LONDRES. Estádios cheios. Confesso: precisava disso como quem precisa do produto viciante cujo consumo não se consegue abandonar. Não concebo futebol sem público como não concebo futebol sem bola. E, no entanto, ele joga-se. Sem público, claro, não sem bola. Foram os adeptos escoceses que trouxeram para os campos de futebol aquela extraordinária canção dos Monty Python composta por Eric Idle: “Always Look on the Bright Side of Life”. Foi isso que vi nas ruas e nos estádios em Budapeste e em Londres e nas calles de Sevilha. Só Munique ficou à parte, envolta numa burocrática melancolia de provocar aneurismas. “For life is quite absurd/And death’s the final word/You must always face the curtain with a bow”. Convenhamos que, de facto, a vida tem sido demasiado absurda no último ano e meio. Como gosta de dizer o povo aí do rectângulo atlântico, para Ruy Belo aquilo que o mar não quer, andámos todos aos papéis com uma gripe que não é bem uma gripe e, de repente, começou a matar gente como a Grande Peste de Londres de 1665, seguida pelo fogo gigantesco de 1666 que destruiu a cidade e quem nela vivia quase por completo. A essa maldição digna do antigo Egipto souberam os ingleses responder tornando-se, em seguida, donos do mundo e de mais uns pedaços, o Império no qual o sol nunca se punha, espalhando por toda a parte uma língua gramaticalmente tão prática que, hoje em dia, nenhum de nós consegue passar sem ela.
Nos últimos dias, a guerra de palavras foi endurecendo no Parlamento, nos jornais e nas televisões desde que o primeiro-ministro Boris Johnson resolveu afirmar que o Reino Unido ia abrandar consideravelmente as restrições a que tem sido sujeito. Aqui para nós, que passámos uma semana a andar por Londres, de Wembley a Wimbledon, passando por King’s Cross, Marylebone, Tottenham Court Road, Blackfriars e o diabo a quatro, a discussão parece um bocado fora da realidade com um dos diálogos de Alice do Outro Lado do Espelho, de Lewis Carroll: “Explain yourself!”, ordenava a Rainha de Copas. “I can explain myself”, retrucava Alice. “Because I’m not myself, you see?”. Ou qualquer coisa do género.
Explico-me: quando milhares e milhares de pessoas se empurram umas às outras e são empurradas pelos stewards para dentro das carruagens do metropolitano, ficando coladas como cavalas em lata, é absolutamente ridículo olhar para as paredes da composição e ler o aviso atinado: “Keep a safety distance!”.
Aliás, mais do que ridículo, é grotesco. Ninguém parece ter dúvidas que os ingleses vão pagar não tarda pela total liberdade que gozaram durante esta fase das meias-finais e finais do Euro. Ao mesmo tempo, quem os vê e quem os ouve na rua, nos pubs ou nas paragens de autocarro, não sente a mínima preocupação. Não é possível explicar porque não são realmente eles, estão a ver? Tal como nas páginas de Carroll, todos viveram uma vida falsa paralela às suas verdadeiras. E por isso, dispensavam os “Good morning” e os “How’ you, mate?” e limitavam-se a um cumprimento bem mais na moda: “It’s comin’ home”, diz um. “It’s coming!”, responde o outro. E quando chega o momento da despedida, basta um simple “It’s coming!”, para que fosse quase como um abraço bem apertado, coisa que não é muito própria de inglês, “if you know what I mean”.
LIBERDADE O futebol não regressou a casa porque a Itália levou-o com eles para as ruas das suas cidades alegres e belas. Uma hora depois de as grandes penalidades terem consagrado o novo campeão da Europa, a vaidosa squadra azzurra que um esteta do futebol, Roberto mancini, conseguiu retirar do buraco profundo onde tinha caído ao falhar a qualificação para o Mundial de 2018, na Rússia, a voz de Pavarotti ecoava pelas bancadas vazias do gigante de betão que é o Wembley de hoje: “Ma il mio mistero è chiuso in me/Il nome mio nessun saprà! (…)Tramontate, stelle! All’alba vincerò!/Vincerò! Vincerò!”.
Era esse o canto dos vencedores. Os que bradaram a felicidade por sobre os gritos de uma Britânia que pode ter reinado sobre as ondas em tempos que lá vão mas que, no futebol, continua apenas a prometer vitórias que continuam a não estar ao seu alcance.
Sejamos justos. O facto de os três jogos decisivos deste Europeu terem sido disputados em Londres, num estádio que recebeu 66 mil pessoas (tal como a Puskás Arena de Budapeste recebeu 67 mil), devolveu ao futebol aquilo de que ele necessita para respirar sem estar ligado à máquina de uma sobrevivência artificial. Um calor humano e um ambiente que os ingleses tornam únicos com os seus cantos, os seus apelos, as suas frases arrogantes mas, contudo, divertidas para quem aprendeu a conhecê-los. A Inglaterra será sempre, ganhe ou não ganhe, a selecção dos Três Leões, o lugar onde o futebol se sente verdadeiramente em casa. Por mais que os seus adeptos sejam agora fantasmas esfarrapados à espera que as carruagens de metropolitano a abarrotar os levem pelos caminhos do bar da última esperança, não esqueçamos a lição de Eric Idle: “Life’s a piece of shit/When you look at it/Life’s a laugh and death’s a joke, it’s true/You’ll see it’s all a show/Keep ‘em laughin’ as you go/Just remember that the last laugh is on you!”. E olhar sempre para o lado luminoso da vida.