Moçambique. Prisão feminina virou centro de prostituição forçada à vista de todos

Moçambique. Prisão feminina virou centro de prostituição forçada à vista de todos


As reclusas saíam da prisão pelo portão da frente, levadas por guardas, para serem abusadas em carros ou pensões. Quem mais sofria eram as mais novas, magras e claras, vendidas por um preço que ia dos 40 aos 400 euros.


No bairro de Ndlavela, em Maputo, toda gente sabia que a cadeia feminina, mesmo ali ao lado, se tornara um inferno na terra, com as reclusas arrancadas das suas celas e obrigadas a prostituir-se lá fora, sob ameaça de guardas corruptos. As vítimas, vendidas pelos guardas como “coelhinhas” ou “pombinhas”, saíam da prisão pelo portão da frente, em plena luz do dia, sendo levadas para o carro de estranhos ou para pensões e casas nos arredores. Contudo, em três dessas ocasiões, as mulheres não se depararam com potenciais clientes, à espera para as abusar, mas com investigadores do Centro de Integridade Publica (CIP), uma ONG dedicada a combater a corrupção endémica do Estado moçambicano, que revelou o esquema esta quarta-feira.

“O primeiro contacto ainda demorou tempo, até sermos admitidos dentro da rede”, explica Borges Nhamire, um dos investigadores que se fez passar por cliente à procura de sexo, equipado com uma câmara oculta. “Mas a partir daí era tudo fácil”, salienta, ao i. “Os guardas diziam: ‘Vai, vem, você não tem carro? Vem de carro, chega aqui, nós te entregamos as meninas ali, sem problemas’. Prometiam que elas não tinham relações há meses, vendiam-nas dizendo: ‘Você vai ter uma supernovidade, elas são quase virgens’, coisas assim”, continua Nhamire, com um asco notório na voz.

Não é caso para menos. À superfície, a cadeia feminina de Ndlavela até era apresentada como prisão modelo, dedicada à reeducação, onde 97 prisioneiras, divididas entre oito celas, passam a maior parte do tempo a costurar, tratar da horta e criar galinhas, com acesso a cultura, a aprender inglês e outras línguas estrangeiras, ou a terminar os seus estudos. Mas, debaixo disso, havia todo um submundo de esquemas de exploração sexual, com aquelas que recusavam vender o seu corpo sujeitas a perder regalias ou a sofrer espancamentos brutais.

Quem mais sofria, contaram vítimas aos investigadores do CIP, eram as prisioneiras mais jovens, magras e claras, que rendiam preços mais altos lá fora. As mulheres eram vendidas por valores que iam dos 3 mil aos 30 mil meticais (entre 40 e 400 euros). Os clientes variavam entre gente com menos posses, que as abusavam sobretudo em carros, até empresários e oficiais das forças armadas, que as levavam para vivendas com piscina, contaram vítimas ao CIP. As mais procuradas chegavam a ser arrastadas para fora dos muros da prisão três ou quatro dias por semana. “Só descanso quando tenho o período”, desabafou uma delas, perante uma câmara oculta.

“Este esquema já dura pelo menos há uma década, no mínimo”, assegura Nhamire. “Nós conseguimos entrevistar antigas reclusas, que já saíram há anos, andámos cá fora à procura delas, e elas contaram que no tempo que estiveram lá isso já acontecia. Além dos relatos dos populares, que já veem essas coisas há muito mais tempo”, continua. “Esta cadeia foi transformada num autêntico bordel. Infelizmente, quase que toda a gente que passou por lá sofreu isso”.

Resultados operativos’ Talvez o mais surpreendente seja a facilidade com que os guardas conseguiam extrair prisioneiras. Da primeira vez que investigadores do CIP foram buscar mulheres, após uma negociação – “levar mulheres para vossa casa, isso sai um pouco mais caro, porque tem o dinheiro do combustível, vai levar mais tempo”, explicaram os guardas por WhatsApp – em que parecia estar-se a falar de um pedaço carne, o método de saída “foi um pouco mais sofisticado”, diz Nhamire. “Fingiram que elas iam ao hospital, meteram-nas num carro da cadeia e, chegando aos jardins do Hospital Central de Maputo, a uns dez quilómetros de Ndlavela, transferiram as mulheres para o nosso carro”.

“Levámos as mulheres para uma vivenda, sentámo-nos, conversámos, almoçámos e entrevistámo-las durante duas horas. Inventámos uma história, de que ficámos com compaixão, que estávamos muito sentidos e já nem tínhamos vontade de ter relações sexuais. Assim conseguimos extrair informação sobre a vida delas e sobre o que se passa lá”.

As histórias que ouviram foram de gelar o sangue, de jovens violadas pelos guardas prisionais sempre que lhes apetecia – uma delas contou que, quando recusou sexo, foi espancada ao ponto de ir parar ao hospital – e que não recebiam qualquer dinheiro quando iam ter com os clientes, ia tudo para os seus captores. No máximo, recebiam gorjetas.

Na segunda ocasião, investigadores inventaram que amigos da África do Sul estavam de volta ao país, que queriam abrilhantar a visita. Era Sexta-feira Santa, o guarda corrupto avisou que ia ficar caro levar as mulheres a casa, que ia haver troca de turno, que seria preciso pagar tanto aos do turno em que as mulheres saíam como aos do turno em que regressavam, “tem que se distribuir por toda a gente”. Aconselharam que ficassem num pensão ali ao lado da cadeia.

“Estávamos com medo, porque queríamos estar num espaço nosso, que controlássemos, onde pudéssemos ter a nossa segurança. Os guardas estão armados”, admite Nhamire. “Mas concordámos, era essa a oportunidade que tínhamos”.

Entretanto, a extensão desta lucrativa rede de prostituição forçada foi-se tornando cada vez mais clara. “Um guarda pediu-nos 30 mil meticais. Nós dissemos que era muito dinheiro só para passar umas horas com as meninas”, recorda o investigador. “Ele respondeu: ‘Mas eu só vou ficar com cinco mil. O resto do dinheiro é para resultados operativos’. O que isso significa é que, quando regressa com o dinheiro tem de ir pagar, desde ao chefe de permanência, ao oficial de permanência, ao chefe da cela, ao chefe de pavilhão, por aí fora”.

Afinal, não é como se a operação decorresse pela calada da noite. Entre o pavilhão onde estão as reclusas, a sul, e o portão, a norte, é preciso atravessar um pátio observado por torres de vigia, passando pela área administrativa e por um longo corredor cheio de guardas. E em lado nenhum se parece estranhar o vai e vem de jovens prisioneiras, muitas vezes escolhidas a dedo com ajuda de prisioneiras mais velhas, lê-se no relatório do CIP. Por vezes os guardas dão-se ao descaramento de acompanhar as reclusas até aos clientes de uniforme e AK-47, enquanto outros vigiam os arredores, à paisana, não vão as mulheres tentar escapar ao pesadelo.

Impunidade O horror na cadeia de Ndlavela é mais uma consequência trágica da corrupção sistémica em Moçambique, consistentemente no fundo dos rankings da Transparency International. Seria algo inimaginável noutro lado, “mas, conhecendo a realidade deste país, em Moçambique basta você ter dinheiro e tudo acontece”, queixa-se Nhamire.

“Aqui você pode sair, viajar dois mil quilómetros a conduzir sem carta de condução, mas vai passar em todos os postos de controlo, desde que você tenha dinheiro para pagar à polícia”, exemplifica. “E é por isso que em Cabo Delgado os insurgentes atravessam fronteiras, entram e saem, porque é só pagar o suborno no posto de controlo. Isto é uma selva de corrupção”.

Aliás, todo o esquema de exploração sexual em Ndlavela parece ter começado como mais uma das muitas “taxas não-oficiais” cobradas pelas autoridades em Moçambique, contaram antigas vítimas a Nhamire. “Isto nasce porque algumas reclusas pagavam para poder ir passar a noite em casa, com a família e os maridos”, relata. “Os guardas viram aí a oportunidade de fazer disso um negócio. ‘Então, se podem sair a ir ter com o teu marido, então também podem sair para ir ter com os meus clientes’, foi esse o raciocínio”.

Como sempre, o peso dessa impunidade recai sobre os mais vulneráveis, como as mulheres encarceradas em Ndlavela. “O perfil destas mulheres não é de integrantes de redes criminosas, envolvidas em assassinatos e coisas assim, nada disso”, salienta o investigador. Talvez se fossem, os guardas pensassem duas vezes antes de as explorarem de tal maneira.

Na prática, estas mulheres estão encarceradas sobretudo por crimes menores, como furto, tráfico de droga – “as mulheres são muito usadas como mulas para transportar droga do Brasil para Moçambique, ou vender drogas no bairro. Muitas vezes foram cúmplices dos namorados, esconderam dinheiro ou droga deles”, diz Nhamire – ou violência doméstica. Nesses últimos casos, frequentemente “as mulheres até eram as principais vítimas de violência”, considera o investigador. “A certo momento fartam-se, explodem, pegam no pau que está ao lado e atiram ao marido. E aí pronto, metem na cadeia”.

Aliás, muitas destas mulheres nem sequer contaram às famílias que estão presas. “Foi uma das coisas que nos pediram”, diz Nhamire. ‘Por favor, não podemos ser expostas, no meu bairro pensam que estou na África do Sul a trabalhar, vou cumprir uns três anos, quero sair por bom comportamento, depois volto”, disseram-lhe. “Isso torna muito mais difícil as denúncias. Porque elas querem que esse momento da prisão se apague da vida delas”, prossegue. “Também vimos o caso de uma reclusa que teve a coragem de contar ao marido o que lhe estava acontecer. E a decisão que ele tomou foi de se separar”.

Após anos de indiferença – “o bairro sabia, as pessoas que trabalham nas imediações da cadeia sabiam, a direção sabia, todos os guardas sabiam”, repete uma e outra vez Nhamira – não há grande expectativas de justiça. Após o relatório do CIP sair, Helena Kida, ministra da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos, já visitou a cadeia e ordenou a suspensão da direção, criando um comissão de inquérito, com os Serviços de Investigação Criminal, o Ministério Público, a Comissão Nacional dos Direitos Humanos e a Associação de Mulheres de Carreira Jurídica. Mas Nhamire também queria que fosse envolvido o Parlamento, com deputados de diferentes partidos, não só a Frelimo, assumindo que “o Governo vai estar mais preocupado em proteger a sua imagem do que em tentar resolver a situação”. É que “em Moçambique fazem-se inquéritos atrás de inquéritos”, nota o investigador. “Mas este é um país de inquéritos não concluídos. Não temos muita esperança”.