa tradução livre, será algo como: “Velejando cegamente por dinheiro, a Humanidade afunda-se num mar escarlate”. Pensa-se que o ato terá sido cometido por uma jovem francesa, estudante de arte, de seu nome Leila Lakel.

Em Coimbra, foi também com tinta que se perpetrou o ataque ao único anel (de dois pertencentes a uma escultura de Rui Chafes) que sobreviveu, há cerca de um ano e meio, à violência de três tempestades que assolaram o Jardim da Sereia. Entretanto os elementos danificados do conjunto escultórico foram retirados para restauro. O contrato para a reabilitação e reinstalação das peças foi assinado em março deste ano, num valor que ronda os 60 mil euros. O artista tem agora um prazo de 210 dias para reparar as esculturas e voltar a instalá-las no Jardim da Sereia.