Por António Pinho Cardão, Economista e Gestor
Evocando Eça de Queirós, Ramalho Ortigão descreveu brilhantemente em As Farpas a forma de nomeação do Governo, dos dirigentes dos organismos públicos e das suas funções determinantes, verdadeiro oráculo, até pela linguagem figurativa, do que viria a acontecer uma centena e pouco de anos mais tarde.
Distribuídos, dizia Ramalho, “os altos cargos do Estado, com as suas concernentes benesses, pelos nossos amigos íntimos e por nós mesmos, como pede a justiça…”, o primeiro-ministro logo lhes definia a sua missão essencial: “…enquanto eu empunho as rédeas do Governo, confio-vos todas as províncias da pública administração…tereis voto em cortes, cobrareis as rendas do Estado, sereis almotacés, portageiros ou meirinhos, redigireis os forais, escriturareis os livros de linhagens, entender-vos-eis no meu nome com os prestameiros, com os vilões, com os mesteirais e com os servos da gleba…”.
Olhando bem, trata-se mesmo de cargos para camaradas muito amigos, já que não se lhes imputam quaisquer deveres, mas tão só a condição e os privilégios da função, deputados eleitos para as Cortes, almocatés, figuras de destaque nas deslocações soberanas pelo país e estrangeiro, redistribuidores de ofícios públicos, delegados junto das corporações industriais e sindicais.
Claro que cada um desses amigos íntimos também possuía alguns outros amigos mais ou menos chegados para nomear, não se perdesse a oportunidade. E assim cada qual insistia junto do primeiro-ministro por mais umas admissões, oficiando o mais modesto que “como pessoal da minha repartição, pedi apenas doze quadrilheiros, que me acompanhariam nas minhas investigações fiscais, nas reuniões dos três estados, nas livrarias, nos botequins, nos clubes recreativos ou que metessem retórica, às esquinas das ruas, nas escadas dos prédios e nos salões públicos ou particulares…”.
O que Ramalho não atingiu foi que cônjuges, filhos e parentes se viessem a adicionar à lista dos amigos íntimos, e o rol das funções políticas e governamentais crescesse até ao ponto de, em meados de 2021, serem necessários 70 membros para constituir a governação do reino, um primeiro-ministro, 19 ministros, 50 secretários de Estado.
Que só no último ano juntaram um séquito de mais 21.345 acompanhantes permanentes (e cerca de 80.000 nos últimos 6 anos), seja para investigações às esquinas das ruas ou qualquer outra das funções enumeradas por Ramalho, excluída naturalmente a admissão de novos quadrilheiros, admite-se que por extinção do cargo.
No entanto, para compensar, cargo sempre em incremento é o dos professores, admitidos recentemente cerca de três milhares, para dar alguma vida às salas de aulas vazias de alunos devido à fraca natalidade.
Não se vê é que a performance de hoje, embora digitalmente bem alicerçada, vá muito além da que os almocatés da altura asseguravam, de “vigiar paredes de casas, quintais, portas, janelas e eirados, fazer cumprir posturas sobre canos, chafarizes, fontes e poços, fiscalizar os preços, os pesos e o tamanho do pão nos mercados e açougues ou garantir a limpeza dos locais ou mandar arranjar caminhos, calçadas e pontes por onde o monarca viesse a circular”.
E pode-se bem supor que nomes modernos que crismaram esses serviços, Urbanização, Licenciamento, ASAE, Mobilidade e quejandos não sensibilizariam Ramalho a corrigir o modo jocoso como se lhes referiu, por não vislumbrar alteração substancial de vícios funcionais e burocráticos dos seus antecessores.
Mas, tenhamos esperança, talvez mais umas dezenas de milhares de redundâncias inúteis nos transformem irreversivelmente num país de funcionários e de estado-dependentes, realizando assim plenamente o “pobre planeta exausto, morto e inútil”, como Ramalho já classificava o país.