BUDAPESTE – Há vinte e cinco anos e meia-dúzia de dias, sentei-me na bancada de imprensa do Estádio de Hillsborough, em Sheffield, para cobrir para o jornal no qual então trabalhava o Dinamarca-Portugal que marcava o regresso da seleção nacional a uma fase final de um Campeonato da Europa. Ontem, em Budapeste, a mesma paixão pelo jornalismo sentou-se a meu lado no lugar A da fila 96 da Puskás Arena para escrever para os que têm a paciência de me ler a crónica do Hungria-Portugal que assinalou a estreia da Equipa-de-Todos-Nós, como lhe chamou Ricardo Ornellas, no Europeu de 2020, chutado para a frente um ano por via da maldição que tombou sobre a Terra, estreia essa acrescida da responsabilidade de defender o título conquistado em 2016, no Estádio de Saint-Dennis, em Paris.
Não deixou de ser com alívio que vi o estádio encher-se a pouco e pouco, até ficar completo, como se já tivéssemos todos regressado à vida. E a entrada em campo do onze de Fernando Santos, enfrentando a zoada de assobios e de gritos hostis, como que cumpriu a regra secreta que os velhos generais conhecem de cor: era o barulho do medo. Com Danilo e William Carvalho a servirem de porta-estandartes no centro do meio-campo, a ideia que ficou de início foi a de que Bruno Fernandes teria à vontade para se aproximar de Ronaldo, cabendo a Bernardo Silva e a Diogo Jota saltarem das alas para o meio. Coisas que se planeiam e se preveem, mas um jogo de futebol é algo de tão profundamente amarrado aos gestos súbitos, tantas vezes emotivos, que não deixa lugar à ciência certa. O ambiente era bélico. “Deus, derrama sobre o húngaro/Fartura e alegria/Guarda-o com teu braço quando/luta com inimigos”, cantam eles no seu hino. Lovrencsics. Kleinheisler, Nagy e Shaffer não tardaram a ver em cada um que envergava a camisola branca das riscas esquisitas de Portugal um inimigo. Uma rija luta a meio-campo. Faltas sobre faltas. Portugal subindo no terreno depois do inicial fogo-fátuo dos magiares. Aqui e ali um toque de brutalidade, algo que também está no sangue deste povo de guerreiros. Tornava-se necessário retorquir com inteligência e sangue-frio. É de esperar que o turbilhão das estrelas portuguesas, por aqui tão incensado, seja capaz de o fazer.
Percebe-se, pelo desenrolar do encontro, aquilo que todo o universo sabe: Portugal é melhor. Está chegada a hora de o demonstrar, com a bola no pé, que no pé dos grandes jogadores que ela se sente bem, acarinhada e submissa. Pés que lhe deem ordens concretas no momento exato de aproveitar uma distração contrária, um movimento defensivo mal calculado. Curiosamente, com vinte minutos decorridos, as balizas não parecem fazer parte do jogo. Ronaldo e Bruno Fernandes desentendem-se, Jota e Bernardo usam mais o esforço do que o talento. Ainda assim, aos 39 minutos (Jota) e sobretudo aos 42 (Ronaldo) Portugal fica a centímetros do golo. Os húngaros estão confortáveis. Do meio-campo para a frente, confiam no seu capitão, o ponta-de-lança Szalai que tem que se ver com Pepe e Ruben Dias numa luta condenada ao fracasso. O jogo é feio, o intervalo faz-lhe bem.
O problema. Portugal está a contas com o problema que vem de longe e se agrava em jogos deste cariz. Precisa de um golo e não o faz. E dá alento aos adversários que começam, a partir de certa altura, a ocupar mais espaço no comprimento do terreno. Chega o momento em que é preciso mudar qualquer coisa para surpreender um sistema defensivo que vai dando conta das movimentações lusitanas, sobretudo quando Bruno Fernandes e o Bernardo Silva se deixam cair na tentação de fazer centros para um Ronaldo que, na maior parte das vezes, nem sequer se encontra na zona da marca do penálti.
Fechado na gaiola dessa incapacidade, fica a ideia de que esperar por um golpe individual é a única solução para quebrar o cadeado do golo. Os laterais sobem com mais frequência, William Carvalho estica mais o seu perímetro de atuação. Se começarmos a ver as coisas pelo lado dos húngaros, percebemos o que eles também percebem e o seu treinador, o italiano Marco Rossi vislumbra: a oportunidade de aproveitar o espaço que se vai criando nas costas dos portugueses que se adiantam.
Agora sim: o jogo deixa de ser tão aborrecido como o fora na primeira parte. Estamos perante duas atitudes opostas mas a superioridade de Portugal vai-se desvanecendo perante uma maior disponibilidade física dos húngaros. O Duende de Lorca, aquele Duende que sobe pelos pés dos jogadores de talento indiscutível e os faz deslumbrar quem os vê com movimentos que têm algo de divino, está escondido. Será medo? Estará, porventura, à espera de um minuto assassino? Olhamos para o relógio e ele marca o minuto 70. Tirando um remate de muito longe de Bruno Fernandes, nada incomoda o guarda-redes Gulácsi.
Cada vez que a cavalaria ligeira dos húngaros irrompe pelo meio terreno português, o estádio urra por inteiro num som macabro de rebentar tímpanos. Como fazê-los calar se se sentem, de um momento para o outro, tão bons como os melhores, tão bons como os campeões europeus que esbracejam impotentes na sua frente? “Este povo já expiou bem/O passado e o porvir”, continua o seu hino. Ei-los portanto com a desforra nas mãos. Conseguirão ganhar ao opositor português que nunca venceram ao fim de 95 anos de história? O golo anulado por fora de jogo provoca um terramoto de fazer explodir o ritmo dos pensamentos. William e Bernardo Silva dão lugar a Renato Sanches e a André Silva. A seguir entra Rafa. O entusiasmo é inegável. Roga-se por Ronaldo, mas não é ele que surge: é Guerreiro que chuta, mansa, uma bola que lhe era dirigida e faz 1-0. 84 minutos. Depois sim, Ronaldo, de penálti, depois de carga sobre Rafa (87). A vitória não fugirá. A bola, obediente, seguiu as ordens dos pés dos artistas que a tratam bem. E há ainda lugar para a obra de arte de Ronaldo para o 3-0. O serviço está cumprido: seguimos no caminho de Munique.