David Bonneville abre o Festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira

David Bonneville abre o Festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira


A primeira longa metragem do realizador David Bonneville, O Último Banho, assinalou a abertura do Festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira a decorrer no auditório da biblioteca municipal da mesma localidade.


Depois da estreia mundial em competição no Festival de Tóquio e de estar presente na secção oficial do Mostra de São Paulo, O Último Banho que esteve nomeado para o Prémio Ingmar Bergman no Festival de Gotemburgo na Suécia chega agora a todos os cinemas nacionais já no dia 1 de julho. 

Este ano, entre 27 de junho e 4 de julho, celebra-se o vigésimo terceiro ano do Festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira, que por força da pandemia viu no ano passado os seus projetos culturais cancelados.

Sessenta filmes. Dois países. Uma língua. A mesma língua de onde Virgílio Ferreira via o mar. “Da minha língua vê-se o mar”. Da língua cinematográfica, vê-se o mundo. O mundo por inteiro. 

Vivemos um tempo desastroso e trágico para a cultura, mas mais trágico seria outro ano consecutivo sem um festival tão notável como este.

Para Américo Santos, diretor deste projeto «este é um festival em equilíbrio, em descoberta. É um laboratório de descobertas.»

Disso não há a menor dúvida e talvez a maior descoberta seja O Último Banho, um filme magistral que tem como pano de fundo o Douro. O Douro que o público já tinha saudade de ver no grande ecrã. O Douro que nos rasga a respiração, que nos mastiga aos socalcos. Mas o Douro de Bonneville é mais do que uma paisagem onde uma história se movimenta. É um regresso, um abismo, um mistério.

«Escolhi o Douro para situar esta família porque encerra um mistério, uma sensualidade e um isolamento que é paradigmático ao contexto das personagens.»

Josefina é uma mulher de quarenta anos, freira que mora no Porto e chefia um convento, que por ordem do tribunal acolhe meninas órfãs ou desfavorecidas. Quando o seu pai morre, ela vê-se a braços com uma situação que irá mudar o rumo da sua vida. Alexandre, o seu belo sobrinho, de um momento para o outro vê-se sozinho, porque a sua mãe, Ângela, várias vezes o tinha abandonado. Sem o avô, Alexandre só tem Josefina para o amparar. Mas entre os dois nasce um amor que vai para lá das convencionais relações familiares.

De acordo com o realizador, «Todos os personagens se reencontram no seio desta paisagem singular, que é também protagonista do filme. Embora noutro distrito, é também no Douro onde se situa um dos mais belos e consistentes filmes de Manoel de Oliveira – O Vale Abraão. Embora O Último Banho não tenha relação direta com O Vale Abraão, nem o facto de ter trabalhado com o Mestre em 2003, é interessante notar como as duas histórias abordam a questão do desejo e das pulsões no feminino.»

Anabela Moreira, atriz que já deu provas em Fátima, Os Filhos Do Rock ou Noite Escura desempenha um papel magnificente ao dar vida a Josefina. Os seus gestos e o seu carisma imprimem na personagem uma força singular que mesmo nos momentos de silêncio reconduzem-nos ao âmago do filme. À interioridade mais recôndita, a feminina, a do Douro, mas também à interioridade dos dilemas de cada um.

É importante ressalvar que estes momentos de silêncio nunca nos são inacessíveis, pelo contrário. O espectador comunga estes silêncios como se comungasse as suas próprias renúncias. Porque acima de tudo é de renúncias a que tudo se resume. Josefina renúncia a vida religiosa, a sua feminilidade e uma atração física pelo sobrinho Alexandre interpretado pelo talentoso Martim Canavarro. Por sua vez, Ângela (interpretada por Margarida Moreira) renúncia a maternidade por uma vida melhor longe da província, ao passo que Alexandre também renunciará a certa altura o amor maternal em prol da companhia de Josefina e da terra que o viu nascer. Por isso, não há como não empreender uma reflexão profundamente metafórica do filme, quando a todo momento assistimos a uma dupla natureza que se crucifica, que se auto penitencia.

São imagens chocantes como a das marcas do cilício nas coxas de Josefina ou a dos banhos que nos rebocam para as catacumbas desse confronto dilacerante. Também a cena em que Josefina corta o cabelo a Alexandre, não deixa de ser altamente metafórica. Não há como não recordar a cena bíblica de Sansão ou de fazer um paralelismo entre os pés descalços e a sangrar de Alexandre por entre as encostas secas e poeirentas com a figura dos discípulos de Cristo.

Os pés como chagas vivas, os pés frágeis que nos mantêm no caminho, mesmo que esse caminho seja o maior e mais pecaminoso dos desvios. 

As orações sussurradas, as jaculatórias, a cena da procissão ou a constante presença de imagens alusivas à igreja, mais do que nos levarem em braços ao encontro e à conversão do catolicismo, empurram-nos para o seio de uma corporalidade interrompida. Uma corporalidade por consumar. Mas é esta não consumação que nos sustém até à última cena, até ao último banho. É esta não consumação do desejo que nos hipnotiza.

«É para que vejam como o cinema é uma espécie de hipnotismo.» Palavras de Buñel que se adequam na perfeição a este enredo impregnado de símbolos, secretismo e de uma plasticidade estonteante. Porque quer seja entre quatro paredes, nas vinhas ou nas ruas da Batalha na baixa portuense, acompanhamos a mímica sedutora da câmara, que se arrasta ora melancólica, ora furtivamente por todos os ambientes, sem nunca deixar a mínima brecha aberta à monotonia ou à ausência de ritmo.

O Último Banho está por todas as razões acima mencionadas longe de ser uma simples história passada numa região vinhateira. Aqui a sua geografia está para além dos cachos de uvas. A singularidade geográfica deste filme espelha-se no tempo da adolescência, da origem, das contradições. O tempo da dúvida e do impulso, e ainda assim, da revelação.