Fazia falta uma música de fundo, do Ennio Morricone, a harmónica a ecoar pelo meio de um calor fervente. Sevilha: a cidade que pede meças ao Inferno no que ao calor diz respeito. É esse o destino próximo da Selecção Nacional que, anteontem, à custa de um esforçadíssimo empate contra a França, garantiu a passagem aos oitavos-de-final deste Campeonato da Europa para se medir com a Bélgica no próximo domingo, pelas 20h de Lisboa.
Há que dizer que o apuramento português não foi mais do que o cumprir de uma obrigação. É verdade que tinha a França campeã do mundo e a Alemanha no grupo, mas o terceiro lugar podia garantir, como garantiu, a qualificação. Acrescente-se a Hungria, com a qual Portugal jogou no Puskás Arena de Budapeste, cheio com mais de 60 mil pessoas, fornecendo um ambiente hostil que, por pura estupidez de um grupo nacionalista bacoco, que ocupou os lugares atrás da baliza sul, meteu insultos sexistas a Ronaldo de uma forma que só pensávamos ser possível vinda de um bando de babuínos. A Hungria, como equipa, que nada tem que ver com as macacadas dos seus adeptos imbecis, acabou por ser uma surpresa. Viu-se batida por Portugal com três golos à beirinha do fim do jogo, empatou com a França (1-1) aqui em Budapeste, e foi a Munique (2-2) dar água pela barba a uns germânicos impantes como o dr. Topsius da Imperial Alemanha, d’A Relíquia do divino Eça, depois de nos terem presenteado não apenas com quatro golos mas com um atropelo físico digno dos velhos comboios do Reich. Aliás, foi esse jogo em carrossel entre alemães e húngaros que redobrou a excitação vivida durante o Portugal-França, com os portugueses a saberem das duas vezes que a Hungria esteve em vantagem no marcador, relegando-nos para o último lugar do grupo se não batêssemos os franceses.
Andaluzia Fernando Santos tinha prometido alterações no onze de Portugal (coisa que é tão frequente nele que o que nos deixou admirados foi ter utilizado os mesmos titulares nos dois primeiros jogos) e com a troca de William Carvalho e Bruno Fernandes por João Moutinho e Renato Sanches, a selecção nacional ganhou uma consistência no meio-campo que ainda não se tinha visto até então, seja porque Moutinho impede a queda na vertigem, temporizando os movimentos de contra-ataque, seja porque só Renato Sanches se podia bater fisicamente de igual para igual contra os dois blocos de ébano que são Pogba e Kanté, algo que fez com uma categoria que parece devolvê-lo aos tempos em que tinha tudo para ser um dos bons médios do futebol do mundo.
O Portugal do trabalho, da luta por todos os espaços de terreno, da unidade e do companheirismo, foi capaz de defrontar a França cara a cara, sem medos nem tremedeiras. Recuperou o crédito gasto em Munique e surgirá, face à Bélgica, com todas as possibilidades em aberto para seguir para os quartos-de-final. Na Andaluzia, essa província do sul de Espanha que já foi terra dos sem-terra ao tempo das invasões das tribos germânicas, com os vândalos à cabeça. Enquanto os alanos se instalavam na que é agora a Catalunha – o nome vem de Got-Alânia –, outros caminharm mais para sul, onde existira a Bética dos romanos e que recebeu o nome de Lanlöse, precisamente o Lugar-dos-Sem-Terra, que os árabes transformaram depois em Al-Andalus.
Se Budapeste é, nestes dias, uma cidade que ferve, atirando sobre nós temperaturas a rondar os 37 graus, tão secas que nos sufocam a garganta e exigem uma cerveja gelada que permita o natural funcionamento das amígdalas, Sevilha será o forno do costume, terra cantada por Federico García Lorca, o homem que abominava o universo das coisas chatas: “Eu não gostaria que entrasse na sala essa terrível mosca do aborrecimento que costura todas as cabeças com um fio ténue de sono e põe nos olhos dos ouvintes pequenos tufos de pontas de alfinete”.
O Portugal-Bélgica, assim à distância, tem tudo para não ser um jogo picado pela mosca do aborrecimento. Se muitos adeptos e críticos afirmam com a convicção testuda de que esta é a melhor Selecção Portuguesa de todos os tempos, o que dizer dos belgas? Quem anda pelas estradas da minha geração, recorda-se de uma outra Bélgica, dos anos-80, aquela que chegou á final do Campeonato da Europa de 1980, em Itália, perdendo para a Alemanha por 1-2, e que abriu o Campeonato do Mundo de 1982, no jogo inaugural contra a campeã Argentina, já com Maradona, com uma vitória por 1-0 e um planeamento táctico que elevou a forma de deixar os adversários fora-de-jogo ao cúmulo da perfeição. Mas é uma Bélgica diferente, esta. É uma equipa ousada, de jogo entrançado, com elementos de excepção como são os casos de De Bruyne (talvez o melhor médio ofensivo do mundo), Lukaku e Eden Hazard, a despeito das duas últimas épocas terríveis durante as quais passou meses a fio lesionado. Vimo-los jogar no último Mundial, na Rússia, e só um estranho complexo de Pequeno Polegar os travou nas meias-finais face à França, num jogo em que praticamente não entraram em campo. Não, nada leva a crer que estejamos perante uma partida de futebol da qual a mosca do aborrecimento faça parte. Ficará molemente caindo nos copos de cerveja enquanto o Inferno toma conta de Sevilha, a cidade sua irmã.