Portugal–França. O som da cigarra por entre os homens-formiga

Portugal–França. O som da cigarra por entre os homens-formiga


O Portugal-França (2-2) foi um jogo pleno de emoção, dos mais excitantes deste Europeu. À custa de trabalho duro, a selecção nacional respeitou a sua condição de campeã da Europa


São oito da noite em Budapeste e a Selecção de Portugal entra em campo a conhecer todos os resultados e todas as classificações de todos os grupos excepto o seu. Em Munique, Alemanha e Hungria discutem a conclusão desta peça em três actos sem que vivalma acredite que os húngaros terão ainda uma palavra a dizer na sua própria qualificação já que estão obrigados a ir ganhar aos alemães no seu teutónico território, algo que Portugal sentiu dolorosamente na pele ser tarefa para gigantes. A gente já sabia, Fernando Santos grantiu-o, que o onze português ia mudar. Mudou. William ficou de fora, Bruno Fernandes também, Renato Sanches e João Moutinho foram titulares. Claro que entrar em campo com a certeza que só um daqueles apepinamentos à moda antiga é que nos deixaria fora do Europeu dá um certo jeito. Ficamos todos mais à vontade, vá lá. Por outro lado, passar a fase de grupos com apenas aquela vitória inicial frente à Hungria não poderia ser considerada uma proeza do quilé.

O jogo tornou-se áspero no meio-campo e sem grandes momentos de imaginação ofensiva. O urro em uníssono que brotou, de repente, das bancadas ocupadas pelos franceses queria dizer algo de pouco agradável e em breve se percebeu que festejavam alegremente o golo da Hungria em Munique. Bom! Que não se escamem os gajos, diria o barão de São Cucufate do nosso irrepetível Camilo Castelo-Branco. Afinal, ainda assim, havia quatro pontos para lusos e magiares, com a vantagem lusa da vitória primordial.

Talvez os deuses do futebol, por mais menores que sejam, não tenham grande pachorra para aqueles que se alegram com as desgraças alheias. Se das gargantas dos gauleses saíra, minutos antes, um berro de proporções amazónicas de tanta satisfação, não tardou que tais gargantas não fossem capazes de fazer vibrar uma corda vocal quando viram Lloris sair à punhada a um centro vindo da esquerda da sua defesa, arrancando praticamente pelo caminho a cabeça do pobre Danilo que saltara ao seu encontro. Penalti? Mas que penalti! Penalti daqueles de emoldurar e pendurar nas paredes do Louvre. Tanta alegria afrancesada por um golo húngaro a 650 km de distância, e eis Ronaldo a calar a boca aos entusiasmados rapazes das camisolas azul-ultramarino.

Andava mundo e meio a fazer contas de cabeça, ou a deitar a mão a ábacos e a calculadoras, rezando aos santinhos da sua devoção para que Portugal não fosse aporrinhado pela França e, sem quase darmos por ela estávamos na frente do grupo. Coisa de pouca duração: nove minutos mais tarde devolvemos o favor de um penalti absolutamente evitável e Benzema repôs o empate. Não havia motivo para desânimos, mas depois de 45 minutos sem termos deixado os franceses aproximarem-se da nossa baliza, houve um sentimento colectivo de desilusão.

Dilema Estamos perante um daqueles dilemas que parecem fazer parte da vida desta equipa que, um dia, Ricardo Ornellas, chamou de Equipa-de-Todos-nós. Perante as notícias que chegam de Munique, a tal derrota por dois ou três deixou de ser uma opção. Ainda por cima entramos na segunda parte a perder com um golo de Benzema, deixado tão aflitivamente à vontade que parecia que os nossos jogadores ainda nem tinham saído dos balneários.

Enquanto os adeptos franceses gritam alto e bom som “Hungaria! Hungaria!”, tudo parece exigir que os crentes rebusquem nas gavetas os terços empoeirados e se dediquem às rezas que talvez nos salvem se a crença for muita e verdadeira. Somos, por momentos, uma equipa descrente e inofensiva. Dá vontade de dizer que, se é para rezar, que rezem por um golo alemão porque dificilmente este campeão europeu que tanto se passeia nu como com um fato grande demais não parece ter força nem categoria para dobrar as esquinas desta França maquinal, monótona, mas pouco vulnerável aos movimentos previsíveis do ataque português.

Ronaldo inventa um penalti que ele próprio converte. E, de súbito, vemo-nos metidos num daqueles espectáculos que nos passam pelos olhos raramente numa vida. A Alemanha empata, mas a Hungria marca logo a seguir. O jogo pode não ser um primor nem de técnica nem de táctica, tal a precipitação dos lances e os erros cometidos amiúde. Mas é um corre-corre impressionante de gente que luta até ao fim da vida pela posse de uma bola, que guarda o mais pequeno dos metros-quadrados de terreno como fossem um cantão da própria pátria.

Portugal é um grupo unido como nunca. Estamos a vinte minutos do fim, ninguém imagina como irá terminar este combate fervilhante que ambos se recusam a perder. São onze homens-formiga que, no seu movimento constante, deixaram o mínimo de silêncio para que se ouvisse, lá ao fundo, o cantar da cigarra de Ronaldo.

O equilíbrio é evidente, o resultado serve aos dois. Haverá um deles que se disponha a correr o último risco para obter a vitória do orgulho? Talvez a França se disponha a isso. Não tem nada a perder. O que se passa em Munique pouco lhe importa. E Portugal? Correrá o risco não de atacar mas de se dedicar à defesa deste empate que ilumina a noite como uma lua cheia, empurrando-o para a fase seguinte de uma competição na qual nunca foi eliminado nesta luta renhida dos grupos e dos pontos? Tenta controlar a bola, trocá-la ao ritmo cada vez mais baixo que tanto jeito lhe dá, mas este é um daqueles jogos nos quais não se adivinha o fim. A Alemanha volta a empatar: é como se uma brisa soprasse lá do Danúbio tão pouco azul para refrescar a nossa crença. Um frémito de emoção percorre toda a Puskás Arena. Podemos senti-lo. É como se, de repente, cinquenta e muitas mil pessoas resolvessem bater com os pés no chão ao mesmo tempo. Não. É como cinquenta e muitas mil pessoas acertassem como num relógio as batidas do coração…