O homem e a sua máscara


A máscara muda-nos. Esconde-nos. Quando há dias saí do aeroporto, de um avião quase vazio de tanta gente que deixou em terra, encontrei alguém munido, como eu, de uma autorização da UEFA para nos isentar da quarentena. Pela ligação óbvia metemos conversa depois de passarmos as alfândegas.


MUNIQUE – Enquanto espero uma hora e meia numa fila que parece não ter fim por mais um teste covid, fito as águas do rio Isar no seu caminho lento em direção ao Danúbio. Estou perto do Deutchmuseum e da Ludwigbrücken, as águas são verdes límpidas, quase transparente como os olhos de minha mãe, os ramos dos chorões caem em cascatas consecutivas sobre a corrente fraca e perco-me, como sempre, em memórias misturadas, como a do chorão que ficava na Casa das Conchas, no Lugar do Olival, entre a casa da arara e as gaiolas dos faisões dourados, nesse tempo em que a vida era plena como um nada e ainda não tinha aprendido o que era a morte. Numa sombra acolhedora, o namorado namora a namorada. Sem máscara. A máscara incomoda-me, estou sempre a sentir o próprio hálito e a tentar descobrir se está na hora de o alterar à conta de um café ou da escova dos dentes. A máscara muda-nos. Esconde-nos. Quando há dias saí do aeroporto, de um avião quase vazio de tanta gente que deixou em terra, encontrei alguém munido, como eu, de uma autorização da UEFA para nos isentar da quarentena. Pela ligação óbvia metemos conversa depois de passarmos as alfândegas. Coisas banais de desconhecidos na primeira taramela – o que fazes por aqui?, vais ao jogo?, qual é a tua função?, e o diabo a quatro. Achei que, pelo caminho, era de bom tom apresentar-me. O meu companheiro, espantou-se: “Afonso? És o Afonso de Melo? Não acredito. Há tanto tempo!”

Era o Vítor. Não o Vítor lá de Mafra, do tempo da tropa macaca, o Vítor Pereira, que foi presidente da arbitragem, e no seu tempo de árbitro, muito provavelmente o melhor de Portugal. Puxámos as máscaras para baixo: está magro como sempre, o cabelo já quase todo branco, uma barba rala. Não o via há mais de dez anos, acho. O Vítor que tantas vezes se predispôs a arbitrar jogos da equipa d’A Bola, por exemplo contra o L’Équipe, e ao qual devo ter dado umas bordoadas quando metia o pé na poça, como qualquer árbitro o faz, embora nunca tenha gasto muito tempo a falar de arbitragens nas crónicas que escrevia e continuo a escrever. Deixava a matéria para o Cruz dos Santos e para o seu “Viva o Árbitro”. Pois, as pauladas, se as dei, nunca mexeram com a nossa amizade. Era o trabalho dele e era o meu. Acredito que discordasse, mas nunca discutiu comigo algo que tenha levado a mal ou que o deixasse incomodado. Na Arena de Munique, esteve para observar a arbitragem de Slavko Vincic, da Eslovénia, trabalhando para a UEFA e obrigado a apresentar, no fim, um relatório do que viu. De certa forma, está agora no lugar do cronista que avalia uma arbitragem. Demos um abraço, cada um seguiu o seu caminho. O mundo mudou. Já não é mais o homem e as suas circunstâncias, como dizia Ortega y Gasset. É mais o homem e a sua máscara. Atrás da qual nos escondemos, todos nós.


O homem e a sua máscara


A máscara muda-nos. Esconde-nos. Quando há dias saí do aeroporto, de um avião quase vazio de tanta gente que deixou em terra, encontrei alguém munido, como eu, de uma autorização da UEFA para nos isentar da quarentena. Pela ligação óbvia metemos conversa depois de passarmos as alfândegas.


MUNIQUE – Enquanto espero uma hora e meia numa fila que parece não ter fim por mais um teste covid, fito as águas do rio Isar no seu caminho lento em direção ao Danúbio. Estou perto do Deutchmuseum e da Ludwigbrücken, as águas são verdes límpidas, quase transparente como os olhos de minha mãe, os ramos dos chorões caem em cascatas consecutivas sobre a corrente fraca e perco-me, como sempre, em memórias misturadas, como a do chorão que ficava na Casa das Conchas, no Lugar do Olival, entre a casa da arara e as gaiolas dos faisões dourados, nesse tempo em que a vida era plena como um nada e ainda não tinha aprendido o que era a morte. Numa sombra acolhedora, o namorado namora a namorada. Sem máscara. A máscara incomoda-me, estou sempre a sentir o próprio hálito e a tentar descobrir se está na hora de o alterar à conta de um café ou da escova dos dentes. A máscara muda-nos. Esconde-nos. Quando há dias saí do aeroporto, de um avião quase vazio de tanta gente que deixou em terra, encontrei alguém munido, como eu, de uma autorização da UEFA para nos isentar da quarentena. Pela ligação óbvia metemos conversa depois de passarmos as alfândegas. Coisas banais de desconhecidos na primeira taramela – o que fazes por aqui?, vais ao jogo?, qual é a tua função?, e o diabo a quatro. Achei que, pelo caminho, era de bom tom apresentar-me. O meu companheiro, espantou-se: “Afonso? És o Afonso de Melo? Não acredito. Há tanto tempo!”

Era o Vítor. Não o Vítor lá de Mafra, do tempo da tropa macaca, o Vítor Pereira, que foi presidente da arbitragem, e no seu tempo de árbitro, muito provavelmente o melhor de Portugal. Puxámos as máscaras para baixo: está magro como sempre, o cabelo já quase todo branco, uma barba rala. Não o via há mais de dez anos, acho. O Vítor que tantas vezes se predispôs a arbitrar jogos da equipa d’A Bola, por exemplo contra o L’Équipe, e ao qual devo ter dado umas bordoadas quando metia o pé na poça, como qualquer árbitro o faz, embora nunca tenha gasto muito tempo a falar de arbitragens nas crónicas que escrevia e continuo a escrever. Deixava a matéria para o Cruz dos Santos e para o seu “Viva o Árbitro”. Pois, as pauladas, se as dei, nunca mexeram com a nossa amizade. Era o trabalho dele e era o meu. Acredito que discordasse, mas nunca discutiu comigo algo que tenha levado a mal ou que o deixasse incomodado. Na Arena de Munique, esteve para observar a arbitragem de Slavko Vincic, da Eslovénia, trabalhando para a UEFA e obrigado a apresentar, no fim, um relatório do que viu. De certa forma, está agora no lugar do cronista que avalia uma arbitragem. Demos um abraço, cada um seguiu o seu caminho. O mundo mudou. Já não é mais o homem e as suas circunstâncias, como dizia Ortega y Gasset. É mais o homem e a sua máscara. Atrás da qual nos escondemos, todos nós.