Baudelaire. 200 anos depois, só o diabo em pessoa poderá salvar a literatura

Baudelaire. 200 anos depois, só o diabo em pessoa poderá salvar a literatura


Dois séculos depois do nascimento de Baudelaire, estamos mais fartos do que nunca da empertigada moral a que a literatura tresanda. Estamos infectados de uma benevolência doentia, aquela que todos prescrevem e ninguém toma. Todos são heroicos, exemplares, mas como Jorge de Sena vincou há algumas décadas, há muito que já vai sendo o tempo…


Em “Perda da auréola”, um dos pequenos poemas em prosa do livro incompleto de Charles Baudelaire “O Spleen de Paris”, não há só um gesto de abdicação por parte do poeta, esse arrastar para a lama do seu prestígio, mas um horror a essa impudicícia de quem vive convencido da superioridade dos seus juízos, e o personagem que abdica dessa postura pretensiosa que, hoje, qualquer palerma exibe, deixa bem claro isto: “a dignidade aborrece-me”.

Não basta sermos dilacerados pela cadeia de desastres engatilhados que definem este nosso tempo sem contornos e, por isso, sem saída, ainda temos de aturar a patética relação de indivíduos, particularmente no campo cultural, que se arrolam como testemunhas da acusação, e mexem com um estranho ar de indiferença e uma longa colher de pau a sopa desse abismo a que pretendem dar os seus nomes, em honra aos seus infinitos poderes de percepção.

Descrito como um selvagem que desceu às cidades para sorver o fermento do rancor que aí se acumula, com os rompantes bruscos que introduziu no seu lirismo, Baudelaire cultivou na sua sintaxe escrupulosamente clássica, particularmente na forma, no alexandrino e na arquitectura estrófica, um efeito constante de sobressalto, questionando do ponto de vista moral a forma artística, trocando o belo pelo feio, assim dessacralizando a poesia, “perturbando-lhe o sonho de perfeição” (Alfonso Berardinelli). Walter Benjamin vinca que “Baudelaire insere a experiência do choque no âmago do seu trabalho artístico”, e que esses golpes subterrâneos que lhe abalam o verso sintetizam a experiência do contacto com as massas da grande cidade, da própria agitação das ruas com tudo o que estas têm de repugnante e fantasioso no cruzamento das suas inumeráveis relações. Diz-nos que os golpes que desfere destinam-se a abrir-lhe caminho entre a multidão. Numa poesia que inveja a prosa, e até o ímpeto do artigo jornalístico, do ensaio breve, buliçoso, Baudelaire irá levar o verso ao limite, impor nele a mistura e dissonância de tons, fazê-lo chegar àquele ponto de saturação em que ameaça descoser-se num efeito de pura energia intelectual. Esse estilo mais informe, persegue-o num anseio de capturar a própria sensação do tempo, ambicionando uma prosa que se adapte “aos movimentos líricos da alma, às ondulações do sonho, aos sobressaltos da consciência”.

Benjamin adianta que na sua obra “a percepção do tempo aguça-se de forma sobrenatural; cada segundo encontra a consciência própria para amortecer o seu choque”. Ele questionará de forma decisiva o próprio lugar do poeta, que na relação com o seu tempo abre margem a um conflito de tal ordem que o encaminha para as zonas temíveis do inconsciente, dando conta do seu mal-estar, e isto numa atitude inconformista que faz dele o pai de uma nova raça de poetas, “ébrios do seu sangue”, cultivando uma intuição ardente, impondo nos versos ou na prosa verdades áridas e amargas, prolongados ecos que, em vez de seduzir o leitor, procuram penetrar mais fundo, alterar e até subverter as suas expectativas em relação à arte.

Ao inaugurar a modernidade literária, o que Baudelaire fez foi apontar o caminho. Muitos o ouviram e, ainda que receosamente a princípio, aos poucos, uma espécie de motim tomou conta da embarcação: puxaram fogo às velas, impedindo que a literatura pudesse regressar a algum porto seguro, e fazendo dela um “barco de humor vagabundo”, extraindo um riso em vez de um rumo aos ventos e aos acidentes da época. Começava a levantar-se, como um rumor de crescente ferocidade, uma espécie de revolta servida por meio de prodigiosas blasfémias nas páginas onde se afinavam os estilos mais audaciosos; algo que até ali apenas se ouvira murmurado entredentes, ou que caíra do hálito desses seres rechaçados pela moral, dos seres mais degradados, acossados ainda deste lado por toda a leva de demónios dos círculos inferiores, seres viciosos, danados, essas “existências desregradas que se alojam nos subterrâneos das grandes cidades”, providenciando aquele espectáculo da vida mundana ao qual Baudelaire quis extrair algo de heroico.

A este título, uma das mais ilustrativas elaborações sobre a revolta que o autor das Fleurs du Mal instigou pode colher-se numa entrada do diário de Cesare Pavese (6 de dezembro de 1935), em que este conclui pela citação de uns versos do seu precursor: “Blasfemar, para aqueles tipos à antiga que não estão perfeitamente convencidos de que Deus não existe, mas que embora se estejam nas tintas para Deus, o sentem de vez em quando entre a carne e a pele, é uma bela actividade. Vem um acesso de asma, e o homem começa a blasfemar, com raiva e tenacidade: com a intenção bem nítida de ofender esse Deus eventual. Pensa que, afinal de contas, se ele existe, cada blasfémia é uma martelada nos pregos da Cruz e um desgosto infligido a Deus. Depois, Deus vingar-se-á – é o seu sistema –, fará o diabo a quatro, enviará mais desgraças, mandar-nos-á para o Inferno, mas, mesmo que ponha o mundo de pernas para o ar, ninguém o libertará do desgosto experimentado, da martelada sofrida. Ninguém! É uma bela consolação. E, é claro, isto revela que Deus não previu tudo. Vejam: é o patrão absoluto, o tirano, o tudo; o homem é uma merda, um nada e, no entanto, tem esta possibilidade de o irritar e aborrecer e de lhe estragar um instante da beata existência. É, na verdade, ‘o melhor testemunho/ que podemos dar da nossa dignidade’.”

A partir de uma certa altura, a literatura ficou sem saída, e os melhores dos que insistiram nesse esforço de juntar as ruínas de um mundo desfeito para de novo o tornar uno, conseguiram-no precisamente através de um horror à literatura. O que Baudelaire fez, segundo Rilke, foi “dar fé da beleza nova, peregrina,/ e, embora celebrando a própria má sina,/ purificou, infinitas, as ruínas”. 

Benjamin destaca uma passagem de “O Dezoito do Brumário”, de Marx, dizendo que ninguém terá sabido aproveitar-se melhor das seguintes linhas do que Baudelaire: “Quando os puritanos se queixaram no Concílio de Constança da vida depravada dos Papas…, o cardeal Pierre d’Ailly gritou-lhes: ‘Só o diabo em pessoa poderá salvar a Igreja católica, e vós exigis anjos!’”. Se a própria perda da auréola faz parte da iconografia cristã, Baudelaire foi o poeta que entendeu que o cansaço da sua alma só poderia ser ultrapassado por meio de uma veemente declaração de guerra. Numa carta à mãe, a 23 de dezembro de 1865, diz-lhe: “Se algum dia recuperar o vigor e a energia que possuí algumas vezes, darei largas à minha cólera escrevendo livros que vão horrorizar toda a gente. Quero pôr contra mim toda a raça humana. Seria para mim uma volúpia que me compensaria de tudo o resto.”

Benjamin fala numa metafísica do provocador, e explica como, neste poeta, “quase sempre a afirmação da devoção se faz ouvir como um grito de combate. Não quer que lhe tirem o seu Satanás. Este é o verdadeiro móbil no conflito que Baudelaire teve de travar com a sua descrença. Não se trata aí de sacramentos e de orações; trata-se do direito luciferino a ofender aquele Satanás que nos domina.”

Assim, a obra deste poeta é o prenúncio de um novo e talvez derradeiro capítulo, em que a literatura se permite pôr tudo em causa, abrir uma série de frentes nessa campanha para impor uma sumptuosa imoralidade, uma verdadeira agressão ao gosto. E isto, como nos diz o crítico italiano Alfonso Berardinelli, ele fá-lo elegendo como inimigo a burguesia, “classe social que encarna na forma mais clássica o culto do Útil e do Progresso, cuja sottise [tolice] (esta é a primeira palavra do primeiro verso das Fleurs du mal), parecerá a Baudelaire, assim como ao seu contemporâneo Flaubert, a muralha insuperável do espírito dos tempos”.

“Contra a moral, a estética, a política e a religião dessa classe, Baudelaire irá empenhar-se numa luta desesperada de provocação e autodefesa, forçado a inventar para si um mundo cultural o mais escandalosamente distante daquele inventado e encarnado pela burguesia em expansão da sua época”, acrescenta o crítico.

A receita nunca foi simples, mas o poeta começou por afrontar a superficialidade do juízo que era traficado como um perfume barato e muito em voga entre versejadores, desligando-se do simbolismo para afinar uma razão alegórica. Nessa subversão estética, em que uma série de intuições críticas são cosidas na bainha dos versos, há um turbilhão sensual e sensacional de imagens que afectam a inteligência, reorganizam a própria memória e, assim, corroem aos poucos a percepção da realidade, deslocando-a. Fere, deste modo, a sensibilidade e torna-a vulnerável a uma nova cadeia de impurezas, permitindo descobertas que irão comprometer essa ordem humana extática, que depende de certos rigores e convenções. Leiam-se alguns versos do poema “Hino à Beleza”: “Teu olhar, ó Beleza, infernal e divino/ destila juntamente as delícias e o crime (…) Semeias ao acaso alegria e desastres (…) das jóias que possuis o Horror é das mais belas;/ e até o Assassínio, um teu caro berloque,/ dança de puro amor no teu ventre de fera.// Em torno de ti voa a borboleta ousada;/ arde, crepita, grita: abençoada chama!/ O amado convulso abraçado à amada/ é como um moribundo o caixão afagando.// Que venhas do inferno ou do céu, que me importa,/ Beleza, monstro enorme, aterrador, ingénuo,/ se ao ver o teu sorriso é ele que me abre a porta/ de um Infinito que amo e que nem me conhece?”

E se, dois séculos depois do seu nascimento, estamos a discutir ainda a enorme influência deste poeta não é apenas por As Flores do Mal ter sido a última obra lírica que teve repercussão europeia, como indica Benjamin. Se Erich Auerbach vinca que se encontram vestígios de Baudelaire em Gide, Proust, Joyce e Thomas Mann, assim como em Rimbaud, Mallarmé, Rilke e Eliot, adiantando que o estilo baudelairiano está mais vivo do que nunca, um dos aspectos decisivos desta obra é a forma como o real é reelaborado por aquele efeito de choque e, assim, levado a uma crise de nervos. “O grande arsenal baudelariano enriquece-se de neuroses, ódios e remorsos, de horrores e fantasmas, de possuídos e obsessivos”, nota o crítico literário Giovanni Macchia, referindo como isto apura um gosto mais amargo do nada e um sentimento do tempo como asfixia.

Já Berardinelli sublinha que o realismo neste poeta não se dá sem deformação, paroxismo, parcialidade, obliquidade. E, deste modo, essa persistente ingenuidade que não é capaz de levantar a pele ilusória do real, percebendo como este é o efeito de uma ficção ritmada por imensos cotovelos, será humilhada, até que não restem grandes dúvidas de que a realidade permanece em ferida, incompleta, um domínio sujeito a constantes disputas. Sentindo a respiração das suas alegorias infernais e grotescas, é como se a realidade tremesse sujeita ao hálito deste poeta tenebroso. As portas da percepção começam assim a abanar e a ceder a golpes de maldições. “Tanto na prosa como no verso”, defende o escritor espanhol Francisco Umbral, “Baudelaire é o relâmpago, a iluminação mais do que a divagação”.

E a biografia neste caso importa, desde logo para se compreender o ânimo desesperado de uma figura que acabou por se sentir aliviada ao perder a auréola enquanto saltitava na lama. Charles-Pierre Baudelaire nasceu em Paris, a 9 de abril de 1821. O pai tinha 62 anos, e estivera viúvo por um largo período, acabando por se casar uma segunda vez com uma mulher bem mais jovem, Caroline Archimbaut Dufays, que tinha 28 anos quando o poeta nasceu. Com seis anos, Charles perdeu o pai, Joseph-François Baudelaire, que lhe deixa uma herança significativa depois de uma vida abnegada, tendo sido padre, preceptor e funcionário do senado. Não levou muito tempo para que Caroline se casasse com um militar de carreira, Jacques Aupick. Inicialmente, Charles ainda procura agradar a este capitão de infantaria, cavaleiro de Saint-Louis e oficial da Legião de Honra, mas sentindo-se rechaçado, acabará por ser numa aversão odiosa a tudo o que o padrasto representa que Baudelaire irá rasgar o seu aviltante trajecto pessoal e literário. Aupick virá a ser transferido para Lion após se tornar chefe de Estado Maior. Promovido a general, em 1848, é colocado como ministro plenipotenciário da República Francesa em Constantinopla. A carreira diplomática leva-o ainda a dirigir a embaixada em Madrid, abrindo caminho à sua chegada ao senado em 1853. A sua morte, quatro anos depois, ocorre no ano crucial da publicação das Fleurs du mal. Após a publicação, Baudelaire vê-se alvo de um processo, sendo condenado a pagar uma multa e obrigado ainda a excluir seis poemas do livro considerados imorais. O mesmo magistrado tinha, meses antes, dirigido a acusação pública contra Flaubert, pela publicação de Madame Bovary.

No início da década anterior, após ter tomado posse da herança paterna, Baudelaire viria a instalar-se num apartamento na Île de Saint-Louis, onde viveu por dois anos, tendo nesse período começado a frequentar os ambientes artísticos e literários, conhecendo Nerval, Gautier, Sainte-Beauve e Victor Hugo. Em 1842, conhece a mulata Jeanne Duval, por quem se apaixona perdidamente e que irá sustentar. Ao longo dos 15 anos seguintes, não se libertará dela, ainda que a relação seja sempre bastante conflituosa. Dois anos depois, a mãe de Baudelaire pede ao tribunal que lhe nomeie um tutor patrimonial para o impedir de dissipar o que ainda lhe restava da herança, sendo que nesses poucos anos ele havia já dilapidado metade do que recebera. A função foi confiada ao notário Narcisse-Desiré Ancelle, com quem o poeta passará o resto dos seus dias envolvido em constantes disputas. É por essa altura que começa a escrever os primeiros poemas que só serão publicados muitos anos mais tarde, sendo como crítico de arte que o seu génio primeiro irá revelar-se.

A reaproximação entre mãe e filho só se dará depois da morte de Aupick, numa altura em que Baudelaire, tendo contraído uma infinidade de dívidas, se via forçado a mudar-se de endereço inúmeras vezes para fugir aos credores, e acabaria por ser Caroline a socorrê-lo nos momentos mais desesperados. Foi ela quem, no verão de 1866, conseguiu trazê-lo da Bélgica, pagando para que ele fosse transportado de comboio de regresso a Paris, depois de Baudelaire ter sofrido um ataque hemiplégico que o deixou paralisado, tendo acabado por morrer, internado numa clínica, cerca de um ano depois, em agosto de 1867, sem ter recuperado a fala.

Francisco Umbral lembra-o nos seus últimos e infelizes anos, “mais vinheta de Paris do que poeta da Academia (…) com as unhas quebradas de quem vai morrer, com a gravata desfeita e em viagem pela Bélgica, que detesta, para dar umas conferências a que ninguém vai assistir e nas quais nem ele próprio acredita.
A sífilis devora-o. (…) É um espectro negro, com qualquer coisa de ‘padre encornado’, como disse um crítico, que se apaixona pela mulher solitária que se cruza com ele em ‘passo de estátua’. Por aí se fica o seu livro censurado, manchado pelos críticos e pelos juízes, mutilado e imortal, como um punhado de folhas que o Outono reuniu no Luxemburgo. Hoje, esse livro estuda-se em todas as escolas de França e em todas as universidades do mundo.”

A segunda edição das Fleurs du mal havia aparecido em 1861, contando com 35 novos poemas, quase todos publicados anteriormente em revistas. Em vida do poeta, não só o livro não lhe trouxe grande sucesso como foi motivo de constantes disputas editoriais, sendo evidente a forma como Baudelaire sofreu na pele os efeitos da “pauperização de toda a grandeza e dessa radical destruição do heroísmo” (Heinrich Heine) devidas à imposição pela burguesia do espírito mercantilista a todas as esferas da vida. Nessa sociedade que, hoje, se tornou uma espécie de “fantasia ditatorial”, estreitando todas as possibilidades e conformando a vida do espírito ao regime das trocas e do dinheiro, a maior parte daqueles que se apresentam como escritores, como nota Silvina Rodrigues Lopes, surgem agora perfeitamente conformados com as condições institucionais dominantes e o mercado, “o que significa que não produzem senão simples objectos de consumo, ao nível de qualquer outro artigo de supermercado”.

Ora, a moral baudelariana, sendo negativa e individualista, como vinca Berardinelli, serviu ao poeta para se proteger da moral burguesa, e se artisticamente ele inscreveu o seu nome de forma indelével no terreno da arte, por mais riqueza que tenha retirado da penúria, o certo é que morreu como um cão atirado à fossa. Ainda assim, o conflito na relação entre moral e estética que ele lançou persiste, e a sua genial provocação continua a lançar “uma luz sarcástica sobre a obtusidade moral que não sabe distinguir o que é belo e o que é feio”. Na sua metafísica da provocação, este poeta vê ainda o desafio por si lançado manter-se pregnante e actual, denunciando todos esses promotores de jogos florais, esses bonançosos praticantes de uma arte estéril, incapazes de assumir a poesia na única condição que lhe resta, que é como fala da insubmissão a esta ordem que triunfou em toda a linha, de tal modo que o poeta se apresenta em público como mais uma figura da ordinarice cultural reinante, sem nada de urgente a dizer, contente por ser chamado a participar, e cultivando uma forma pindérica do antigo prestígio e ansiando por uma visibilidade que apenas o apaga ainda mais, expondo-o no seu desespero.

Baudelaire fez-nos ver que o mau poeta é esse que se assusta diante da sua própria ousadia, e recua, incapaz de ir até ao fim, de explorar até ao limite as sugestões que um qualquer acaso que se intromete no seu trabalho lhe faz, convidando-o a buscar no inesperado, a sondar os aspectos terríficos que lhe devolvem o seu reflexo, desfeito e remontado. Qualquer poema digno desse nome, diz-nos Jorge de Sena, é uma actividade revolucionária, criadora e potenciadora de linguagem capaz de afrontar e contrapor toda a banalidade vigente, mental, sentimental e socialmente vividas.

Auerbach conclui um ensaio sobre As Flores do Mal com uma avaliação paradoxalmente positiva das reacções negativas a esta obra, notando que, mais do que os seus admiradores extasiados, esses que estão sempre dispostos a desfazerem-se em hossanas perante qualquer obra contemporânea que obedeça aos códigos em vigor, foi junto daqueles que revelaram a sua incomodidade que as profecias desgraçadas de Baudelaire mais agudamente colheram o seu efeito de choque. Este ensaísta diz-nos que o mais importante não é fazer o elogio das conquistas literárias de Baudelaire, mas sim ressaltar “o que há de terrível nas Fleurs du mal, que têm por tema principal o horrendo, o mais amargo desespero e as vãs e absurdas tentativas de entorpecimento e evasão”. E prossegue: “Por isso é necessário dizer aqui algumas palavras em defesa de certos críticos que rechaçaram energicamente o livro. Entre estes, há alguns – mas não todos – que compreenderam o espírito da obra muito melhor do que muitos admiradores contemporâneos e futuros: uma obra que, de facto, tem por tema o horror é mais compreendida por aqueles que, apesar dos seus ataques, sentem o horror penetrar-lhes nos ossos do que por outros que só sabem prorromper em expressões entusiásticas sobre o resultado artístico da obra. Quem é possuído pelo horror não fala do frisson nouveau, não grita ‘bravo’ nem se regozija com a originalidade do poeta. (…) A desenvoltura com que a maior parte dos críticos posteriores avaliam o livro unicamente do ponto de vista estético, rejeitando e desprezando a priori qualquer outra consideração, não nos parece adequada ao argumento”.

“O que é inebriante no mau gosto é o prazer aristocrático de desagradar”, defendeu Baudelaire, traçando assim uma fronteira clara face a essa “vulgata pós-modernista do horror ao vazio” que faz dos artistas hoje uma trupe onde a efusividade e prolixidade das suas produções está numa relação de inversa proporcionalidade com o grau de provocação e desacato que estas introduzem. Resumindo-se as principais lutas da classe artística e cultural à busca de apoios institucionais para continuarem a produzir seja o que for, oferecendo sempre mais novidades, novas distracções às sensibilidades entaladas ou enlatadas que apenas se satisfazem com produtos fáceis de digerir. Assim, mesmo quando ensaiam posturas de contestação ou de desdém, fazem-no segundo a conveniência da moral burguesa, de tal modo que, por mais que nelas se busque um fundo capaz de nos horrorizar, apenas nos conduzem ao “enjoo da própria complacência”.