O nosso Eça de Queiroz, o divino Eça, como gosto de lhe chamar, autor de algumas das mais inesquecíveis páginas da literatura mundial de todos os tempos, abriu, no Verão de 1955, uma guerra dos diabos entre os seus interpretadores e os seus editores internacionais.
A Inglaterra foi um dos seus lugares – cônsul em Newcastle de 1874 a 1878 e, em seguida, na mais amena Bristol, de 1878 a 1888. Catorze anos no total, durante os quais escreveu três dos seus romances, O Crime do Padre Amaro (de 1875 a 1880), O Primo Bazilio (1878) e A_Relíquia (de 1879 a 1887). Sabemos todos que, apesar de ser um profundo conhecedor da literatura inglesa, sempre foi mais influenciado pelos mestres franceses. E nunca o negou. Pelo contrário. Os ingleses, por seu lado, eram profundos desconhecedores da obra dele. Até que, de um dia para o outro, um sujeito chamado Roy Campbell, poeta, nascido na África do Sul, resolveu lançar-se à árdua tarefa de o traduzir para inglês. A Reinhard Editorial abriu-lhe as portas._Sem imaginar os sarilhos que estava prestes a arranjar.
Primeiro, os leitores ingleses gostaram. Mesmo muito. Num instante três dos livros do nosso Eça passavam de mão em mão por ávidos consumidores da sua ironia inimitável. Nas montras das livrarias, duas traduções de Campbell – Cousin Bazilio e The City and the Mountain – e uma de um lusófono furioso, Aubrey Bell – The Relic. Tudo isto em julho de 1955. Era de estalo!, como diria o Ega. Mas não tardaram a levantar-se vozes desancando na qualidade da tradução e na má interpretação dos temas expostos. A língua portuguesa pode não ser fácil, mas enfim, trabalho de profissionais não é para ser posto em causa.
Depois, alguém veio a terreiro recordar que em 1889 já o Eça tinha sido traduzido para inglês por um americano trapalhão que apresentou uma versão bacoca e mutilada de O_Primo Bazilio em Boston sob o título de The Dragon’s Teeth. Um autêntico assassínio da obra. Mas outro americano, este mais conceituado, o professor Edward Prestage, tinha feito uma tradução primorosa de O Suave Milagre – Sweet Miracle. Vendeu quatro edições no espaço de um mês, volume bastante considerável.
O professor Prestage tinha relações estreitas com Portugal. Era genro de Maria Amália e do poeta Gonçalves Crespo. Isso levou-o a querer levar Eça de Queiroz aos leitores ingleses de Inglaterra e não dos Estados Unidos. Entrou na lista das publicações britânicas com a apresentação, em Londres, do conto O Defunto com o título Our Lady of Pillar. Corria o ano de 1905. Como podia Roy Campbell andar a gabar-se de ser o primeiro tradutor do Eça para inglês se estas obras estavam disponíveis cinquenta anos antes? Era preciso descaramento. Um descaramento divino, diria o Alencar.
Outras versões
A pouco e pouco, o trabalho de Prestage, e dos ajudantes que entretanto arrebanhou, voltou à superfície. E outras versões da obra do enorme escritor português pareciam ser arrastadas pela corrente. Surgiu um exemplar de 1910 de O Suave Milagre depois de dramatizado por Alberto de Oliveira. A tradução tinha sido realizada por um grupo de freiras da Nôtre Dame de Paris e chegou a ser representada, em francês, como uma peça litúrgica.
Seguiu-se Douglas Ainsle, um poeta inglês, que deitou mão a O Defunto e o transformou em verso: A Friend in Need, publicado em Londres em 1911. Campbell ficava cada vez mais mal visto, vá lá saber-se se por descaro ou se por pura ignorância. Adiantamo-nos até ao ano de 1922. Prestage lança Pacheco em Oxford. Charles Marriott surge, no ano seguinte, com Perfection (Perfeição), uma edição tão, tão visível que até vinha profusamente ilustrada.
Quem ia tomando conta deste desfiar de aparições, não parava. Nem que fosse para apepinar o pobre Roy. Em Nova Iorque surge uma edição de 1925 de A Relíquia, The Relic, feita por Aubrey Bell. Campbell e a Reinhard tiveram de retirar dos escaparates a nota de que a sua era a primeira edição em inglês das desventuras do Raposão na Terra Santa, na companhia do dr. Topsius, da Imperial Alemanha, e de olho na herança da horrenda Titi. O português Luís Marques, jornalista, tinha, por sua vez, traduzido para inglês os contos José Matias e Um Homem de Talento.
Não mr. Campbell, decididamente não tinha sido o senhor a descobrir e a trazer a obra de Eça de Queiroz do ilegível português para o universal inglês. Apesar de tudo, apareceu quem o consolasse e acarinhasse. Campbell era profundamente apaixonado pela obra do Eça, ao ponto de ter vindo viver para Sintra e poder estudar, em Portugal, a literatura portuguesa. Que se fizesse justiça, apesar de ter posto o pé na poça. Com a ideia em mente de traduzir Os Maias foi conquistando cada vez mais a simpatia dos portugueses, sobretudo daqueles que discutiam na imprensa a qualidade das suas traduções. Houve quem se atravessasse fortemente por ele:_“Graças à sua iniciativa, o público inglês pode agora conhecer e apreciar devidamente, em acessíveis edições e através de traduções fluentes e fiéis, a grandeza criadora, o estilo e a técnica literária, a humanidade, a ironia e a acuidade da crítica social de um dos raros escritores portugueses de dimensão universal”.
Como sempre entre nós, a guerra limitou-se a ser de alecrim e manjerona. Seja bem vindo mr. Campbell!