Treze anos depois do seu último disco a solo, Rui Reininho, lendário vocalista dos GNR, voz de músicas inconfundíveis da cultura pop portuguesa como ‘Dunas’, ‘Ana Lee’ ou ‘Pronúncia do Norte’, está de volta e com um novo disco em nome próprio, 20.000 Éguas Submarinas. Mas este não será um regresso casual de um “hiatozinho”, como o músico natural do Porto explica ao i.
Desde as suas colaborações com a Anar Band, grupo de música avant-garde e experimental de Jorge Lima Barreto, que Reininho não oferecia ao público um disco tão desafiante. Fomos conversar com o autor de um dos mais curiosos e interessantes discos portugueses de 2021 para perceber o que o motivou a criar nesta fase da sua carreira um álbum tão fora da caixa.
Encontramo-nos com Reininho numa sala do Palácio Chiado adornada com um gigante leão alado dourado, suspenso do teto da sala: parece um local adequado para falar de 20.000 Éguas Submarinas, um disco que adota um imaginário místico e mistura a mitologia oriental com a história portuguesa, tudo sob um pano de fundo sonoro de percussões exóticas, elementos de música concreta e influências psicadélicas.
Reininho explica-nos que este, provavelmente, não é um álbum para todos os fãs dos GNR. “Não quero que todos gostem de mim, isso é assustador”, explica-nos, entre relatos da sua experiência num retiro espiritual, como era viajar de comboio com António Variações e experimentar drogas psicadélicas.
Quando surgiu a ideia para criar o 20.000 Éguas Submarinas?
Esta ideia surgiu pela primeira vez há três anos com Paulo Borges, coprodutor do disco. Fomos trabalhando nele ao longo do tempo, mas a pandemia e os confinamentos atrasaram o seu lançamento, nomeadamente o lançamento do vinil, porque muitas das fábricas estavam fechadas.
Este disco é o regresso do Rui aos lançamentos musicais depois de um longo período de seca. O que impulsionou este regresso?
O disco já estava pronto e eu sentia-me ansioso com todos os avanços e recuos do confinamento. Posso dizer com toda a franqueza, os primeiros seis meses de paragem não foram assim tão insatisfatórios porque, ao contrário de alguns colegas que aproveitam um “hiatozinho” para promoverem os seus concertos de reunião [risos], os GNR nunca fizeram grandes paragens. Este corte serviu para eu respirar e redimensionar-me, recuar um pouco, colocar tudo em causa e olhar para tudo aquilo que me rodeava. Esta atividade, aliada a umas amizades com pessoal ligado ao new age, healing e hippies, ajudou-me criativamente, daí ter criado a música ‘Namastea’… que podia ser uma marca de chá de sucesso, agora que o Ronaldo rejeitou a Coca-Cola. Ia ser o negócio da minha vida [risos].
O seu passaporte para a riqueza?
Nunca tive muito jeito para os negócios, mas também nunca pensei que fosse ficar muito rico. Acontece-me sempre alguma coisa, mesmo quando nos queriam cobrir de platina, ou é por uma boca ou uma circunstância qualquer, a coisa nunca deu assim muito certo. E também há o caso do público, que é muito volúvel. Nessa altura passaram de nós para os Delfins porque aparecerem com o ‘Sou Como Um Rio’, não digo isto com… apenas constato. É como os políticos dizem, existem eleitores flutuantes (risos). O que interessa no meio disto é a música, viver de e para ela.
E você já vive de e para a música há muito tempo.
A minha primeira edição é de 1977, com a Anar Band, não havia grandes objetivos para além de dois gajos um bocado enlouquecidos e completamente diferentes. O Jorge Lima Barreto era mais forte no seu conhecimento e no que me mostrou, e eu retorqui e correspondi com um mundo pop que ele não conhecia. Ele vinha de uma zona mais isolada, onde a pop para ele era uma coisa um bocado desprezível, como muitas pessoas achavam. Lembro-me de falar com o maestro Victorino d’Almeida e uma coisa que lhe dizia na brincadeira era: “Mestre, para nós, os tipos da pop-rock, a chamada música clássica e “séria” não é Beethoven nem Mozart”.
O que são para si os “clássicos e a música séria”?
Ao contrário do que esta geração pensa, a pop não é apenas Beatles, Rolling Stones ou se calhar o Tom Jones, se o conhecerem. Eu cresci com o prog-rock de bandas como os Caravan, que têm discos que eu adoro, por exemplo o Waterloo Lily, ou os Quicksilver Messenger Service. Voltando atrás à tua pergunta, sempre admirei estes grupos, mas nunca consegui executar porque, digamos, sou um péssimo músico, se não fazia muitos mais discos a solo, como tipos como o Prince ou o nosso Paulo Furtado, o Legendary Tigerman. Lembro-me de uma vez ele ter feito o concerto de abertura dos GNR no formato de one-man-band, a tocar guitarra, bateria e a cantar, e achar aquilo de uma coragem tremenda.
Estava a falar de bandas com um som mais experimental, mas essa é uma designação que também pode ser atribuída ao 20.000 Éguas Submarinas. O que o motivou a criar, nesta fase da sua carreira, aquele que é um dos discos mais “fora da caixa” da sua discografia?
Existem uns resquícios de Anar Band, onde eu já experimentava com umas percussões, no tema ‘Tarzan’, por exemplo. Lembro-me nessa fase de me mostrarem alguns músicos experimentais europeus, como Pierre Henry, ou os primeiros discos de Kraftwerk ou dos CAN, que foram influências que foram ficando comigo. Na altura, as pessoas que nos viam em ácido diziam: “Vocês estão cheios de bichinhos na cabeça” (risos), porque era tão incólume e inocente como nos passeávamos que as pessoas não percebiam o que estávamos a fazer, apesar de ser uma experiência que tinha toda uma lógica subjacente.
Além da música, também existe um lado muito espiritual neste disco. Houve alguma experiência ou viagem que tivesse impulsionado esta caraterística?
Fiz uma viagem a Annapurna [uma montanha dos Himalaias, no Nepal], a um mosteiro, com este grupo, para percebermos melhor a técnica do canto gutural. Existia um entendimento humano muito grande. Não adotei estes elementos da espiritualidade para convencer ninguém. Mas sinto que tem corrido bem, várias pessoas ficaram entusiasmadas e incentivaram-me a agendar concertos com este projeto. Abriram-se inúmeras portas em vários nichos que estavam um pouco vedadas, como a Culturgest ou os Jardins Efémeros, com o peso que os GNR acarretam.
Como é que se vai apresentar ao vivo com este projeto?
Vamos estar nos Jardins Efémeros no dia 10 de julho com uma formação diferente do disco. Espero que nos apresentemos como um quinteto porque os instrumentos de sopro têm uma parte muito importante, e também com um percussionista fora da caixa, uma vez que não temos baterista nem secção rítmica. Temos uma perceção de espaço e tempo diferente, começamos com pulsões de entendimento de como se pode fazer música de várias maneiras. Numa primeira fase, foi feito quando estive no Centro da Ponta de Couso, na Galiza, para apaziguar e para acabar com zumbidos nos ouvidos. Todos os dias acordávamos com um gongo que nos chamava para começar o dia. Ninguém me deu um manual de budismo ou meditação, cada um tinha a atitude que preferia. Eu começava o meu dia da minha maneira favorita, o meu ato de primavera, que é urinar com as plantas assim que me levantava.
Tinha referido que não é um bom músico. Qual foi a sua contribuição na criação do instrumental do disco?
Contribuí numa parte que sempre me interessou: as percussões. Tenho um piano em casa porque, como dizem os espanhóis, “es demasiado”. Não vou entrar em grandes detalhes sobre este processo, seria fastidioso, mas incluiu tantãs chineses, percussões de java. Houve também uma influência do teatro balinês, cuja música é quase só percussão. Somos todos [toca num copo na mesa] vibração, tudo é vibração. Não quero impingir este pensamento a ninguém, mas é o fruir de uma certa estética que me dá um grande prazer. Há uma vontade de compreender e aprender a comunicar com a humanidade e o disco não é mais do que isso. Creio que conseguimos escapar a certos estigmas, por exemplo, o da ópera rock.
Sim, acho que essencialmente este é um disco muito mais psicadélico.
Sim, talvez seja mais “piscadélico”, porque pisca o olho a várias áreas musicais, existe também um lado de música concreta, captado pelo Paulo Borges [produtor e colaborador do disco], existem gravações de pássaros e de água, que revela a sua costela dos Açores. É preciso elogiar a ternura pelo conceito do álbum, mas também pelo esforço que exigiu para o Paulo, um músico incrível que colaborou com uma quantidade díspar de músicos, desde o Zé Mário Branco ao Carlos do Carmo.
O mar, a água, um imaginário tão português, é um dos temas mais fortes deste disco. O que o levou a escolhê-lo?
Sem contar com a diáspora portuguesa, que hoje em dia é considerada neocolonialista – não é algo que me ofenda, eram tempos de matança de inocentes.
Você não é o primeiro artista português a questionar esta simbologia, já o Pedro Mafama lançou o seu primeiro disco, Por Este Rio Abaixo, onde desconstruiu o mito português. É interessante como os músicos portugueses estão a reimaginar a sua própria história.
Existem coisas pelas quais se deve pedir desculpa, a violência contra pessoas, para mim, é inconcebível. Sempre vivi num núcleo onde, por vezes, me levava a acreditar, utopicamente, que vivia numa sociedade anarquista. Quando todos os teus amigos estão em sintonia, acreditamos que todos os outros pensam como nós. Mas esta fase de trincheiras e crispação não me desagrada. Não acho que seja necessário estar com um pé no futuro e outro no passado, mas assumir que, no presente, o gesto deve ser feito e a palavra deve ser dita, custe o que custar. Não podemos olhar para o passado com saudade ou com nostalgia.
Por falar no presente, o Rui costuma colaborar com músicos mais novos, nomeadamente os Glockenwise, com quem criou uma versão portuguesa da música Heat. É importante para si manter o contacto com as gerações mais novas?
Então não é? Até para aprender novas estéticas e posturas. É fantástico. No caso dos Glockenwise, eles são de uma simplicidade de meios e não resisto quando ouço as suas guitarras com um lado que me faz lembrar os Smiths. Eles já me fizeram vários convites, mas ainda não tivemos oportunidade de tocar essa música ao vivo. Gosto muito dele, tem alguns dos meus discos favoritos, até a solo. Só não colaboro com mais gente porque não tenho mais tempo ou porque não tenho pachorra [risos]. Antes do confinamento, estava numa fase de recusa, recusei participações em televisão, no cinema… era um filme recente que exigia muito de mim.
Por acaso não é o Variações?
Não. Esse filme eu vivi-o. O João Maia [realizador de Variações] fez o videoclipe da música ‘Popless’ dos GNR, mas não foi esse. Conheci e acompanhei o Variações, íamos muitas vezes juntos de comboio para Paço de Arcos, para os estúdios da Valentim de Carvalho. Era um carnaval fantástico, eu andava de verde alface e laranja e com um papagaio ao ombro, ele surgia de uma maneira muito natural, comprávamos bilhete e íamos a viagem toda a conversar. Ele era um tipo realmente angelical na sua forma de ser. Ele perguntava-me técnicas que utilizei no Independança [disco de estreia dos GNR, 1981], ia até à sala de ensaios dele e explicava-lhe como é que imitava o som de um saxofone com a voz. Ele depois convidava-me a assistir ao ensaio, ele estava a trabalhar com dois dos meus capangas dos GNR [Tóli César Machado e Vítor Rua], e depois íamos jantar todos juntos. Era um homem fantástico, com uma maneira incrível de fazer música, pedia uma batida e improvisava uma letra.
Acha que o contacto com esta geração mais jovem o levou a querer experimentar mais neste disco?
Existem várias pulsões que me influenciam. Este disco foi muito prazeroso de fazer, mas também muito custoso em termos físicos, apesar de me ter retirado uma certa letargia e de preguiça, porque notei que, em termos de estúdio, estava um bocado preguiçoso e impaciente. Durante a produção do disco era obrigado estar a na sala a tomar decisões e a fazer escolhas. Nem sempre é assim, com os Glockenwise eu gravo o tema com eles e, simpaticamente, o Nuno [Rodrigues, vocalista do conjunto] convida-me para ouvir o tema, mas não fico a assistir ao processo de criação. O 20.000 Éguas Submarinas nasceu de muitos improvisos na minha sala e sem grandes preocupações. Por exemplo, existe uma parte em que dá para ouvir passarinhos e isso aconteceu porque durante essas sessões deixámos uma janela aberta.
Na faixa …The Sea…, que encerra o álbum, encarna a postura de um pregador ou de um xamã. Isto foi uma personagem que criou para o disco ou esta forma de discurso foi a melhor maneira de fazer passar as mensagens?
Tive que fazer vários takes e o que ficou no disco foi aquele que ficou mais perfeito, em sintonia em termos de sincronismo, e onde consigo manter uma postura à Vincent Price [ator famoso por protagonizar diversos filmes de terror de culto, como The Abominable Dr. Phibes ou Witchfinder General]. Senti-me confiante no meu inglês.
Não teve receio ou medo de mostrar esta sua nova faceta aos seus fãs?
Não, não tenho grande coisa a perder atualmente. Temos uma série de espetáculos interrompidos em julho, e não adianta chorar sobre leite derramado. Mas também para quem anda aqui há mais de duzentos anos não há muito a lamentar [risos]. É simpático se um tipo que tenha gostos aparentemente incompatíveis, que goste de Fórmula 1 ou de touradas, goste do meu trabalho, mas não quero que todos gostem de mim, isso é assustador.
Este é um disco mais de nicho, se calhar não é para o fã de GNR que vai aos seus concertos só para ouvir a Dunas.
Sim, e espero que quando cheguem os concertos ninguém venha pedir isso.
E se por acaso, nos concertos de apresentação, alguém da audiência gritar “Toca a Dunas”, o que é que vai fazer?
Isso é natural, tal como mandam outras bocas que já estou habituado a receber. Eu cresci junto a Campanhã, com rapazes mais pobres, que era com quem me dava melhor, que não tinham o hábito de tomar o chá com as tias, e por isso sei muitas asneiras. Se me desatam a língua… A minha última e até à data namorada foi dos Super Dragões, portanto, vocabulário não me falha. A única coisa que tenho medo é de pedradas, porque é difícil ver as pedras e de desviar delas.