Espanha-Itália. A morte de  uma crónica anunciada…

Espanha-Itália. A morte de uma crónica anunciada…


O tempo matou o cronista. Entregue à ditadura dos fechos, o prolongamento é, de forma angustiante, deixado para depois. Quando o 1-1 ainda prometia…


Pingos de chuva vão caindo sobre as teclas do computador e sobre o meu lugar na bancada de imprensa deste novo e gigantesco Wembley que, apesar de formidável, nunca me fará esquecer o outro. Mas, afinal, isto é Londres, a chuva não espanta ninguém. Se há algo que é certo ver quando se olha para o céu da capital da Inglatrra, isso são nuvens e aviões, embora o tráfego aéreo tenha sofrido uma forte queda por via da pandemia, sobretudo neste país que tanto teimou em fechar-se no isolamento da sua ilha que, de súbito, ontem no debate parlamentar se discutiu ferozmente a necessidade de amenizar as medidas de controlo. Para começar, surgiu uma notícia de fazer o povo soltar um “Hurrah!” de satisfação – os pubs ficarão abertos até mais tarde de forma a que os adeptos do futebol possam assistir aos jogos, mesmo que metam prolongamentos e penaltis.

O estádio foi-se compondo, devagarinho, à medida a que as pessoas iam ultrapassando as barreiras de controlo que chegavam a meter testes rápidos, tão rápidos que não demoravam mais de dois minutos. Se os italianos pareciam em superioridade numérica, e assim à vista desarmada, estavam mesmo, também se deveu ao facto de muitos cidadãos de outros países terem resolvido ficar do lado da “squadra azzurra” tal como pude comprovar no metropolitano pois havia muitas camisolas azuis envergadas por grupos que falavam outras línguas. Sinal que o futebol jogado pela equipa de Roberto Mancini tem sido do agrado da maior parte das pessoas. Não evitam que, do outro lado, por trás da baliza sul, os das camisolas vermelhas berrem: “La gente canta con ardor/Que viva España!”.

Wembley não encheu, nem era para encher, mas de repente estávamos numa arena rodeada por umas 60 mil pessoas, apenas o segundo anel praticamente vazio. Um jogo destes merecia povo à sua volta. E eu sentia-me particularmente curioso em entender qual dos dois opositores iria agredir o adversário em primeiro lugar. Sabe-se da tentação intrínseca que leva os espanhóis a ocuparem a posse da bola, ontem curiosamente prateada, mas esta é uma Itália capaz de começar a pressionar logo no meio-campo adversário e bem próximo da área. De qualquer forma, viu-se logo de início que ninguém estava ali para se fechar nas suas tamanquinhas. O medo não tinha lugar no fim da tarde de Wembley.

Obedecendo às raízes da sua idiossincrasia, a Espanha não tardou a avançar no terreno à custa da forma como entrelaçava os seus passes montando uma espécie de teia de aranha em redor dos italianos. Pode ser impressão de quem não está lá dentro, sobre o relvado, mas fica a sensação de que esse jogo feito de rendas de bilros lhes inspira uma confiança soberana e os faz sentirem-se superiores. Sabe-se, por outro lado, que sendo esta Itália arredia aos velhos estilos irritantemente defensivos, continua a possuir uma capacidade inusitada para golpes assassinos. É preciso cuidado, muito cuidado. E então a Espanha domina, mas não se expõe.

Ausência. Como geralmente acontece quando o golo não surge há tendência para uma crescente lentidão. As equipas encaixam-se e sentem-se confortáveis nesse ramerrão que lhes provoca uma ideia de segurança. Como dois pugilistas que vão desferindo golpes nas costelas e nos rins um do outro mesmo sabendo que isso não os leva ao KO.

A ausência de um ponta-de-lança autêntico, daqueles capazes de provocar urticárias a qualquer defesa fazia falta ao futebol de pantufas dos espanhóis. Chegados a metade do jogo, o perigo rondara com mais acuidade a baliza de Simón do que a de Donnaruma. Estávamos na altura de entrar definitivamente numa fase de decisões e era de esperar que Mancini ou Luis Enrique fizessem algo para garantirem lugar na final de domingo.

O golo! Esse gesto glorioso da alegria incontida. Faltava o golo. Mas, agora, corriam-se mais riscos. Os espectadores tinham fome desse golo do qual surgira ainda um autêntico lampejo. Os dois pugilistas procuram pontos mais sensíveis para se agredirem. Finalmente, e apesar dos cuidados, percebia-se que estava a chegar a hora de algo suceder e foi Chiesa que encheu as bancadas de uma tremenda felicidade azul com um remate em diagonal, bonito como L’Arcobaleno de Nicola di Bari, um arco-irís anil forte de cegar à primeira vista.

Logo depois, Espanha tornou-se raivosa. Não era por acaso que, em tempos, a sua selecção tinha a alcunha de A Fúria. Por uma, duas vezes, o empate foge-lhe por milímetros. A Itália encolhe-se. A vinte minutos do fim vai confiar na sua clássica capacidade de se defender, enquanto a Espanha já tem em campo o avançaado-centro que tanta falta lhe fizera, com Morata a entrar para o lugar de Ferrán Torres. O problema resolve-se com o golo do empate, em cima do minuto 80, por Morata, precisamente.

Agora é o tempo que desgraça o cronista. São praticamente dez horas da noite e o jornal precisa de ir para a gráfica impreterivelmente. Uma angústia de crónica adiada, de crónica amputada para que o leitor possa, pela manhã, ter nas mãos as suas páginas, mesmo que sem o resultado definitivo que, entretanto, já soube e, se calhar viu em directo. Um problema irresolúvel, no entanto, este trabalho que fica por fechar. Resta a certeza que, mais tarde, tudo voltará ao seu lugar.