BUDAPESTE – O dia nasceu quente, refrescado por um vento leste. Desde cedo, camisolas encarnadas espalharam pelas ruas de Buda e Peste, mais de Buda do que de Peste, já que é aqui que ergue a nova Arena Ferenc Puskás, erguida sobre os escombros do velho Estádio do Povo (Népstadion), lugar mágico de tantas e tantas exibições dessa Hungria inimitável dos anos 50 à qual só faltou ser campeã do mundo. O grito ouve-se aqui e ali: “Erö Magyarország!” (Força Hungria!), nessa língua de trapos enquanto as filas de gente se engrossam da Kerepesi út, dividida nas suas seis pistas margeando o Parque de Istvánmezö, que se pode traduzir por Querido Istvan, último grão-príncipe dos húngaros e primeiro rei da Hungria, elevado a santo pelo Papa Gregório VIII, embora os motivos da santidade daquele que foi mais guerreiro do que pacifista se percam na noite dos tempos e na memória dos homens.
Há sempre uma espécie de ritual para cumprir, para nós jornalistas: recolher o bilhete do nosso lugar na bancada de imprensa, passar pela sala de imprensa onde se escorropicham cafés e se trocam palavras com camaradas de outros lugares, de outros jornais, de outros países, de outras reportagens, subir as escadas até ao topo mais alto do estádio – nesta caso do Puskás Arena – esperar pelos voluntários que nos trazem as folhas com as equipas escolhidas, ligar computadores, acertar pormenores com a redação. Na brincadeira, quando trabalhei como assessor de imprensa da Selecção Nacional, o meu querido amigo Luiz Felipe Scolari costumava dizer: “Isto é tudo muito divertido. O jogo é que atrapalha”.
Pois o jogo ainda não começou e eu sinto a habitual ânsia para ver a bola rolar naquela verderdura de relva fofa em riscas horizontais, tratada melhor por uns e pior por outros. E uma vontade forte de perceber se, na realidade, as bancadas estarão cheias como prometido pela organização húngara, das poucas que não impôs restrições à entrada de público e garantiu acesso à percentagem máxima de bilhetes para os que quisessem estar presentes neste Hungria-Portugal. A lotação oficial está fixada nos 67.215. Por isso, e perante as habituais medidas mínimas de segurança, calculava-se na véspera que estariam aqui cerca de 60 mil espectadores. Estou a vê-los, entrando um a um, ou em grupos pequenos. Mas não, desculpem lá qualquer coisinha, como dizia o Paulo de Carvalho, não vou contá-los.
Novos dias Com o passar dos anos, muitos dos meus bons amigos foram deixando de aparecer, gente como o Paco Aguilar ou a Cristina Cubero (do Mundo Deportivo), o David Ruiz (da Marca), o Erik Bielderman (do L’Équipe), o Jean-Marie Lanöe (do France Football) e tantos outros que, por convicção, ou nos intervalos dos jogos dos seus países, seguiam as peripécias da Seleção Nacional. A UEFA, que manda nas bancadas de imprensa, ao contrário das autoridades húngaras restringiu o número de acreditações. Escrevemos à larga, sem medo de nos acotovelarmos, à medida que os minutos se escoam na direção do apito inicial de um turco chamado Cüneyt Çakır, nome quase tão difícil de pronunciar como os dos húngaros que já fazem o seu aquecimento na metade sul do relvado, junto de umas figuras sinistras de camisolas negras que se apertam por detrás da baliza e berram, em uníssono, cantos para mim ininteligíveis.
Quando Ronaldo surge no ecrã do estádio, os silvos são agudos como assobios de pássaros histéricos. Quando, por segundos, entram em silêncio, o sussurro das conversas misturadas parecem zumbidos de vespas. São poucos, os portugueses, encolhidos num canto a norte. A luta de vozes é desigual, como já se sabia, e será sempre desigual até ao fim deste Europeu ainda profundamente marcado pelo medo das viagens e pelas contínuas inspeções dos nossos estados febris. A promessa de enchente completa não se cumpriu, mas para os húngaros pouco importa. Vencem logo à partida a batalha do barulho. O seu orgulho bruto dá largas pelos céus de Budapeste…