José Cardoso Pires, o lavagante e o caixão biográfico

José Cardoso Pires, o lavagante e o caixão biográfico


Com uma recepção que, mais do que calorosa, se mostrou despudoradamente sensacionalista, a recente biografia de José Cardoso Pires e o entusiasmo à sua volta assinalam um desejo de encerrar a literatura no claustro de um anedotário provinciano.


Antes o remédio era aguardar. Quem vivesse veria. Era uma esperança que havia, bem geral, mas às vezes certa, de que as coisas assentassem, e fosse possível enfim retirar delas uma leitura dada por justa. Mas se hoje ainda se vive, isso quer só dizer: anda-se por cá. No mais, cada vez menos se vê com clareza seja o que for. Que engulho se pôs em tudo, na mais mínima coisa. E neste esforço de afinar a graduação, para que o tanto que nos assalta a vista não nos perca inteiramente, não nos leve o juízo, quando os jornais apertam ao nosso redor uma casa de loucos, numas gritarias publicitárias, damo-nos conta de que já nem o avançado das horas nos relatam. Entre técnicas de promoção comercial, naquele regime que manda bater em latas, inquietar meio mundo, e com um aproveitamento dos recursos em que o escriba já faz as vezes de ardina, e anda aí desaustinado, gritando-se, conta ainda com o acompanhamento dos colegas na parada, todos de trombone. Ora, disso tudo, como era hábito nos tempos mais difíceis, faz-se um gorro de papel de jornal antes de nos virarmos para o universo mais humilde dos livros, ali onde o sentido sabe valer-se de umas persistências extravagantes. Vem isto a propósito não tanto da biografia de José Cardoso Pires, “Integrado Marginal” (ed. Contraponto), mas mais do foguetório envolvendo o aparecimento daquilo que, na base, não passa de um encontro desabitado, um somar de peles para fazer o casaco a um mito que acabou ficando curto. E vai daí, se as medidas não dão para fazer a gala, sempre se pode vir com medidas exaustivas, ir dar a volta ao bilhar grande, relatar em tantos capítulos o que foi sendo da vida e de quem lá andava, vestindo a coisa naquele tom sisudo e soleníssimo, como é próprio das aspirações em que vão cosendo, hoje, os que nos pretendem vir contar histórias.

Se alguns tomam tudo isto por algo de inofensivo, basta notar que António Araújo, jurista e historiador, consultor presidencial e director das publicações da Fundação Francisco Manuel dos Santos, depois de ter lido a biografia, não só não lhe poupava elogios como ia ao ponto de aventar a hipótese de, na vertigem que tem visto Cardoso Pires arrastado para o leito do olvido, ser de esperar que se salvem não mais que umas páginas de memória e de crónica, como sejam as de “De Profundis, Valsa Lenta” e “Lisboa, Livro de Bordo”. E alvitra ainda isto: “É possível, até provável, que esta excelente biografia de Bruno Vieira Amaral dure mais do que as novelas do seu biografado. O futuro (e talvez já o presente) tenderá a ver José Cardoso Pires mais como figura-tipo de escritor de uma dada época do que como um ficcionista merecedor de leitura e admiração.”

Aqui, Cardoso Pires aconselharia os de hoje a terem maneiras e pensarem pianinho, pois que os seus juízos, indiferentes e brutais, exprimem mais esse vazio de quem assiste à concatenação de todos os finais, e dá pela esperança de outrora revirada, vestida do avesso, nesta “horrível ausência de não serem nunca olhados os actos, os nossos, e os poderes que eles exprimem” (Herberto Helder). E se insistem tantos que não há mal algum nestas coisas, que na pior das hipóteses não passam dos naturais dislates de um tempo precário que tem só o orgulho de pataco de chegar depois, de assumir o privilégio de uma perspectiva ulterior, mas que tudo isto funciona, afinal, para a promoção da cultura, é preciso notar o quão pouco nos animam a ler, e como são cada vez mais os apontamentos extra-literários aqueles que prevalecem na apreciação do que fica e do que é apagado, a um tal ponto em que cada vez menos nos jornais ou nas vizinhanças é admitida margem de manobra ao cultivo feroz dessa paciência ameaçada, impetuosa, que põe o máximo de si no mínimo, impondo um estranho alento ao que se vai dilucidando “nas entrecosturas da consciência”.

Outros imaginam que Cardoso Pires está a ter o que merecia, pois gastou-se demais nestas manigâncias. E, contudo, das suas páginas, se de facto nelas deitarmos os olhos, além da vislumbrada malícia de si mesmo, da sua visagem martelada, máscara prevenida, e das assimetrias de quem se talhou ao azar, por muito tempo ainda delas se retirará essa raiva e fumos densos o suficiente para enxotar esses ânimos que hoje se põem a abelhar qualquer cadáver mais sonante e bem posicionado para interpretar certa época. Mas para aproveitar à reanimação de um amaldiçoado discurso, de uma prática e de um apego hoje malvistos pelo cinismo de um tempo amortalhado entre diagnósticos e balanços cruéis, vejamos como nas páginas de um texto que Cardoso Pires deixou inédito, e que só se publicaria postumamente, em 2008, numa edição do semanário Sol, com o título “Lavagante, encontro desabitado” (ed. Nelson de Matos), ele arranca contornos para uma alegoria perversa, que ilustra bem como este tempo, com a sua devoradora ânsia, “aperfeiçoa a presa”, acomodando-a aos seus desejos. Nesta fábula predatória, o narrador sugere-nos como na forma de um bicho da Criação muitas vezes se espreita essa imagem primitiva do homem no modo como “trabalha a presa à semelhança do seu mito”. Uma das personagens vai-nos explicando, assim, que “o lavagante é principalmente um animal de tenebrosa memória, paciente e obstinado, e terrível nos seus desígnios”. Mas mais que a descrição deste crustáceo primitivo, sem grandes requintes na cozinha, interessa-lhe iluminar as trevas onde este desenvolveu um modo muito particular de cercar a sua presa, contando-nos “como ele serve o safio que está nas tocas submersas levando-lhe comida a todas as horas, e como a sua existência anda presa a essa serpente estúpida de grandes sonos, vendo-a engordar, engordar, até saber que a tem bloqueada, incapaz de sair do buraco porque o corpo cresceu de mais, enovelou-se, e não cabe na abertura por onde podia libertar-se”. E logo conclui, através da voz de uma personagem: “Nesse momento, fica sabendo, o lavagante servil aparece à boca da toca do safio mas já não traz comida. Vem de garras afiadas devorar o grande prisioneiro que alimentou durante tanto tempo.”

Neste ambiente de feira sem música, nesta procissão de vozes no escuro, para usar outra das imagens da obra citada, pode até vir a confirmar-se que Cardoso Pires não chegou a ser outra coisa que não um escriba doméstico sem importância de mais aléns, como sentenciou Luiz Pacheco, mas convém que esse juízo não nos seja apresentado por “uma testemunha ensonada da narrativa”, “com os olhos mortiços a piscarem molemente”, uma que se desfia sem se dar conta de como está ela mesma contida naquele mundo, e pode até ser mais pobre a sua existência do que a das personagens de ficção que diz não terem tanto peso assim para merecerem a sua leitura e admiração. E se, porventura, o destino da obra ficcional de Cardoso Pires puder ser o de acabar esquecida, mesmo assim, responderia ele, “olha, mesmo assim lavrámos duas ou três linhas cardiais que não vai ser fácil apagar tão cedo”.

Com toda a sua obstinação, essa de quem não largava a frase, esbofeteando e revistando-a de cada vez, obrigando a que voltasse ao princípio, insistindo para si que a mais ínfima das distâncias em literatura pode tornar-se uma armadilha eterna, com a sua memória também e o seu mau perder, defendia-se: “Jogámo-nos, ficou escrito, na grande passada e por cima de toda a folha. Andámos por horas do diabo, entre fantasmas e ciladas. Perdemos o pé, emendámos a mão – corrigimo-la pelo lado difícil e confiante que é aquele que não se hipoteca à Outra Senhora.”

Frente à superficialidade e ocasionalismo dos juízos que se tornam tão mais severos quanto se abandonam ao consumo de produtos literários que alimentam precisamente esses amolecimentos viciosos da consciência mais cómoda, palaciana, que serve para praticar a comichosa vigilância de um quotidiano cada vez mais sentido na sua condição protocolar, ficará difícil perceber o investimento de quem escrevia munindo-se da ambição de “estender o coração para longe do tempo”. E como, mais do que estratagemas para acomodar a presa, engordá-la, procurou escapar a essa pobre ficção que é a venenosa sobranceria de um tempo que, afinal, se mostra bastante apagado, e que torce o nariz diante de quem, mesmo morto, continua a lançar-se, inteiro e definitivo, contra um mundo velho e feroz. E o mais curioso é como estes juízes, tão entusiásticos em relação ao que vai surgindo por aí, nesse cultivo documental do passado, vistoriando, amodorrando-se, se leem e releem "a si mesmos e uns aos outros até ao enjoo da própria complacência” (Jorge de Sena). Mas acabam sempre dependentes do passado para essa visão vesga, enfeitada e ainda mais sufocante, de tal modo que a ideia da literatura é cada vez mais sepultada debaixo de uma noção mecanicista e individualista, servindo os banais efeitos de propaganda e assistência aos programas de boa índole, o mais refinadamente demagógicos, promovendo os disciplinados agentes de uma ordem que nada contesta. E enquanto se celebram estes, há “uma certa densidade literária, um respirar secreto” que se vai perdendo na vida das letras em geral. Persistimos no ambiente de “Delírio e Agonia da Sociedade de Consumo”, e prova disso foi a operação mediática concertada destes homens-lavagante, formando-se a habitual “procissão provinciana da nossa intelligentzia cosmopolita”.

“Só lhes interessa o que é passado para não comprometerem o presente em vigor”, notava Cardoso Pires a propósito do regime da “necrofilia literária” há muito praticada entre nós. “E, vai daí, vestem de luto a História da Literatura, que se transforma numa espécie de museu com legendas de requiem”. Mas o sinal de que a degradação tem conduzido a um modelo de exaltação pindérica é a catadupa de textos na imprensa que, espremidos, para lá da exaltação ao calhamaço de seiscentas páginas, não fizeram mais do que engordar o perfil grosso e cansado do escritor noctívago, boémio, brigão, e depois também “monástico”, por estar comprometido até ao limite com a sua arte.

Seja como for, se tantos linguados de prosa se ensaiaram neste concerto com vista à promoção da biografia assinada por um deles, o que ficou a faltar foi um vislumbre daquele rasgo que “conduz a mão e a torna imaginativa”. E o que se prova é que, por estes dias, formigando à margem de tudo, contentes, estas figurinhas persistem dobradas ao peso da História, sem grande capacidade de exame ou sobressalto, e com cada vez menos talento para interromper o curso da sua condição entristecida e fastidiosa. Assim, com mais de duas décadas sobre a morte de Cardoso Pires, e por mais que se encham de entusiasmo nesta ronda homenageante que poderá bem ser o último prego no caixão, poucos como ele poderiam ter subscrito com tamanha ênfase a frase de Francisco Umbral, outro virtuoso da prosa burilada que fez dos jornais algo mais que uma chã oração matinal: “Amo esta máquina, este pequeno ente de ferro e literatura que é como o esqueleto de um pequeno animal, a ossatura de uma metáfora.”