Hungria-Portugal. O Danúbio está castanho, mas o céu é de um azul português

Hungria-Portugal. O Danúbio está castanho, mas o céu é de um azul português


Chegou tarde a vitória confortável de Portugal sobre os húngaros mas foi insofismável – 3-0. Com a vitória da França sobre a Alemanha (1-0), a qualificação está de portas escancaradas. Um empate no sábado, em Munique, garantiria, no mínimo, um lugar entre os melhores terceiros. Sabemos bem o que isso significa.


BUDAPESTE – Vinte e quatro horas após a vitória difícil mas indiscutível de Portugal sobre a Hungria, na Arena Puskás, os fanáticos adeptos húngaros ainda mastigam a comida a saber a bílis, tal a convicção de que teria chegado finalmente o momento de bater os portugueses, algo que nunca conseguiram em 95 anos de confrontos entre ambos. Melancólico, como tantos povos do leste, ainda agarrados aos feitos guerreiros dos seus antepassados que não conseguem repetir nos novos campos de batalha que são os campos de futebol, deixam-se levar pela desistência que tão bem surge ilustrada na poesia de Ady Endre, um dos seus grandes líricos (1877-1919), que perguntava sem nunca poder responder: “Pode-se chorar abaixo dos Cárpatos?”

Decididamente pode. Ainda vislumbrámos algumas lágrimas à saída do estádio. Estádio que apresentou uma extraordinária imagem de aprumo a despeito de ter sido ocupado por mais de 60 mil pessoas. Parecia que tínhamos regressado à vida que nos tiraram, de repente, porque uma maleita invisível e imperscrutável desatou a dizimar a raça humana. Toda a cacofonia de ruídos que se concentrou naquele estádio enorme, serviu para eletrizar o jogo durante muitos momentos. Os urros em uníssono, os assobios constantes e desafinados sempre que um português tocava na bola, as canções para mim inteligíveis – imagens e sons para não se esquecerem por mais que as décadas de jornalismo e repetições de momentos como estes já me devessem ter feito crescer uma carapaça sentimental maior do que a de uma tartaruga das Galápagos.

Os números confortáveis da vitória lusitana e pouco importa que tenham sido obtidos nos últimos seis minutos – abrem às escâncaras os portões da qualificação. Não correremos grande risco de errar ao dizer que mais um ponto nos empurrará para os oitavos-de-final, nem que seja com a fatiota de um dos melhores terceiros, tal como aconteceu há cinco anos, em França. A vitória dos franceses sobrre os alemães obriga, desde já, a que a Cavalgada das Valquírias caia sobre nós no próximo sábado, em Munique. Mas essas são o tipo de situações que costumam correr-nos de feição.

Impressionante Por detrás da baliza sul, o grupo dos nacionalistas, vestidos com camisolas negras com Hungary, à inglesa, no peito, a letras brancas, espalharam um longo cartaz que dizia: “Dicsö fényédben rscpogji újrs,Magyarország”, o que com esforço, se pode traduzir, “Hungria, acende novamente a tua luz gloriosa”. Não chegou. Infelizmente para os húngaros, o seu futebol não tem uma luz gloriosa que possam reacender, e vivem de memórias, agarrados aos seus poemas saudosistas e melancólicos. Outra vez Ady Endre: “Para tudo estamos sempre atrasados/Vimos por certo de muito longe/São nossos passos tristes, cansados/Para tudo estamos sempre atrasados”. Esse atraso está aí, bem marcado pelas dificuldades que se seguem face a franceses e alemães, Já ninguém dá um forint furado pelas hipóteses da Hungria.

Agora, à distância tranquila que o tempo dá, podemos rever mentalmente o jogo de Portugal e encontrar-lhe limitações que deveriam ter sido limadas mais cedo. Fernando Santos mexeu bem na equipa, mas tarde. Antes de partir para a vitória, correu o risco sério de sofrer um golo (sofreu-o, mas havia um offside isofismável), e de forma absolutamente desnecessária. Com Renato Sanches em campo, recuperou a equivalência física que Portugal vinha perdendo; com André Silva, libertou Ronaldo da perseguição contínua feita por dois ou três húngaros, e permitiu-lhe sair da direita para fazer aquele terceiro golo que se tornou a conclusão de um lance maravilhoso no qual a bola foi trocada de pé para pé por mais de vinte vezes antes que Cristiano driblasse o guarda-redes para a colocar suavemente dentro da baliza. E, para terminar, aquele bingo de Rafa pareceu saído de um tira-linhas. A forma como o baixinho jogador português pôs a sua velocidade ao serviço do conjunto, primeiro arriscando o centro que fez a bola cair, obediente, no pé esquerdo de Guerreiro, no primeiro golo; em seguida arrancando um penálti quando o defesa húngaro o arrancou do chão no seu caminho supersónico para a baliza de Gulacsics; finalmente aquela tabelinha mágica com Ronaldo para o 3-0, acabaram por ser surpreendentes, não apenas para os pobres húngaros, mas também para nós. Ou pelo menos para mim, confesso-o sem rebuço. Não tinha contado com Rafa nas escolhas principais do engenheiro. E o facto está aí, sobrepondo-se às suposições: o engenheiro conta, afinal, mais com ele do que eu pensava e, tal como tudo veio a decorrer, Rafa subiu uns passos na hierarquia dos suplentes. Sem que isto seja garantido. Quem conhece a forma de atuar do engenheiro, não estranha que ele chame um jogador só para um momento particular de um jogo especial.

É altura para viajar para leste, a caminho de Munique, aqui a 650 quilómetros da Budapeste à qual teremos de regressar para fechar as contas derradeiras do grupo face à França que, com a vitória justíssima sobre o rival alemão (1-0), continua a demonstrar que é a melhor equipa do mundo neste momento e se apresenta como favorita maior para a conquista da taça que leva o nome de um dos seus dirigentes desportivos históricos – Henry Delaunay. Não deixa de ser positivo – se há o mínimo de lógica neste jogo inventado pelos ingleses e a que eles chamam de “association” – que nos caiba jogar com a França no fecho da primeira ronda. Já a encontraremos naturalmente apurada e sem a fogueira competitiva com que se impôs no jogo de Munique. Para já, Portugal sorri nesta Primavera húngara de céu azul. Um azul que não se espelha no Danúbio castanho, desmentindo a valsa de Johann Strauss II.