Polémica. A bola e os vícios, dois mundos tão perto e tão longe

Polémica. A bola e os vícios, dois mundos tão perto e tão longe


Os atletas profissionais são vistos como exemplos de vidas disciplinadas, sem vícios nem excessos. A realidade, no entanto, é que uma breve visita ao passado mostra um panorama completamente diferente.


É um tema que de tempos a tempos vem à ribalta. Os atletas profissionais são vistos como figuras cujo comportamento é medido ao milímetro, de forma a que o seu desempenho em campo seja o mais perfeito possível. Dietas rigorosas, horários estritos e um veto total a tudo o que sejam vícios: álcool, festas, drogas ou qualquer outra coisa que possa afetar a performance dos atletas. Que o diga Lionel Messi, cujo contrato com o FC Barcelona estipulava a proibição, por exemplo, de andar de mota de água ou de apostar “demasiado” em casinos. Ou Cristiano Ronaldo, que demonstrou de forma inequívoca que prefere a água a Coca-Cola.

As recentes notícias, e uma breve visita ao passado, no entanto, parecem mostrar uma outra realidade. A seleção do Chile cancelou dois treinos seguidos durante a Copa América que está a decorrer no Brasil, e os jornalistas chilenos desconfiaram de imediato que algo de estranho se estaria a passar.

Dias depois de a mesma seleção ter multado Gary Medel e Arturo Vidal por terem chamado um barbeiro ao hotel onde estavam hospedados, rompendo assim a suposta bolha sanitária em que se encontram, eis que a imprensa do país descobriu que seis jogadores da seleção nacional estiveram envolvidos numa festa sexual, que contava com a presença de “várias mulheres”. Tratava-se, alegam os jornais chilenos, de uma forma de celebração após a vitória frente à Bolívia por 1-0. Martín Lasarte, o selecionador chileno, terá “colocado imediatamente o lugar à disposição”, avançam os jornalistas, e terá ainda pedido a a alguns jogadores que abandonem a concentração.

Foi Arturo Vidal (conhecido pelos seus penteados extravagantes e um dos elementos sancionados por chamar uma pessoa de fora para lhe fazer um corte de cabelo) que transmitiu em tempo real através da sua conta do Instagram. O mesmo Vidal que, em 2015, também durante a Copa América, se viu envolvido num aparatoso acidente de viação, onde destruiu um carro de luxo em virtude de conduzir embriagado.

Mas, afinal, em que momento é que as vidas dos atletas profissionais passaram a ser medidas ao milímetro, tanto pelos dirigentes como pelos jornalistas, e o que levou a que atos como fumar ou consumir álcool fossem vistos como pecados mortais no mundo do desporto? Uma breve visita ao passado mostra uma realidade muito diferente, em que era comum o consumo de álcool durante as competições, bem como de tabaco, mesmo durante os jogos e treinos.

Festa escocesa na argentina Recuemos até ao ano de 1978. Jogava-se o Campeonato Mundial numa Argentina controlada pelo regime de Jorge Videla, onde o ambiente era de cortar à faca. Johan Cruyff, a estrela da seleção holandesa – que acabou por perder na final frente à Argentina – não participou na competição devido, alegadamente, ao ambiente político no país.

No quartel-general da seleção da Escócia, no entanto, o ambiente era outro. As apostas nos escoceses estavam em alta, e todos os olhos estavam sobre o emblema treinado por Ally MacLeod. Mesmo antes de partir para a Argentina, o técnico garantiu que a Escócia poderia, pelo menos, conquistar uma medalha.

A viagem e o dia-a-dia nos aposentos dos jogadores foram, por isso, de farra. A festa fez -se pelos corredores do hotel onde os simpáticos escoceses ficaram hospedados. Ou pelo menos assim o recontam as histórias da época. Apesar de ser uma das favoritas, a Escócia acabou eliminada logo na fase de grupos. Com uma derrota frente ao Peru e um empate com o Irão, a vitória sobre a Holanda não foi o suficiente para garantir a passagem.

Contam os relatos que, quando a equipa escocesa partiu para o terceiro e último jogo da fase de grupos, os quartos do hotel em Alta Gracia estavam repletos de garrafas vazias de uísque, licores e outras bebidas alcoólicas.

Os escoceses, no entanto, não foram os únicos que sobressaíram pelo seu consumo de álcool durante este campeonato. A seleção nacional da Polónia terá levado consigo para a Argentina um total de quase 400 garrafas de vodca para consumo próprio. Afinal de contas, e apesar das enormes expectativas neles depositadas, tratava-se apenas de um grupo de rapazes que queriam divertir-se. E o clima da Argentina provocava-lhes uma sede tremenda. 

O caso Saltillo Até os portugueses de brandos costumes já estiveram envolvidos num caso parecido de festas e diversão durante uma grande competição internacional. Corria o ano de 1986, Portugal conseguira um lugar no Campeonato Mundial, graças a um golaço de Carlos Manuel em Estugarda. Vinte anos depois da última participação, a seleção das quinas dirigia-se ao México para jogar o torneio que seria sem dúvida um seguimento do bom desempenho no Euro de 1984, onde caiu nas meias-finais. O sonho, no entanto, rapidamente se tornou num pesadelo… um pesadelo cheio de ‘chicas’ e uma seleção em greve.

Saltillo é o nome da cidade mexicana onde a seleção nacional ficou hospedada, a pouco menos de 100 quilómetros de Monterrei. A viagem para terras mexicanas foi logo a primeira pedra no sapato de um momento que ficaria para sempre conhecido como o ‘Caso Saltillo’. Os jogadores portugueses demoraram cerca de 24 horas, com escalas em Frankfurt, Dallas, Cidade do México e Monterrei, a chegar ao seu quartel-general para o Mundial de 1986. A falta de condições do hotel onde ficaram hospedados levou a protestos, e as disputas com a FPF sobre acordos comerciais, em que exigiam pagamentos sobre as recentes parcerias publicitárias, não ajudaram a aliviar o mal-estar da equipa portuguesa. Além de as condições não serem as melhores, a seleção nacional não tinha sequer com quem jogar as partidas de preparação, tendo mesmo recorrido aos empregados e membros do hotel onde estavam hospedados para poder jogar num campo que, devido à sua inclinação, tornava os jogos, no mínimo, caricatos.

Como forma de protesto, a seleção nacional decidiu boicotar treinos e partidas, vestindo as camisolas do avesso para negar visibilidade aos patrocínios, e preferindo passar as noites em divertidas e extravagantes festas nas redondezas do hotel.

O escândalo foi tal que a própria Assembleia da República se exaltou, com alguns partidos a exigir a retirada da seleção do campeonato, e com o então Presidente da República, Mário Soares, a apelar ao bom senso dos jogadores.

Do lado de lá do Atlântico, no entanto, a farra e a greve continuaram, e a seleção portuguesa tornou-se no chamariz das mulheres e meninas de Saltillo, recontam as testemunhas e as próprias fotografias das “chicas de Saltillo” que surgiam nas bancadas a apoiar os jogadores portugueses. Os relatos dão conta de dias e dias de festa, discotecas dominadas pelos jogadores portugueses, e uma equipa técnica incapaz de impedir a festança lusitana no México. O próprio Paulo Futre relatou alguns dos acontecimentos no seu livro El Portugués – Parte II de 2012, onde contou na primeira pessoa os acontecimentos naquele Campeonato Mundial de 1986, quando tinha apenas 20 anos.

Ainda assim, chegada a hora da primeira partida no Mundial, a seleção das quinas venceu os mesmos ingleses que durante semanas assistiram à verdadeira farra portuguesa em Saltillo, por uma bola a zero.

A felicidade durou pouco. As derrotas frente à Polónia e o escandaloso 3-1 contra o modesto Marrocos ditaram o regresso a Portugal. Nas bancadas, no entanto, ficaram os relatos das “chicas” de Saltillo que apoiaram o emblema português, e que se apaixonaram pelos jogadores lusitanos, bem como as grandes festas lusitanas em terras de Frida Kahlo.

Noites de cinderela Mal sabiam os ‘Infantes’ (alcunha da seleção portuguesa de 1986) que, anos mais tarde, o mundo das festas sexuais e luxuosas no âmbito do futebol profissional acabaria por se tornar num lucrativo negócio, que atingiria os auges do desporto. Em 2019, uma grande polémica atingiu a Premier League, a principal liga de futebol profissional em Inglaterra e no mundo. ‘Cinderella Escorts’ foi o tema do momento. Tratava-se de uma agência de acompanhantes alemã que organizava festas e eventos para figuras milionárias, com muitas acompanhantes e álcool a regar as farras. Acontece que, em outubro desse ano, o site Daily Star Online descobriu que vários jogadores da principal liga inglesa de futebol – muitos deles casados – eram ávidos utilizadores dos serviços desta agência.

A anuidade? 34 mil euros, só para fazer parte do clube. E não entra ninguém que tenha menos de 11,5 milhões de euros em património. O caso gerou polémica no país, e fontes da própria agência garantiram que vários jogadores de futebol de renome eram seus clientes.