Foram poucos os que ficaram pelo caminho: os seis últimos dos grupos e os dois piores terceiros de todos. Oito selecções apenas saíram pela porta do cavalo deste Europeu confuso que nos obriga, a cada golo que entra ou a cada bola que bate na trave, a cancelar viagens e hotéis de um lado e remarcá-las noutro completamente diferente. Foi já há muitos anos que Michel Platini, ainda presidente da UEFA, avançou com a ideia peregrina de termos uma fase final de um Campeonato da Europa jogada do Atlântico aos Urais. O tempo passou, Platini foi afastado do seu cargo por suspeitas de corrupção no voto dado pela França ao Qatar para a organização do Mundial de 2022, o projecto tinha caído no poço do olvido até que alguém resolveu recuperá-lo e pô-lo em prática. Não chegámos ao Atlântico, porque nenhuma cidade portuguesa se mostrou interessada em receber jogos, mas chegou à Ishbiliya dos árabes, à Hispalis dos romanos e de Cipião O Africano, vencedor dos cartagineses – a Sevilha dos dias que correm e onde Portugal e Bélgica disputam, já no próximo domingo, a passagem aos quartos-de-final –, e se não foi até aos Urais, foi até às margens do Mar Cáspio e a Baku, capital do Azerbaijão.
Sobraram, portanto, e reatando a conversa, dezasseis selecções ainda vivas, e seis cidades: Budapeste (que recebe o Holanda-República Checa); Londres (Inglaterra-Alemanha e Itália-Áustria); Amesterdão (País de Gales-Dinamarca); Bucareste (França-Suíça); Copenhaga (Croácia-Espanha) e Glasgow (Suécia-Ucrânia), pois que de Sevilha já falámos. Depois, nos quartos-de-final, ressuscitam quatro cidades para albegarem os jogos: Munique, São Petersburgo, Baku e Roma. É como se a confusão se restabelecesse antes de chegarmos às meias-finais e à final, que terão lugar no Estádio de Wembley, em Londres, fazendo deste Reino Unido pós-Brexit o centro privilegiado do Europeu.
Antes de defrontar a França, abriam-se à frente da Selecção Nacional as possibilidades de Londres, Bucareste e Sevilha, com a permanência em Budapeste a poder ser uma realidade concreta. Na soma de todos os resultados, o Destino chutou-nos para Sevilha, o mais próximo de casa que seria possível. E agora, deixou de haver lugar para surpresas: em caso de derrota, é o costume, entra a malta de férias; em caso de vitória, voltamos a Munique para, no dia 2 de Julho, defrontarmos o vencedor do Itália-Áustria.
Temos assim, por certo, que ao contrário do que aconteceu há cinco anos, não existe neste Europeu o tal “caminho das pedras” do velho calembur, e que não vamos ter pela frente Polónia, Croácia ou País de Gales. No caso de eliminarmos a Bélgica, número 1 do ranking da FIFA actualmente, toca-nos um daqueles bichos ruins que nos costuma atazanar a existência ano após ano, desde o início dos tempos, embora, curiosamente, tenha sido sobre a Itália a primeira vitória da centenária Selecção Nacional e tenhamos resolvido bem os problemas que (não) nos causou na anterior Liga das Nações.
Bélgica Deixemos isso, por agora. É da Bélgica que se tem de falar, e o primeiro encontro entre ambos data de 1930. No total de todas as partidas, seis vitórias para Portugal, cinco para os belgas, e sete empates, um equilíbrio quase perfeito e que assim se tornará se a Bélgica vencer o encontro de domingo.
Os últimos jogos já foram há três e cinco anos, ambos de preparação, um para o Europeu de 2016 e outro para o Mundial de 2018 – vitória por 2-1 a 29 de Março de 2016 e empate a zero a 2 de Junho de 2018. Resta-nos o suave consolo de não termos sido derrotados nos últimos cinco confrontos, com a derradeira derrota a registar-se no longínquo ano de 1989, na fase de apuramento para o Mundial de 1990, em Itália, por 0-3.
Entremos um pouco pelos cadernos da História. No dia 8 de Junho de 1930, a Selecção Nacional estava em Antuérpia. Como era costume, o futebol português andava em pé de guerra e a Associação de Futebol de Lisboa recusava a presença dos jogadores por ela inscritos na equipa nacional. O Belenenses ficou do lado da AFL. O Benfica e o Sporting numas meias-tintas de vai não vai. A verdade é que se formaram dois conjuntos, uma equipa A e uma equipa B, a A com destino à Bélgica, a B em direcção a Marrocos. Muitas penas ilustres reclamaram nas páginas dos jornais que fazer digressões pelo estrangeiro naquelas condições só servia para pôr em causa o nosso prestígio internacional, como se ele fosse grande. Enfim. Os belgas trataram de ganhar o jogo por 2-1, com o golo de Portugal a ser apontado por Armando Martins, avançado do Vitória de Setúbal. Obrigados a jogar a maior parte do encontro sem Mendes, que saíra lesionado, batemo-nos como pudemos. Um ano mais tarde, no dia 31 de maio de 1931, foi a vez de recebermos a Bélgica em Lisboa e foi a vez de gaharmos, por 3-2, golos de Armando Martins, Vítor Silva e Pinga. Passar-se-iam vinte anos até que nos voltássemos a encontrar.
De todos os dezoito desafios disputados entre Portugal e Bélgica, o mais dramático foi, sem dúvida, o de 21 de novembro de 1971, no Estádio da Luz. Tratava-se da fase de qualificação para a fase final do Europeu (que seria precisamente na Bélgica – só no fim da qualificação se elegia o organizador de entre os apurados) e estávamos no Grupo 5, juntamente com a dita Bélgica, a Escócia e a Dinamarca. A recente derrota em Glasgow obrigava a uma vitória por dois golos de diferença face aos belgas. O regresso de José Torres, então no V. Setúbal, à equipa das quinas, seria o grande motivo de discussão. Com ele, das margens do Sado, vinha também Octávio, pela primeira vez convocado para os AA. O “anão e o gigante”, chamavam-lhes, glosando a diferença de estaturas. Foi, por assim dizer, uma equipa de saudades, a que entrou no relvado da Luz em redor do qual se empilharam mais de 70.000 pessoas.
Com Jaime Graça, Peres e Simões no meio-campo, esperava-se que um ataque no qual Nené, o mais extremo dos extremos portugueses, como era então considerado, fazia o papel de José Augusto e companhia à velha dupla Torres e Eusébio. Só que a Pantera Negra, mais uma vez injectado a Novocaína, para suportar as dores de outra lesão incapacitante, não foi sequer a sombra de si próprio, e Portugal não conseguia abrir buracos na resistência belga. Depois, a ferocidade do contra-ataque adversário, a cargo de Van Himst e Lambert, provocaria os seus estragos: a Bélgica marcou, exactamente por Lambert, aos 61 minutos.
As substituições operadas ao intervalo por Pedroto tinham sido verdadeiramente suicidas: o defesa-direito, Malta da Silva, foi sacrificado em prol de um médio, Octávio; Artur Jorge rendeu Nené. Tinha sido um tudo ou nada que dera em… nada. Jogando com apenas três defesas, Portugal sujeitou-se ainda mais ao contra-golpe contrário. Sem Nené na direita, com Simões muito recuado, o seu futebol afunilava-se em direcção à grande-área do guarda-redes Piot. Uma mão de Stassart provocaria, no último minuto, o penalti que nos salvava da derrota.
Eusébio, o grande Eusébio, absolutamente incapacitado, recusa-se a marcar um daqueles golos que, para si, sempre fora de uma facilidade ligeira. É Peres que toma o seu lugar. O público da Luz assobia cruelmente aquele que fora a alegria do povo português por tantas e tantas vezes. Com a nobreza com que sempre viveu o futebol, Eusébio não se refugiou em desculpas: “Fiz o pior jogo da minha vida. Sinto-me culpado por não termos ganho. Nunca joguei tão mal!” E, dirigindo-se ao seleccionador: “Senhor Gomes da Silva, perdoe-me a minha exibição! Fiz tudo o que estava ao meu alcance, mas a inspiração não veio”. Mais um vez, Portugal ficava de fora do Campeonato da Europa. A frustração tornava-se um hábito.
Faltam dois dias. Já não há Eusébio, que partiu para a planície da eterna saudade, mas há Ronaldo que foi, a pouco e pouco, tomando o seu lugar no coração dos portugueses que amam a sua Selecção. De entre todos os encontros dos quartos-de-final é, certamente, um dos que se perfilam como mais equilibrado. A descrença que tombou sobre a Selecção após a abracadabrante derrota de Munique será varrida de vez se lá regressarmos na sexta-feira, dia 2 de Julho. O ar que ferve em Budapeste, espera-nos agora em Sevilha, a cidade do flamenco e de La Maestranza. O mundo terá, outra vez, os olhos postos em nós…