Talvez Fernando Santos tenha, na verdade, um pacto com esse Deus a que é devoto. Algo explicará que logo após a derrota mais enxovalhante do seu reinado como seleccionador nacional, com Portugal a ser completamente atropelado por uma Alemanha que, pelo que tem feito nos tempos mais recentes, não se imaginaria capaz de ser tão destrutiva, as coisas começassem a correr estranhamente bem para Portugal.
Se durante as horas que se seguiram à duríssima derrota (2-4) do campeão da Europa em Munique, nós, observadores, começávamos de facto a pensar que este Portugalzinho tímido, timorato, tratado pelos alemães como um pano rasgado ao vento, ficando a dever a si próprios um resultado mais dilatado, as 24 horas seguintes desanuviaram o céu cheio de nuvens e abriram espaços largos de céu azul ferrete, como o da Lisboa que se espalha pelas margens do estuário do Tejo.
Sorte, se lhe quiserem chamar. Crente, com todo o respeito pela sua devoção, o seleccionador nacional prefere entender momentos como estes pela estrutura forte da sua fé. Até certo ponto, faz-me recordar o poema de Vitorino Nemésio: “Meu Deus, aqui me tens aflito e retirado/Como quem deixa à porta o saco para o pão/Enche-o do que quiseres. Estou firme e preparado/O que for, assim seja, à tua mão/Tua vontade se faça, a minha não”. A forma plácida como encarou o final do jogo demonstrou a sua fé inabalável. Deixou à porta o saco para o pão e deixou que o seu Deus o enchesse do que quisesse.
Roleta de resultados A partir de terça-feira, a roleta de resultados começou a rodar e a proteger as ambições de Portugal. A vitória da Áustria sobre a Ucrânia (1-0), com uma certa dose de surpresa, atirou os ucranianos para o terceiro lugar com 3 pontos e um saldo negativo de um. Metido nesta cegarrega de tentar prosseguir em prova através de um dos quatro lugares que serão entregues aos melhores terceiros, no caso de uma derrota com a França, hoje, aqui em Budapeste, pelas 20h de Lisboa, derrota essa que, neste momento, depois de terem sido postas a nu todas as deficiências da equipa de Portugal, terá de ser considerada absolutamente natural, a Selecão Nacional, mesmo antes de entrar em campo, já tem um terceiro classificado atrás de si desde que não resolva abrir aos franceses o dique dos golos como se fosse o Zuiderzee.
Como não estar crente e confiante se, logo depois, no Grupo B, o mais confuso de todos – Bélgica na frente com nove pontos em três jogos, todos os outros com três pontos – a goleada da Dinamarca perante a Rússia (4-1), fez com que Dinamarca, Rússia e Finlândia tivessem de decidir entre eles o resto da classificação, jogando mão da diferença de golos? Os dinamarqueses atingiram o segundo lugar, com cadastro limpo, e os finlandeses ficaram em terceiro com dois golos negativos. E assim, já há dois terceiros classificados na rota da eliminação directa, ainda que com mais um jogo do que os portugueses que estão com três pontos e com um saldo positivo de um.
Isto é, se a primeira fase terminasse neste momento, a selecção portuguesa já tinha conquistado o apuramento com um dos quatro melhores terceiros, cabendo-lhe defrontar a Bélgica aqui mesmo, em Budapeste, nos oitavos-de-final. “Se é possível, desvia o fel do vaso:/Se não é, beberei. Não faças caso”.
E o orgulho? Tudo isto que aqui se procura explicar, demonstrando que Portugal ainda pode ser apurado pela França desde que por um resultado abaixo de uma diferença de três golos – não sei o resultado do Croácia-Escócia à hora de fechar a página, mas se der empate, teremos o terceiro classificado do Grupo D apenas com dois pontos, o que mais ajuda – não pode deixar de fora a pequenez de um apuramento conseguido com duas derrotas, se for isso que vier a acontecer. Um campeão da Europa não se pode dar ao luxo de, desrespeitando a sua própria condição, andar aos caídos numa competição na qual se apresentou com a ambição de renovar o seu título. Seria triste, uma autêntica desilusão, que a equipa que a maioria dos portugueses vem alimentando com o epíteto de melhor Selecção Nacional de todos os tempos – já publiquei aqui, devidamente assinada, a minha opinião sobre o assunto, e que vai ao contrário dessa eufórica corrente – andasse por aqui, à babugem, lutando ultrajantemente por um lugar infame entre os melhores dos piores.
Seria bom que estas contas que levam a prova dos nove logo aqui ao lado fossem trocadas por uma ambição bem mais imponente de pensarmos todos que, vencendo a França ainda podemos vir até a ficar em primeiro lugar do grupo. Não há que ignorar que a Hungria, que empatou com a França (1-1), pode desfazer todo o edifício de aritmética que andamos a compor nestas linhas, bloco a bloco como uma construção de Lego. Sobretudo porque toda a casa viria a baixo se os húngaros ganhassem à Alemanha, em Munique, e nós perdêssemos com a França, varrendo-nos sem piedade para o quarto e último posto. É, se calhar, essa a conta que temos verdadeiramente de fazer. E não esperar que Deus, na sua imensa sabedoria e bondade, ponha e disponha do saco para o pão pousado à nossa porta.