BUDAPESTE – Pode ter sido um fulano pouco expansivo, avesso a dar nas vistas, mas continua a ser, tantos anos depois da sua morte, a 28 de dezembro de 1954, em Viena, um dos húngaros mais estimados pelos seus compatriotas. Era húngaro e austríaco ao mesmo tempo, já que fruto do Império ao tempo em que veio ao mundo, no dia 23 de setembro de 1896, em Maria Theresiopel. O sangue, esse, era profundamente húngaro, produzido por uma família secular. No entanto, austracizou-se, o que não é o mesmo que dizer que se ostracizou, mas chega a andar lá por perto quando vários dos seus camaradas de juventude criticaram ferozmente a sua preferência por viver e estudar em Viena. Durante a I Grande Guerra, combateu como oficial de artilharia. Algo que lhe atrapalhou, evidentemente, a conclusão do curso de Direito. Recompôs-se. Era um tipo duro. Foi juiz do Tribunal Distrital de Baden, não longe de Viena, passou pelo cargo de Procurador de Justiça em Wiener Neustadt e, em 1934, já era ministro da Justiça.
Embora se considerasse um apolítico, recusando envolver-se em movimentos partidários, o Dr. Jozsef Gerö não escapou às garras da Gestapo aquando do Anchluss, a anexação da Áustria pela Alemanha em março de 1938. Carimbado com o estigma de meio-judeu, foi enviado para o Campo de Concentração de Dachau, na Baviera, e mais tarde transferido para Buchenwald. Ao fim de 16 meses de trabalhos forçados, foi libertado com a condição de fixar residência em Zagreb e autorizado a trabalhar numa fábrica de têxteis. Em 1941, a Gestapo voltou a bater-lhe à porta, voltando a ficar detido até 1944, quando regressou a Viena para ganhar a vida num negócio de importação e exportação de seda.
A vida de Jozsef andava tão à roda como as pás de um moinho. Voltou a ser ministro da Justiça austríaco (em 1949 e, depois, entre 1952 e 1954), e o tempo que passou nas mãos dos nazis serviu para que ninguém se recordasse de uma série de julgamentos precários que levantara contra membros do Partido Comunista enquanto exercera o cargo de Procurador. Parecia ter feito as pazes com a História.
Fundador! Jozsef era um enorme entusiasta por futebol. Ainda em garoto, fundou, com alguns colegas, o FC Libertas Vienna, clube que chegou ao topo do futebol austríaco e do qual acabou por ser presidente. Em 1945, tomou o posto de presidente da Federação Austríaca de Futebol e manteve o cargo até ao fim da vida. Nove anos mais tarde, tornou-se vice-presidente da FIFA.
Eram tempos em que o futebol dos países do Danúbio, Áustria, Hungria, Checoslováquia e Jugoslávia, tinha atingido um nível e um prestígio inabaláveis. Apesar da II Grande Guerra, alguns deles conseguiram manter acesa uma competição com uma dimensão digna de um Campeonato da Europa, a European International Cup of Nations ou mais prosaicamente Dr. Gëro Cup. As nações convidadas a participar foram a Polónia, Áustria, Checoslováquia, Hungria, Itália, Roménia e Suíça, e mais tarde a Jugoslávia, o que dá uma boa ideia do nível competitivo de uma prova jogada em estilo de campeonato, por pontos, e com jogos fora e em casa. Não admira, portanto, que cada uma dessas competições demorasse cerca de dois anos até ficar concluído, tendo tido o total de cinco edições.
No início, o troféu levou o nome de Švehla Cup, em homenagem a outra grande figura de então, Antonín Švehla, primeiro-ministro da Checosováquia que generosamente oferecera uma taça de inegável valor. Depois da II Grande Guerra, foi resolvido que era necessário outro troféu e que, desta vez, o homenageado seria o dr. Jozsef Gëro. Assim foi.
Se a primeira edição da prova (1927-30) foi conquistada pela Itália do treinador mágico, Vittorio Pozzo, e do seu jogador imparável, Giuseppe Meazza, as restantes foram divididas pela Áustria (1931-32), novamente pela Itália (1933-35), pela Hungria (1948-53) e pela Checoslováquia (1955-60). Depois, o aparecimento do Campeonato da Europa, inicialmente apelidado de Taça das Nações, fez com que a Dr. Gëro Cup perdesse o interesse que suscitara até então, sobretudo naquele que foi considerado o jogo dos jogos, o encontro decisivo da edição de 1953 – em Roma, perante uma multidão italiana fanática, completamente “scatenata”, como eles gostam de dizer, a grande Hungria, treinada por Gusztáv Sebes e com Ferenc Puskás, Zoltán Czibor, Sándor Kocsis, Nándor Hidegkuti, József Bozsik, além do enorme guarda-redes Gyula Grosics, deu um espetáculo memorável e venceu por 3-0 sem que houvesse um dedo a apontar à justiça de tal vitória.
Dr. Gëro, o austríaco de alma húngara, ainda pôde ver, sem esconder a alegria, essa partida formidável. Morreria pouco depois.