Eric Frattini. “Os serviços secretos operam nos esgotos das sociedades democráticas”

Eric Frattini. “Os serviços secretos operam nos esgotos das sociedades democráticas”


Este antigo correspondente no Médio Oriente, que escavou segredos de todo o globo, debruçou-se sobre os impiedosos assassinos da Mossad, os kidon.


Para Eric Frattini, jornalista espanhol veterano, antigo correspondente do El País em Jerusalém (onde esteve durante a intifada) e em Beirute (durante a guerra civil libanesa), nada é tão estimulante como esmiuçar segredos proibidos. Já escreveu livros sobre aquilo que se esconde atrás das paredes do Vaticano, ao rasto deixado pela CIA em Portugal, passando por mistérios da máfia e histórias de nazis.

Contudo volta e meia, o Médio Oriente chama de novo, e Frattini escreve sobre o opaco e militarizado Estado israelita. Como na sua obra Mossad – Os Carrascos do kidon (Bertrand Editora), onde se debruça sobre a impiedosa unidade de assassinatos das secretas israelitas. Os contos – um antigo agente da Mossad, amigo de Frattini, assegurou-lhe que o livro era um terço de ficção, um terço de verdade e um terço de lenda, pois nunca é fácil escrever sobre organizações secretas – vão da caça ao nazi Adolf Eichmann, até à vingança sobre o Setembro Negro, passando pelo confronto entre Israel e a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), depois contra o Hamas. Mas muitos giram à volta da corrida nuclear no Médio Oriente, das tentativas de Israel defender o seu programa, enquanto minava esforços nucleares sírios e iranianos.

Porquê o seu fascínio tão grande pelos serviços secretos?
Principalmente porque, como o nome indica, são secretos. E a um jornalista basta que se diga que algo é secreto para que te perguntes porquê, é a base da profissão, quase nos obriga a investigar. E porque os serviços de inteligência que eu investigo pertencem a países democráticos. Provoca-me mais fascínio tentar perceber como são capazes de escapar à lei – porque todos os serviços secretos escapam à lei – sem violar as constituições. Claro que num país como a Rússia, que não é democrático, é fácil que o façam, porque não tem nenhum controlo constitucional.

Um serviço secreto como o CNI espanhol, ou os serviços secretos portugueses, têm uma série de recursos e controlos constitucionais, para que não façam das suas. E, no caso da Mossad, é um serviço de inteligência de um país democrático, que tem os seus controlos no Parlamento, no gabinete do primeiro-ministro, no Ministério da Defesa, e interessa-me muito ver como se saltam essas normas para cumprir uma missão.

Neste momento há um certo turbilhão político em Telavive, mas o que pensa ser a orientação israelita no que toca à Kidon, aos assassinatos seletivos? Com base no que conheceu da Mossad, quem crê que terá o seu nome escrito no temido livro vermelho?
Não podemos ter uma mentalidade ocidental para analisar isto. Porque quase sempre nos países democráticos ocidentais, cada vez que muda a cor do Governo mudam os diretores dos serviços de inteligência. Em Israel não é assim. Para os israelitas, para a população, a Mossad é como mais uma infantaria, ou uma unidade da força aérea.

Ou seja, quando muda de Governo, seja do Likud ou dos trabalhistas, não mudam os generais que dirigem os regimentos. Se muda o diretor da Mossad, o memuneh, é porque está mal, como foi o caso de Meir Dagan, que tinha cancro, e disse a Netanyahu que não conseguia continuar, ou como Tamir Pardo, porque teve sérias discussões com o primeiro-ministro, sobre como eram usadas as secretas no exterior, provocando sua a substituição.

Essa é uma questão crucial, as operações da Mossad no exterior, porque não lhes interessa nada que tu estejas em Portugal, ou que eu esteja em Espanha. Se tu te convertes num objetivo, se o teu nome aparece na lista vermelha, provavelmente vão-se a ti. Em todo o caso, deixa-me que te diga que, para que o teu nome apareça no livro vermelho, passa por uma espécie de sistema constitucional, não é assim tão fácil que eu simplesmente não goste de ti, não gosto da tua forma de escrever, e digo: ‘Vamos matá-lo’. Não é assim. Há um comité, o chamado comité X, formado por todos os diretores de serviços de inteligência de Israel, incluindo membros do Governo. Que decidem se o teu nome entra ou não.

Uma vez que o teu nome esteja lá, por maioria de votos, vais a julgamento, presidido por um juiz do Supremo Tribunal, com um advogado que te defende in absentia. E, finalmente, se se decide que tu deves ser liquidado porque és um problema de segurança do Estado de Israel, aí ficas no livro vermelho. Mas é única e exclusivamente o primeiro-ministro que decide se és executado ou não, é ele que assume plena responsabilidade.

Tudo isso que descreve é incrível, a maneira como Israel criar mecanismos ‘legais’ próprios, à margem da lei internacional, que obviamente proíbe este tipo de assassinatos, sobretudo em solo de outros Estados soberanos. 

Para Israel tanto faz, é o que chamam à Kidon, o ‘longo braço de Israel’. É igual que te escondas num apartamento em Lisboa ou numa casa fortificada no norte do Líbano. E, mais cedo ou mais tarde, vão-te encontrar. Conto no livro que, num caso, perseguiram um alvo mais de uma década, como Imad Mughniyeh. 

Refere-se ao número dois do Hezbollah?
Sim, exato, demoraram 17 anos até localizá-lo no Líbano, e a matá-lo.

E neste momento, apesar da instabilidade política israelita, para onde está virada essa política de assassinatos?
Primeiro, a política nuclear iraniana. Todos os que sejam suscetíveis de ser implicados na política nuclear iraniana vão ser um problema para Israel. E tanto lhes faz que sejas o chefe do programa nuclear de Israel, como aconteceu em novembro, que o mataram, se fazes parte de um grupo de cientistas que faz assessoria ao Governo do Irão, ou que sejas um ex-general do exército russo que facilitaste material nuclear, é igual.

Mas também podem optar por atacar o programa nuclear a nível informático, como fizeram com o vírus Stuxnet, para paralisar todas as centrifugadoras iranianas. Ou como fizeram com um ataque recente em Natanz [uma das principais instalações nucleares do Irão], é claro que foi Israel, é claríssimo. Está bem estabelecido que o Irão é seu o primeiro objetivo, e o segundo continua a ser o Hamas. O que acontece é que a Mossad se dedicou a liquidar objetivos no setor mais radical do Hamas, através de ataques seletivos. E depois, é um objetivo tudo o que seja suscetível de apoiar o Irão, Síria ou o Iraque contra interesses israelitas. Mas o objetivo número um é o Irão.

Mencionou o assassinato do cientista iraniano Mohsen Fakhrizadeh. Na altura, algumas autoridades iranianas falaram no uso de uma metralhadora inteligente, falou-se até de que teria algum tipo de reconhecimento facial. O que pensa disso?
Não, é muito mais simples, isso é coisa de James Bond, não existe. Quer dizer, existe a tecnologia, a partir do momento em que há um piloto numa base na Florida, nos arredores de Pensacola, que pode manejar um drone sobre qualquer ponto do Médio Oriente e te pode lançar uma bomba sobre o carro. E, de facto, nos últimos anos, a CIA tem dado mais importância à tecnologia do que à inteligência obtida através de pessoas. Rimo-nos do estereótipo do espião de gabardina e chapéu, mas é o que continua a funcionar no Médio Oriente.

Continua a funcionar o espião que se mete num café, toma um chá, e é amigo de um técnico que trabalha em Natanz. E Israel nunca abandonou esse tipo de espionagem. Por isso, diz-se que esta operação de novembro para matar

Fakhrizadeh foi uma operação conjunta entre os Estados Unidos e a Mossad. A CIA o que fez foi simplesmente compilar a informação, porque tem muito boas fontes, mas no terreno agem os israelitas, são eles que mandam. Não só nesta operação contra Fakhrizadeh, também no assassinato do nº 2 da Al Qaeda [Abu Muhammad al-Masri] e da sua filha numa rua de Teerão, fo certamentei Israel, porque é quem tem gente no terreno.

É interessante que, na altura do assassinato de Fakhrizadeh, falou-se muito sobre o timming, com entre a Administração Trump e a de Biden, que seria uma tentativa de destabilizar o potencial reaproximar entre Irão e EUA num acordo nuclear. O que pensa deste uso dos assassinatos como ferramenta política internacional?
Penso que não mudou assim tanto a política, não tenhamos ideias tolas. Há muita tolice europeia atualmente, de que antes governava um tirano como Trump e agora governa um progressista como Biden. Vamos a ver: quem levou a cabo as operações mais duras de represálias no Médio Oriente foi o Presidente Obama. E quem tinha como seu vice-presidente? Biden. Agora, Biden chegou, sentou-se no escritório oval da Casa Branca e na primeira semana ordenou bombardeamentos na Síria. Isso só vi em dois países, nos Estados Unidos e em Israel.

Nos EUA, podes pertencer ao Partido Democrata ou ao Partido Republicano, mas quando te sentas no escritório oval és o Presidente dos Estados Unidos. Em Israel, sejas do Likud ou doutro partido, e te sentas como primeiro-ministro em Jerusalém, és primeiro-ministro de Israel. Já não entra na agenda se és de esquerda ou de direita. Não é assim em Portugal ou Espanha. Biden a primeira coisa que faz é autorizar que Israel siga para a frente no que toca às suas operações contra o Irão. Não creio que Biden seja um moderado, ou que possa ser um problema para Israel no que toca à política face ao programa nuclear do Irão. Vai ser um continuismo absoluto, como em muitas outras coisas.

Ao ler o seu livro, fiquei intrigado com a frequência e aparente facilidade com que a Mossad conseguia enviar comandos kidon, apoiados por unidades militares, sobretudo Sayeret Matkal [forças especiais israelitas] para território inimigo, desde países árabes até ao Irão. Sempre pensei que os assassinatos seletivos fossem alvo de maior secretismo, agentes encobertos e de tiroteios a partir de motos.
O Sayeret é uma unidade especial ultrassecreta como o SAS britânico, inclusivamente tiveram treinos conjuntos. O Sayeret só atua em zonas próximas de Israel, nada mais. Quando uma operação da Mossad precisa de apoio técnico do exército, por exemplo em deslocações, infiltrações ou demolições, aí é o Sayeret que atua. Um dos chefes mais poderosos da unidade foi [o antigo primeiro-ministro trabalhista] Ehud Barak.

E Benjamin Netanyahu foi agente da unidade também.
Também, bem como o seu irmão, [Yonatan] “Johnny” Netanyahu, que morre na Operação Entebbe [no Uganda, em 1976, o resgate de 106 passageiros e tripulantes de um avião francês, que a OLP queria trocar por prisioneiros palestinianos].

Ou seja, os kidon fazem sobretudo as ações mais furtivas, com agentes infiltrados.

Sim, por exemplo, há uma operação em que matam o general [Muhammad] Suleiman, o líder do programa nuclear sírio, em Beirute. Todo o seguimento e vigilância da localização do alvo é feito pela Mossad. Mas no ataque, os franco-atiradores que disparam são do Sayeret, que se infiltraram pela costa, mataram o general na sua casa de praia e voltaram a Israel nas lanchas. Esse tipo de golpe fá-lo o Sayeret.

Esse capítulo do livro começa anos depois disso, em 2014, contando a tomada de Deir ez-Zor, onde estava sediado o programa nuclear sírio, pelo Estado Islâmico. Quão perto esteve a Síria de desenvolver armas nucleares? E o que significaria um país com armamento nuclear cair nas mãos do Estado Islâmico?
Felizmente nunca o conseguiram, porque nessa zona estavam a desenvolver um reator nuclear, aquele que Israel bombardeou com aviões F-15 e destruiu, pouco tempo depois caiu nas mãos do Estado Islâmico. Efetivamente, imagina uma instalação para criar armas nucleares nas mãos deles? Que perigo, ainda bem que arrasaram aquilo, porque o problema já não era a Síria.

O Governo de Bashar al-Assad pode ser um Governo ditatorial, mas está sentado nas Nações Unidas, tens muita forma de pressioná-lo, economicamente, com sanções, ao Estado Islâmico claro que não dá. E o pior é que, pelo que se sabia na altura, pensa-se que aquelas instalações sírias eram para criar armas nucleares mas pequenas, não de grande potência, para mísseis. Ainda pior, pensa no que seria uma pequena arma nuclear no centro de Madrid, a quantidade de mortos que não seria. 

De facto, nas ações que narra no seu livro, há o tema recorrente dos programas nucleares. Agora do Irão, antes de Síria. Mas também giram muito à volta de esconder o programa nuclear israelita. E o retrato que se vê é de um país disposto a tudo para o fazer, desde perseguir jornalistas a tentar assassinar delatores.
Israel já não esconde o seu programa nuclear, tem a central nuclear de Dimona, no deserto do Neguev, que está reconhecida pela Agência Internacional de Energia Atómica, que é uma instalação nuclear não para teres eletricidade em casa, é para criar armamento nuclear.

Mas se Israel não queria esconder o seu programa nuclear, não é isso que se lê no seu capítulo sobre Mordechai Vanunu. No livro menciona que Israel considerou e planeou matar jornalistas, e que perseguiu Vanunu durante anos. 
Mas isso é nos anos de Nixon, em que não se sabia que Israel estava a desenvolver um programa nuclear com ajuda de França. Claro, efetivamente sequestraram Mordechai Vanunu, que era um técnico de Dimona, que decidiu entregar todas as informações secretas a um jornal britânico [Sunday Times], foram-se a ele levaram-no para Israel. Aplicando-lhe a lei israelita de alta traição.

Mas hoje já há reconhecimento de Israel como membro do clube das armas nucleares desde os anos 90. Mas toda a gente já o sabia, inclusivamente depois das revelações de Vanunu. Porque ele não leva só documentos, leva também fotografias do reator principal a desenvolver armamento nuclear. E falamos de uma época muito conturbada no Médio Oriente, e reconhecer que tinha armas nucleares era muito complicado para Israel.

Contudo, não se sabe qual a capacidade nuclear real de Israel…
Não se sabe, porque Israel esteve auditado pela Agência Internacional da Energia Atómica, mas os números que mostram vão só até ao ano de 2001. O que querem dizer, que de 2001 até 2021 não fabricaram mais? Provavelmente sim. Mas, para mim, tanto se me dá que tenham uma ou mil armas nucleares, é um perigo ter-se armamento nuclear, sobretudo no Médio Oriente.

Acha que o facto de Israel ter um programa nuclear, desenvolvido em segredo, que é em boa parte desconhecido, enfraquece os argumentos para tentar impedir outros países de terem armamento nuclear?
Penso que, para Israel, no que toca ao tema nuclear, é mais um tema de pressão política de que de escudo defensivo. É sempre mais fácil para Israel: ‘Relaxa e toma calma que eu tenho armamento nuclear, e não tenho nenhum problema em usá-lo’. Afinal, estaríamos a falar de guerra nuclear no Médio Oriente, ou seja, de uma guerra mundial. Para Israel é uma forma de pressão, não para realmente usá-lo um dia. 

Regressando ao temos dos kidon, quem são estes agentes? Que tipo de formação têm, que tipo de perfil?
Os membros de Kidon pertencem a uma unidade ultrassecreta da Mossad chamada Metsada, a unidade de operações especiais, dentro disso é que existe a Kidon, que significa ‘baioneta’. A Kidon tem muito poucos membros, fala-se em duas equipas de cinco membros, nada mais, todos peritos militares. Porque quando a Kidon vai realizar operações tem-se apoiado noutras unidades de Mossad, para comunicações, para seguir alvos ou ter casas francas a partir de onde dar os golpes.

Muitas equipas participam numa operação, a Kidon é a última, é a que chega para liquidar-te, ou para sequestrar-te, como foi o caso de Vanunu. Aí, [Cheryl] “Cindi” Hanin era membro da Kidon, pela qual Vanunu se apaixona, e que o engana de forma a que vá para Itália. Sequestram-no, metem-no num contentor, num barco, e levam -no para Israel. 

É engraçado como a sedução é um tema presente na espionagem, que se exigam capacidades tão pouco ortodoxas aos kidon. 

Sempre foi algo utilizado na espionagem, é aquilo a que chamam uma ‘armadilha de mel’. Recordo-te uma senhora, lindíssima, chamada Mata Hari, que se dedicava a ter relações com oficiais do exército francês para lhe sacar informações e passá-las. E na II Mundial também há o caso famoso do salão Kitty, um bordel de superluxo no Terceiro Reich, onde iam diplomatas, e todos os quartos das prostitutas tinham microfones, que gravavam e sacavam informação. Esse tipo de espias sedutoras sempre se usou nos serviços secretos. Num capítulo do meu livro também conto a história do ‘príncipe vermelho’, Ali Hassan Salameh, e de como uma agente do kidon o seduziu, consegue que baixe a guarda, depois de ser sua companheira durante uns dois anos, de maneira a que o matassem numa rua de Beirute. 

E é incrível que uma unidade com apenas dez membros, como a Kidon, se tenha tornado tão temida, causando tanto medo por todo o planeta. 
Creio que não é apenas a Kidon. Esses dez membros são duas equipas muito bem preparadas, são como os SEALS, sempre prontos para uma operação, mas a questão é que contam com o apoio de toda a organização da Mossad. E a Mossad tem uma coisa que não têm os outros serviços de inteligência – melhor só os serviços secretos do Vaticano. É que muitos dos próprios membros da comunidade judia fora do país são utilizados como apoio.

Ou seja, és um judeu que vive em Lisboa, e eu, da embaixada, pergunto se nos podes emprestar a tua casa por uma noite, sem perguntas. E tu, sabendo que provavelmente é uma operação para o Governo israelita, dizes que sim. Como se deteta que esta casa se converteu durante uma noite numa casa segura da Mossad? É impossível. Eles contam com isso, têm muitos colaboradores que são judeus, mas também são britânicos, portugueses, espanhóis, e usam isso para se infiltrar com muita facilidade. 

Outra fonte de contactos muito interessante, que menciona no seu livro, é a ligação entre o submundo do crime, do tráfico de armas ou droga, que de alguma maneira se torna em informador ou colaborador da Mossad. Quão profunda é esta ligação?
É muito profunda, claro. Mas não é só Israel, até em Portugal. Pergunta ao chefes do serviços secretos portugueses quanta gente do submundo do crime têm como informadores. Provavelmente é uma longa lista. Os serviços secretos operam nos esgotos das sociedades democráticas, não atuam à superfície, onde nos movemos na sociedade normal, de plena democracia.

Eles movem-se num submundo, entre as águas residuais, porque manejam informação para lutar contra o crime organizado, contra o tráfico de armas e drogas, contra o tráfico de pessoas. E esse tipo de combates duríssimos só se podem levar a cabo nos esgotos do poder. Por isso não é só uma coisa de Israel, é uma coisa de todos os países. Pergunte aos serviços secretos de Portugal.

Se me respondessem, teria muito gosto em perguntar.
Claro, não respondem nunca. Olha, um alto oficial da Mossad, grande amigo meu, que já está reformado, sempre me disse que, realmente, só os erros dos serviços secretos saem nas manchetes imprensa. Nos meios de comunicação só saem divagações, ‘certamente terá sido uma metralhadora que reconheceu o rosto de alguém’ [risos]. Isso são devaneios.

Na imprensa só temos isso, e casos como o de Lillehammer, com o coitado do Ahmed Bouchikhi [um empregado de mesa marroquino, que foi abatido a tiro pela Mossad na Suécia, ao ser confundido com Ali Hassan Salameh]. Ou quando tentaram matar o líder político do Hamas [Khaled Mashal], mandaram uma equipa kidon à Jordânia e tentaram inoculá-lo com um spray de veneno no ouvido, mas não meteram veneno suficiente.

Outro ponto que me intrigou no livro foi a menção às fortíssimas relações entre Israel e a África do Sul do tempo do Apartheid. 
Tiveram muito boas relações, muito estreitas – hoje, depois do Apartheid, não tanto. Inclusivamente, os sul-africanos conseguiram arranjar uma grande quantidade de material nuclear e tecnologia a Israel, que os sul-africanos já estavam a desenvolver o seu armamento nuclear. A tecnologia nuclear de Israel era francesa e sul-africana. 

No seu livro, menciona de fugida um episódio, são só umas linhas, sobre como agentes de Mossad na África do Sul participavam nas operações contra o Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla inglesa), o partido de Nelson Mandela. Menciona que militantes da ANC que são abandonados amarrados na selva, e alguns até são comidos pelas feras. 

Isso foi uma operação de colaboração, porque os israelitas tinham uma embaixada de Israel em Joanesburgo tinha uma grande quantidade de informação sobre os líderes da ala militar do Congresso Nacional Africano. E facilitaram muitas informações às secretas sul-africanas para lutarem contra eles. Por isso te digo que quando chega Mandela, com as criações de novos serviços secretos na época democrática, naturalmente as relações não eram assim tão boas com a Mossad. Creio que agora melhoraram, porque Israel fez assessoria na África do Sul em relação com o tema do tráfico de droga da África central até à África do Sul, que se tornou um ponto de saída de droga para a Europa, vêm grandes quantidades de lá.

Achei interessante essa relação com a África do Sul do tempo do Apartheid porque, quando se fala com um palestiniano, ou com alguém pró-Palestina, uma acusação recorrente é que o Estado de Israel funciona como uma forma de Apartheid.

O que pensa do assunto?
Bem, neste momento a Faixa de Gaza é o lugar do mundo com maior densidade populacional, mais que qualquer cidade japonesa ou chinesa. Que Israel proíba o acesso a qualquer desenvolvimento económico na Faixa de Gaza certamente é um Apartheid o que está a fazer. É um problema grande que tem Israel, e que como não o resolve vai seguir gerando conflitos com Israel no futuro.

Pense que as crianças palestinianas continuam a viver na mesma merda, onde veem que a única possibilidade de trabalho é que Israel abra os limites de segurança para que possam ir trabalhar, ou estudar, ou ao hospital. Enquanto isso continue, continua a gerar ódio entre a população jovem palestina, e isso não se vai resolver até que haja um acordo de paz estável, com um acordo económico sério.

Senão, a Faixa de Gaza vai continuar a ser um depósito de dinamite, que a qualquer momento explode, de forma cíclica. Qualquer dia acordamos e temos nas capas dos jornais que Israel ocupou de novo a Faixa de Gaza, com civis mortos. Porque estas operações de represálias não geram mortos no exército israelita, mas sim entre civis palestinianos. E assim o Médio Oriente continua instável, o que também é um problema para Israel, enquanto Israel não o perceber. 

No seu livro, boa parte das operações que descreve são para assassinar dirigentes do Hamas. E não conseguia deixar de pensar que sabemos que o Hamas, no seu começo, foi criado e financiado por Israel, para contrapor à Fatah de Yasser Arafat, por própria admissão de dirigentes israelitas. 
Bem, o Hamas não é uma criação de Israel, mas sim, no seu começo recebeu muito apoio financeiro israelita. E sim, pretendia dividir o apoio à Fatah, à Frente Popular para a Libertação da Palestina e à Frente Democrática para a Libertação da Palestina, que estavam a favor do terrorismo contra Israel. Então Israel, através dos serviços secretos começou a financiar um grupo que viria a ser o Hamas.

É como digo sempre, se brincas com uma granada, e começas a fazer malabarismo, tem cuidado que pode explodir. E foi o que se passou a Israel, a sua invenção explodiu-lhe na cara. A maior parte das campanhas de atentados em solo israelita, em cafés, restaurantes, discotecas, foram provocados pelo Hamas. Não foi sequer pela Frente Popular pela Libertação da Palestina, pela Fatah muito menos.

Voltando ao início do seu livro, notei que havia um vazio entre o surgimento da kidon, com as operações para capturar a Adolf Eichmann [um arquiteto dos campos de concentração nazis, capturado por Israel na Argentina, em 1962] e as operações de vingança contra o Setembro Negro [responsável pelo massacre nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972]. Mas houve a Guerra dos Seis dias pelo meio, em 1967. O que é que os kidon andavam a fazer neste período?
Um dia perguntei ao meu amigo da Mossad: ‘Porque é que, com o sucesso que teve a operação contra Eichmann, ou a liquidação de Herberts Cukurs [um colaborador lituano das SS, conhecido como o ‘carniceiro de Riga’] no Uruguai, porque não continuaram a matar nazis?’. Porque não era assim tão complicado localizá-los, e havia muitos, no Chile, no Brasil. E ele disse-me: ‘Eric, estamos a falar já dos anos 70. Pensa que em 1967 Israel é atacado por três países vizinhos. Em 1973, outra guerra, a guerra do Yom Kippur. Começam os atentados terroristas contra interesses israelitas. Demo-nos conta que éramos um país muito jovem com novos inimigos’. Não havia capacidade operativa para pensar no que fizeram os alemães.

Mas é isso que me questiono, se a Kidon não foi ativa contra os países árabes, contra movimentos panarabistas, se nunca houve uma tentativa de assassinato do [Presidente [Gamal Abdel] Nasser, por exemplo, como ferramenta de guerra? 
Israel recebeu muitíssima pressão para não matar Nasser, principalmente dos ingleses e dos franceses. Porque tinham pânico que Nasser levasse a cabo a nacionalização do Canal do Suez, ou de destabilizar esta região crucial. Daí a famosa Guerra de Atrito, quando Israel participa com franceses e britânicos na ocupação do canal. E os britânicos, em particular, enfrentavam uma enorme greve de mineiros, e uma das épocas mais duras da guerra na Irlanda do Norte, não tinham mãos a medir, nem os franceses.

E pense que, em 1972, quando matam 11 atletas israelitas em Munique, é uma desonra para Israel. Por isso Golda Meir – não é David Ben Gurion, é Golda Meir – decide que há que criar uma unidade estável, uma unidade que possa ligar-se e desligar-se, para abater objetivos, a que chamaram Kidon. Para matar todos os responsáveis – uns 24 – do assassinato dos atletas israelitas.

Demoraram doze ou treze anos a matá-los a todos, porque era a vingança de Israel, e a Kidon estava mais preocupada com isso. Por isso esse amigo da Mossad me dizia: ‘Éramos muito pequenos. A Mossad era um serviço de inteligência muito pequeno, não somos a CIA, com orçamentos exorbitantes, com milhares e milhares de agentes de campo’. 

Uma última coisa que lhe queria perguntar, o que pensa da eficácia desta política de assassinatos coletivos, que deixa Israel completamente fora de toda a lei internacional?
Sou muito favorável a essa política. Está muito bem que as nossas famílias, a tua e a minha, falem de democracia, da necessidade de recursos democráticos que funcionam. Mas que dúvidas há que os serviços de inteligência existem para proteger as nossas famílias? Em nenhum momento haverá uma crítica se souberes que um terrorista pôs uma bomba num centro comercial de Lisboa.

Pensa, nesse caso, recorres à Constituição portuguesa? Lutar contra o terrorismo só se pode fazer saltando às normas constitucionais, somente, porque combatemos contra gente com o mesmo passaporte. Imagino que gostasse de ouvir que os serviços secretos têm de ser democráticos, que têm de ter ordem de um juiz para por uma escuta num telefone.

A mim, como cidadão de um Estado democrático, não me importo nada que me escutem o telefone, nada, não vão ouvir nada criminoso. Em árabe dizem algo como: ‘Prefiro as lágrimas da mãe do meu inimigo que as lágrimas da minha mãe’.

Mais do que por questões éticas, da facilidade de umas secretas assim cometerem abusos, perguntava-lhe quanto à eficácia dos assassinatos seletivos, como ferramenta para destruir uma organização. Vemos no México, por exemplo, que a política de capturar os chefes de cartéis só serviu para os deixar mais ramificados, mais perigosos. 

Em Israel funcionou com o Hamas. Há quanto tempo é que não lemos nos jornais sobre um ataque suicida do Hamas sobre civis israelitas? Há muito tempo. Porque o Hamas finalmente negociou, teve de negociar, moderar um pouco mais a sua orientação contra Israel. Conto no livro, um dos líderes militares de Hamas, defensor da política mais dura, fez uma entrevista à BBC, os israelitas estavam a ver enquanto era entrevista, à espera que terminasse a entrevista, e quando acabou mataram-no. Com Israel funcionou essa política, que não sei se é.