Cesare Pavese. “A única regra heróica: estar só”

Cesare Pavese. “A única regra heróica: estar só”


Editado pela primeira vez de forma autónoma, “Virá a morte e terá os teus olhos”, o livro póstumo de Cesare Pavese, bem mais do que um comovente bilhete de suicídio, é o testemunho desse último fulgor que deixa um homem gasto, e sem mais palavras para trocar com a vida.


Todo o verdadeiro poeta espreita o fim, indaga sobre o que falta para que a vida enfim faça o seu trabalho, deixe apenas o “verde ressequido/ onde estão palavras antigas”, nos entregue de vez a essa “fadiga que vem do sangue”, escolhos, restos, pedaços que na melhor das hipóteses serviram apenas para adoçar o mar… “e tu vives, revives/ sem espanto, segura/ como a terra, escura/ como a terra, lagar/ de estações e de sonhos/ que à lua se descobre/ antiquíssimo”. Cesare Pavese sempre sentiu o cerco de uma tristeza devastadora, e sabia como esta acabaria por dar conta dele. Uma das suas personagens, no romance “A Lua e as Fogueiras”, às tantas lembra-se que, se cometemos muitos erros nesta vida, “os verdadeiros achaques da idade são os remorsos”.

Este poeta debateu-se sempre com essa íntima calamidade, quando o silêncio não detém já qualquer fulgor ou mistério: “virá um momento em que faremos poemas cansados, vazios de promessas, aqueles que justamente assinalarão o fim da aventura”. A partir de uma certa altura, o homem torna-se um mero actor, condenado a representar essas variações de um mesmo papel, conduzido pela sua lucidez atormentada, chegando ao ponto de execrar a sua existência, que apenas balança sobre um drama mais prometedor e envolvente se estiver sob o efeito de alguma ilusão, a qual será sempre provisória. É neste fundo de solidão essencial que, como nos diz Carlos Leite, tradutor de toda a obra poética de Pavese, a única escapatória acaba por ser a autodestruição vivida como “vício absurdo”. Mas se a morte exerce uma atracção impossível, sabendo-o há poetas, como o catalão Fèlix Cucurull, que a si mesmo dão conselhos, desses que devemos ouvir mais tarde, quando formos velhos ou nos faça o mundo sentir assim, para que então aprendamos o gozo de nos sentirmos sós, deixando as saudades das miragens. Voltar às coisas de crianças, a essas urgências desligadas do tempo, a atenção que se põe nas coisas, e torna o poeta capaz de brincar com o próprio sorriso, “como quem desdobra damascos”. Por outro lado, há certas atracções, vícios cercantes que é preciso furar, e, deste modo, deixa este último conselho: “Nunca falar da morte, / como alguém que se esconde/ de um grande amor ilícito.”

Por sua vez, Pavese, numa entrada do seu diário, tinha também alguns conselhos para si mesmo, desde logo para amparar a sua obstinação em alcançar esse além que se prometera nos poemas, mas também uma certa força de ânimo moral que era tão importante para que continuasse ligado à vida: “Nunca pretender dar um salto no desconhecido, nem renascer de repente uma manhã. Utilizar as beatas dos cigarros da noite anterior e convencermo-nos de que o tempo – o antes e o depois – é apenas uma ideia fixa. Mas, sobretudo, nunca fazer como a serpente, nunca renegar a nossa própria pele: que coisa possui o homem de seu, de vivido, senão justamente o que já viveu? Mas mantermo-nos em equilíbrio, pois que outra coisa tem o homem para viver, a não ser aquilo que ainda não vive?”

O que agora nos alenta a reler de novo este poeta é uma singelíssima e bela edição que recupera os poemas da primeira antologia de Pavese publicados entre nós. Coube a Rui Caeiro a escolha e tradução dos 29 poemas que integram “O Vício Absurdo”, livrinho publicado nas edições &etc, em agosto de 1990. Agora, Rui Miguel Ribeiro, responsável com Mariana Pinto dos Santos das edições do Saguão, dá-nos a versão integral do livro póstumo do poeta italiano, incluindo os 13 poemas que Caeiro escolheu, acrescentados dos seis que ficaram de fora da sua selecção. Estes seis poemas surgem assim numa nova tradução de RMR, sendo também republicado o prefácio daquela antologia, agora em posfácio. Na sucinta e esclarecedora nota biográfica que redigiu, Caeiro diz-nos que em 1950, no último ano de vida do poeta, se dão três acontecimentos distintos e especialmente marcantes: “uma actriz americana de segunda ou terceira categoria (Constance Dowling), que conhece em Roma e por quem se apaixona, abandona-o e regressa aos Estados Unidos; em meados do ano, é-lhe atribuído o prémio Strega, o mais cobiçado galardão literário de Itália; suicida-se com soníferos num quarto de hotel, em Turim, na noite de 26 para 27 de Agosto”. Caeiro remata ainda esta nota com um desses apontamentos que, recortados com a maior brevidade, soam de forma fulminante: “Oito dias antes [de se suicidar] escrevia no seu diário a última anotação: ‘Tudo isto mete nojo./ Basta de palavras. Um gesto. Não escreverei mais nada.’ À tese simplista de que a causa do suicídio de Cesare Pavese teria sido um mero (?) desgosto de amor, pode contrapôr-se o que em tempos escrevera no diário: ‘Ninguém se mata pelo amor de uma mulher, mas porque o amor – qualquer amor – nos revela a nossa nudez, a nossa miséria, a nossa vulnerabilidade, o nosso nada.’”

Apesar da sua consciência bastante dura (talvez até amaldiçoado por ela), Pavese tinha uma noção clara dessas pulsões que se digladiam no íntimo de um homem e que, no limite, o fazem definhar entre o que sabe ser melhor para si e aquilo que não consegue impedir que o atraia. Os poemas deste volume póstumo, escritos entre Março e Abril de 1950, trocam os versos longos da sua primeira recolha, “Trabalhar Cansa”, e aquela “evocação de figuras absolutamente solitárias mas vivas no plano imaginário porque soldadas ao seu pequeno mundo por meio da imagem interna”, por versos que falam na primeira pessoa, dirigindo-se a alguém que não está. Num máximo de contenção, estes versos alcançam uma virtude lírica invulgaríssima, guardando todo o cansaço, toda a dor e desilusão, mas exprimindo ainda assim esse encanto desmedido, e que, embora apertados entre “cesuras magoadas”, nos derrubam com o seu toque de ternura. “De salsugem e de terra/ é o teu olhar. Um dia/ tiveste o esplendor do mar./ Plantas que se acolheram/ mornas, nos teus flancos,/ ainda guardam a tua marca./ Agave e loendro./ Tudo se inscreve nos teus olhos./ De salsugem e de terra/ são as tuas veias, o teu hálito (…) És a grande fadiga/ e a noite que sacia (…) És queimada como o mar,/ como um fruto de escolho,/ e não dizes palavra/ e ninguém te fala.”

Esta edição bilingue, na sobriedade que evidencia a justeza do seu rigor gráfico, consegue deter o efeito ecoante destes versos curtos, que se tornam tão pungentes não tanto pelo que explicitam mas mais por aquilo que prendem de forma incerta, no modo como estão “impregnados de uma musicalidade vibrante” (Carlos Leite), como definem de forma ameaçada e bela esse gesto anterior ao último, quando a carne tem em si ainda o desejo da carne, enquanto a perda não dá lugar ao desespero, mas se alonga na lembrança, tocando a pele do mundo em nua água. “Sempre vens do mar/ e tens a voz rouca,/ e sempre olhos secretos/ de água viva, entre as silvas,/ e a fronte baixa, como/ um céu baixo de nuvens./ Revives de cada vez/ como uma coisa antiga/ e selvagem, que o coração/ já conhecia, calando-se.” Como uma repetição encantatória, impossivelmente belos, talvez os próprios versos, pela sua graça inebriante, realizem esse desfecho fatal, por capturarem em si tudo o que, de tão profundo e sentido, mas não tendo a quem ser entregue, só deixa ao poeta, inteiramente nu, a escolha de despedir-se. “De cada vez a dilaceração,/ de cada vez a morte./ O mesmo combate de sempre./ Quem aceita o confronto/ provou da morte/ e leva-a no sangue./ Como bons inimigos/ que não se odeiam mais/ temos uma mesma/ voz, uma mesma dor/ e vivemos acossados/ debaixo de um céu pobre.”

A escritora Natalia Ginzburg, num dos ensaios que integram o volume “As Pequenas Virtudes” (com edição prometida para este mês pela Relógio d’Água), lembra-se do amigo que vivia em Turim como um adolescente, e que também assim morreu, numa decisão devida a um longo balanço. Para ele o cheiro da tília era uma coisa importante. Depois deixou de o sentir. A adolescência tem de acabar num momento firme. Afinal, os dias de Pavese “eram longuíssimos, como os dos adolescentes, e cheios de tempo; sabia achar espaço para estudar e escrever, para ganhar a vida e vadiar nas ruas que adorava”. Este escritor que pouco dormia, era alguém que durante uns bons anos se recusou a transformar-se num desses funcionários que sentam a uma mesa de escritório, mas Ginzburg adianta que, quando finalmente o fez, se mostrou meticuloso e um trabalhador incansável. Além de pouco deixar ao sono, conta que comia pouco e fazia as refeições rapidíssimo. Para a amiga a sua tristeza era uma espécie de cancro juvenil, que se curaria quando decidisse tornar-se adulto. Vendo essa afecção “como a melancolia voluptuosa e distraída do rapaz que ainda não tocou a terra e se move no mundo árido e solitário dos sonhos”. Afinal, enganava-se. Pavese surgia como uma figura temperamental, capaz de procurar os outros como quem se assegura de uma decepção que o sufoca desde a raiz. “De vez em quando, à noite, vinha ao nosso encontro; sentava-se pálido, com a sua pequena echarpe ao pescoço, e retorcia os cabelos com a ponta dos dedos ou amassava uma folha de papel; não pronunciava uma só palavra, não respondia a nenhuma das nossas perguntas. Por fim, num impulso, agarrava o capote e desaparecia. Humilhados, perguntávamo-nos se a nossa companhia o havia decepcionado, se tentara tranquilizar-se ao nosso lado e não conseguira, ou se simplesmente se propusera passar uma noite em silêncio debaixo de uma lâmpada que não fosse a sua”.

Pavese viveu sempre nesta indecisão, convicto de que estava destinado a ficar a sós, de que era esse o exercício que lhe convinha, debatendo-se com a noção de que é melhor estar com os outros, tentando ligar-se-lhes, ao invés de entregar-se resolutamente à sua solidão. No seu diário deita um contorno firme a essa ilusão: “É agradável ter, de tempos a tempos, um odre em que nos possamos despejar e, em seguida, bebermo-nos a nós próprios: dado que pedimos aos outros apenas aquilo que já temos em nós. É um mistério o motivo por que não basta perscrutar e beber em nós próprios e seja preciso reavermo-nos por intermédio dos outros. (O sexo é um incidente: o que recebemos é momentâneo e casual; pretendemos algo de mais secreto e misterioso de que o sexo é apenas um sinal, um símbolo).”

Pavese nunca teve mulher nem filhos, embora o tenha desejado intensamente. Morava com uma irmã casada, e pelo que nos conta Ginzburg, foi-se embrenhando em complicações de pensamento absurdas e tortuosas, usando de modos rudes com a própria família, não deixando que os amigos tentassem consolá-lo nem, muito menos, que lhe dessem conselhos, que tentassem ensiná-lo a viver “de modo mais elementar e respirável”. “Tinha, nos últimos anos, um rosto sulcado e escavado, devastado por angustiantes pensamentos: mas conservou até ao fim, na figura, a graça de um adolescente”, assegura a amiga. E embora, nesses últimos anos, tenha alcançado uma certa celebridade nos meios literários, como anota às tantas no seu diário, até isso motivava um certo fastio: “Dás por ti consagrado pelos grandes mestres de cerimónia. Dizem-te: tens quarenta anos e já o conseguiste, és o melhor da tua geração, vais ficar na história, és distinto e autêntico… Não era isto aquilo com que sonhavas aos vinte anos?” E a resposta que o poeta se dá é dolorosa e comovente: “Não era só isto o que queria. Queria continuar, ir mais adiante, digerir outra geração, tornar-me perene como uma colina.”