Umberto Eco. O que podem os livros contra as legiões de idiotas?

Umberto Eco. O que podem os livros contra as legiões de idiotas?


Um livro do intelectual italiano desaparecido há cinco anos que reúne artigos, ensaios e conferências dedicados à história do livro – fazendo a sua apologia num mundo cada vez mais dominado pelo regime digital – permite-nos rever o papel que Eco teve ao estabelecer uma ponte entre dois mundos: o dos livros e dos saberes…


Da mais assoberbante erudição àquele poder de fazer as cabeças voltarem-se diante de uma enorme parada, com o ruído de cascos dos lugares comuns que põe a maioria à vontade, a convida a subir a bordo e experimentar o desejo de exaltação à volta de questões tidas por elevadas, mimetizando esse tom pedante que se associa geralmente aos intelectuais… Esse foi o segredo de Umberto Eco, um intelectual que ambicionou ter tudo, e conseguiu.

A sua obra é tão prodigiosa quanto característica dessa operação que extravasa todas as margens, e, combinando diversos campos do saber, assume o prestígio que ainda se reserva aos tutores na área dos saberes especializados, enquanto académico, professor, para depois surgir nas frentes do mediatismo, gozar do regime desordenado da grande circulação, como jornalista e cronista, o que lhe permitiu ser um “acrobata incomparável da cultura pós-moderna”, segundo o ensaísta e crítico italiano Alfonso Berardinelli. Este sublinha que nenhum escritor italiano é hoje tão famoso a nível mundial, nem mesmo Carlo Collodi, o autor de Pinóquio. E para sustentar esta tese, mais do que aquela figura de homem de saber enciclopédico, atento às movimentações em diferentes níveis e mundos, estão os números, as vendas dos seus livros, tendo-se aventurado com um sucesso fenomenal naquele que é o género que há algumas décadas ainda parecia poder tudo: o romance.

Estava-se em 1980, Eco tinha 48 anos, e O Nome da Rosa demarcou com estratégica ilusão um horizonte a partir do qual tudo se confunde, todas as paisagens se emaranham, ali onde uma obra carregada de fulgor esotérico consegue trabalhar o mecanismo interno de miragens dentro da própria cultura, de forma a produzir afáveis caricaturas do mais exigente cânone literário.

Aquele romance que foi um dos últimos exemplos do triunfo do género no seu alcance universal, deixava também escancarada a porta a investidas futuras, distorcendo a perspetiva histórica e cosendo factos, curiosidades e suposições algo extravagantes a delírios absurdos, de modo a incitar a imaginação que, noutros momentos, se deixa fascinar e arrastar por grandes teses conspirativas.

A partir de uma certa altura, Umberto Eco adquiriu aquele brilho das grandes figuras incontestáveis, dos clássicos amadurecidos pela morte. O que o distinguia, mais do que a posição do “intelectual universal”, o último exemplar da supremacia da cultura europeia, era essa unanimidade que, mesmo tendo entrado numa condição algo mórbida, por efeito de decomposição se deixa espalhar ainda mais aos sete ventos.

Assim, como refere Berardinelli, se já ninguém se atrevia a falar mal dele, Eco “poderia ser definido como aquele que só é citado com o fim de se dizer que tem razão”. Esta cultura amorfa que se impõe de forma categórica e que pretende mais um efeito de intimidação, de pôr um ponto final em todos os argumentos e impedir que algo mais seja acrescentado, contestando a autoridade, as suas dominações e dependências, é precisamente aquilo que garante o perigo da cultura avançar num registo de embevecimento, tornando-se amorfa e abrindo caminho à tagarelice mais senil.

Nessa “combinação explícita e um tanto reles de manuais e crucigramas, de aulas universitárias e do tom folhetinesco”, Umberto Eco acabou por reclamar o papel de inventor da grande confusão entre planos que antes mal se tocavam, e nessa urdidura, a sua arma de eleição foram as analogias e as continuidades que traçou a torto e a direito, fosse entre a Antiguidade e a Modernidade, a tradição e a vanguarda, fosse entre os grandes clássicos, as obras fundacionais da cultura ocidental e os grandes bestsellers da cultura de massas. E é aí, ao pôr a tónica nas semelhanças, ao rechaçar as hierarquias e os juízos de valor, que a câmara de Eco funcionou como um perfeito álibi para essas ambições de um império que enfeitiça o grande público com a sua “irresistível vocação demagógica e populista”. Assim, depois da figura do intelectual empenhado, da qual Eco sempre desdenhou – “A única coisa que um intelectual pode fazer se a casa começa a arder é chamar os bombeiros”, disse ele –, a favor dos ventos do cinismo que não admitiam já uma presunção de verdadeira resistência ou sequer marginalidade neste campo, acenou-se com a promessa de um “sonho de abundância cultural inesgotável” para ir a par com a ilusão económica de um crescimento infinito, e assim foi inchando essa ilha de um tesouro enciclopédico transbordando de estranhas maravilhas e curiosidades fascinantes ao alcance de quem quer que lançasse o seu bote nestas águas.

Ora, além de isto autorizar a figura do intelectual ao sabor das tendências, esse que se faz valer do hedonismo frívolo e do abastardamento cultural para servir aos humores de um público que se move em debandada, esta elasticidade infinita aproveita-se deste ponto morto em que hoje nos encontramos, órfãos de utopias, tresandando sob os efeitos de “uma melancolia feita de crueldade reabsorvida” (E.M. Cioran). Assim, os intelectuais que caem nas graças do sistema mediático são precisamente aqueles que estão sempre dispostos a requentar mitos sem substância, a acenar com delírios novos, a servir-nos analgésicos de ordem mental, pílulas distrativas, consolos triviais.

A cultura adquire, assim, cada vez mais aquela superfície de espelho enevoado que permite a cada um confirmar as suas suspeitas sobre si mesmo e o mundo à sua volta. Tudo são súmulas, sínteses mais ou menos anódinas, dissolvendo as tensões, criando um plano de sobreposição e convivência entre posições contrárias, que assim se disputam amigavelmente numa ociosa partida de damas.

 

O grande propósito

Por mais admirável que fossem essas campanhas isoladas que travou Eco, Berardinelli faz-nos ver como, no todo, a sua obra acaba por funcionar mais como um sintoma, uma estratégia geral de adesão, permitindo-nos “ver com que felicidade o intelectual culto, o estudioso especializado, o académico, se libertou do peso da aristocracia cultural, abraçando com alívio a cultura de massas”.

Com a sua ânsia de tudo justificar, com as suas teorias que tudo abarcam e nivelam, até “pode ter parecido, no início, tratar-se de uma operação de ‘rejuvenescimento’ das disciplinas humanísticas, mas, mais tarde, viu-se que a ‘jogada’ era estender a todo o passado e a toda a tradição cultural os critérios de análise, o gosto e a lógica própria da cultura de massas (e da indústria cultural norte-americana)”, acrescenta o crítico italiano. Assim, o grande propósito de Eco, aquilo em que se empenhou acima de tudo, foi em tornar mais democrática a alta cultura, “tornar acessível e compreensível tudo aquilo que é opaco e profundo, traduzir em formas atuais o que parecia impor uma dimensão distinta de experiências intelectuais”.

Neste sentido, e para acabar de vez com aquela função de atrito que faz da cultura “uma escada que se sobe pelos degraus de si mesmo” (Jorge Roque), apresentando a todo o momento dificuldades, obstáculos que obrigam à superação das suas próprias limitações e preconceitos, o evangelho de Eco acabou por triunfar como a razão que justifica que se venda a alma, que se troque a disciplina por uma carreira de fátuas distrações. “Homologar é a sua paixão”, concluiu Berardinelli.

E hoje é evidente como a cultura se confunde com esses discursos que pretendem conferir um selo de garantia a qualquer “pastilha de êxtase”, de tal modo que qualquer fenómeno registado na escala da cultura de massas assume de imediato um valor de afirmação.

Esta sublimação de tudo, mesmo se se articula por meio de noções mais requintadas e que estabelecem linhas de contacto com as obras mais exigentes do património literário e filosófico, acabam por se parecer muito com o modelo das campanhas de marketing. Um exemplo bastante ilustrativo que Berardinelli nos oferece apanha Eco de volta do Manifesto comunista de Marx e Engels a exaltar o seu estilo formidável porque “sabe exaltar o tom apocalíptico com a ironia, slogans eficazes e explicações bastantes simples”, sendo uma obra que hoje se deveria estudar “na Faculdade de Publicidade”. A este respeito, é de notar como a larga maioria das editoras, mesmo quando propõem os grandes clássicos, recorrem a este regimente diluente do marketing, e quase parecem pedir desculpa pela dificuldade que essas fundações da alta cultura continuam a colocar hoje, sendo de esperar que, no futuro, todas possam ser substituídas por adaptações dirigidas ao público que, mesmo chegando à maioridade, nunca sai de um estado de compreensão juvenil.

E, numa altura, em que um efeito nostálgico varre tantas zonas do espaço cultural, compensando através de uma emoção imprecisa o vazio de crenças que caracteriza o nosso tempo, o livro é cada vez mais valorizado como essa “metáfora absoluta” da legibilidade do mundo, e isso leva a que se estabeleça à sua volta uma espécie de culto que se exprime da maneira mais eufórica e funambulesca possível. Deste modo, a incompetência para ler criticamente as obras é compensada com essas grandes ficções intertextuais, esses lençóis que cobrem todos os móveis de uma habitação deixada vazia, e que subsiste mais em nome de uma cada vez mais remota hipótese dessa residência de férias voltar a ser ocupada por alguma família de meios e que saiba respeitar a sua dignidade e passado aristocrático. Enquanto isso, as chaves ficam na mão de um feitor ou zelador, o qual se limita a abrir-lhe as portadas de tempos a tempos para a deixar respirar e conduzir alguns visitantes boquiabertos pelas suas divisões, tecendo essas apreciações vagas, cheias de alusões e referências aos lugares comuns da literatura. Esta é atualmente a condição do discurso sobre as obras literárias, e é frequente mesmo esse recurso à “metáfora absoluta” e cada vez mais inchada do livro, que, como dizia Umberto Eco, pertence à mesma categoria do que a colher, o martelo, a roda ou a tesoura, aqueles que depois de inventados, não há como fazer melhor.

 

Como seria um mundo sem livros? 

Para acicatar ainda mais esta tão proveitosa afabilidade pelo livro enquanto ficção genérica e, ao mesmo tempo, encarada nos seus efeitos mais benevolentes, como uma resposta para o efeito de desagregação de um mundo cada vez mais difícil de coser e colar numa lombada, dividido em capítulos, organizando as nossas melhores suspeitas sobre aquilo que se passa, acaba de se publicar em Espanha La memoria vegetal, uma reunião de artigos, ensaios e conferências que Eco dedicou ao livro. Além de colocar a questão de “como seria um mundo sem livros?”, um infalível detonador para a afetação nostálgica que domina hoje o discurso de promoção dos livros e da leitura, insiste que a função do livro não é apenas como o principal dique que os homens foram opondo ao longo de séculos contra o esquecimento, mas que, mais do que lembrar, este produz significados. Segundo ele, a operação que o livro permite passa por transformar as recordações, resgatá-las desse curso prolixo, em que surgem incompletas e num estado de confusão, para estabelecer uma sequência com ordem e sentido. Assim, Eco insiste que o livro não é um mero suporte, mas um acontecimento revestido de grande espessura ontológica, e que acompanha a própria ideia dos valores que, sendo transmitidos ao longo das gerações, colocando assim a imortalidade ao alcance de todos.

No texto que abre e dá o nome ao volume, Eco traça uma história e apologia do livro, especulando sobre o seu destino, advertindo para o perigo de a abundância de informação poder vir a gerar a absoluta ignorância.

Como prevenção, defende a importância de se restaurar a transcendência e singularidade do livro, lembrando o papel essencial que este desempenhou na constituição do indivíduo como célula básica das sociedades livres e plurais.

Depois, surge o habitual elenco de lugares comuns tão animadores e reconfortantes para quem se encontra nesse preciso momento com um livro aberto nas mãos, lembrando que através deste a escrita adquire uma dimensão pessoal. Quando o abrimos, diz Eco, “buscamos uma pessoa, uma maneira individual de ver as coisas”. Mas o livro não é só, assegura ele, uma garantia dessa parcialidade subjetiva de um ponto de vista, mas reside ali também uma certa autoridade, pois tudo o que aparece nas suas páginas nos parece fiável: “Hoje os livros são os nossos anciões.”

Ao longo daquelas páginas vão-se organizando esses jardins que resultam como sombras distantes e amenas das florestas húmidas e bem mais impenetráveis dos grandes textos, passeando-se ali esse deus bonançoso que nos induz a amar os livros, mesmo que não tenhamos tanto atrevimento que nos arrisquemos a traçar um percurso que nos embrenhe nos seus mais cerrados descaminhos.

Não podia por isso faltar a exaltação do livro como desafio ao poder absoluto, aos déspotas e tiranos que começaram por queimar livros incómodos, numa espécie de ensaio que acaba por conduzir geralmente ao massacre de opositores. “Começa-se sempre pelos livros”, lembra Eco, “e logo estão a abrir as câmaras de gás”. Aproveita também para contestar Platão, quando este defende que os livros significariam a destruição da memória dos homens, notando que não apenas não prejudicaram a memória, mas que lhe deram outra espessura, potenciando-a, já que cada livro suscita sempre novas interpretações e, portanto, “produz novos pensamentos”.

Eco acaba por rematar aquele primeiro ensaio, que é o coração da obra, explicando que a leitura constitui além do mais uma experiência fisiológica – e remete para uma passagem de Ulisses, de Joyce, em que Leopold Bloom lê na retrete, e os seus intestinos fazem por acompanhar o tom de cada parágrafo.

Os restantes artigos e conferências tocam temas como a bibliofilia, a bibliomania, as bibliotecas, os catálogos, os livros raros, os livros digitais. Dado a atração de um público que gosta de mergulhar numa espécie de líquido amniótico para se sentir envolvido num processo obscuro e sentir a representação mítica daquilo de que se ocupa, é de esperar que proliferem os livros sobre o prazer da leitura e todos os seus benefícios. Porque já não se trata de penetrar numa floresta de textos, mas sim numa floresta de espelhos.

E se uma das frases mais repetidas do semiólogo é aquela em que afirma que o drama da internet é o ter dado a palavra a legiões de idiotas, convertendo o tonto da aldeia em porta-voz da verdade, não é certo, como ele crê, que o livro delimite uma fronteira, a de um território vedando o caminho a esses novos bárbaros.

E aqui vale a pena lembrar um panfleto de Nietzsche, escrito pela mesma altura em que andava ocupado com O Nascimento da Tragédia. Em O futuro das nossas escolas, o filósofo alemão ataca a conceção moderna de cultura, falando numa “barbarização” das funções que lhe estavam a ser atribuídas. Por trás da miragem progressista de uma “cultura generalizada”, ele divisava a feroz determinação do Estado em criar bons funcionários. “A fábrica reina”, escreveu Nietzsche, e o editor e ensaísta Roberto Calasso sublinha que esta fórmula descreve já o século seguinte. E explica que quando se afirma que a cultura deve servir, já não é a cultura que é soberana, e sim a utilidade. “É suficiente começar a ver na cultura algo que é útil”, escreve Nietzsche, “muito em breve confundir-se-á o que é útil com a cultura”. E conclui, avisando que a cultura generalizada não demora a transformar-se em ódio contra a verdadeira cultura. Assim, se o grande propósito de Eco foi o de democratizar a alta cultura, e se elegeu o livro como o verdadeiro lugar de encontro e única pátria que nunca irá erguer muros para separar os homens, esqueceu-se como neste mundo moderno, dominado pelas manifestações de superfície e pela cultura de massas, por mais que os livros proliferem, estes nada podem contra a aversão à cultura de uma multidão informe que, alentada pelos números, logo reclama um acesso imediato às obras, exige que todos os obstáculos sejam removidos, e condena tudo o que lhe barre o caminho.

Assim, no mesmo momento em que se sente excluída, esta multidão que Eco tanto quis encorajar, logo revela a sua hostilidade à cultura por princípio, a ponto de a querer apenas destruir.