Quando uma certa paixão frenética pela arte se combina com um desejo imoderado de reparar injustiças históricas cai-se, amiúde, no erro de garantir que ficamos presos num eco, numa eterna repetição do passado. Nasce, assim, uma forma de admiração em que o objecto artístico desaparece debaixo de uma sombra que já estava recortada antes de ele ser colocado no caminho da luz que o torna visível. Se “só muito recentemente as mulheres, no caso as mulheres artistas portuguesas, passaram de objectos a sujeitos, de musas a criadoras”, talvez a melhor estratégia para “reparar esse facto histórico” não deva ser uma mera inversão nos termos, e uma determinando que, de ora em diante, as artistas mulheres se transformem em meros sujeitos dessa constrição, desta nova determinação social e histórica, que exprime uma situação extra-estética não superável esteticamente.
Na mostra a partir de hoje patente no Museu Gulbenkian, há uma diferença crucial entre intenções e resultados. Tendo partido de uma iniciativa política, um repto lançado pela ministra da Cultura, Graça Fonseca, a curadora Helena Freitas foi desafiada a delinear uma exposição que, no âmbito da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, concretizasse uma das suas bandeiras, que passa pelo combate às desigualdades de género e pela valorização da mulher artista. Inicialmente, a mostra “Tudo o que eu quero – Artistas portuguesas de 1900 a 2020”, deveria ter sido inaugurada a 23 de fevereiro no Palácio das Belas Artes de Bruxelas (Bozar), seguindo depois para a cidade francesa de Tours, sendo exposta no Centro de Criação Cultural Olivier Debré, no âmbito da Temporada Cruzada Portugal-França. A mostra só chegaria, assim, a Portugal em 2023, mas os planos foram alterados depois de um incêndio numa das alas do Palácio de Bruxelas ter consumido várias das salas onde seriam mostradas as obras das 40 artistas portuguesas seleccionadas por Helena Freitas, que chamou Bruno Marchand para dividir com ela a responsabilidade na assinatura deste projecto expositivo.
Logo no momento da idealização da mostra houve um apelo para os típicos “protocolos da credulidade instaurados como regra nos modos de difusão e recepção da arte contemporânea” (António Guerreiro), tendo Graça Fonseca formulado o desejo de aumentar a visibilidade das mulheres no sector cultural e criativo, de modo a que se possa “sair dos papéis rígidos e confinados do género e caminhar para uma sociedade mais justa para todas e para todos”. Assim, ainda que a dupla de curadores tenha procurado “minimizar o carácter meramente identitário, ideológico e ilustrativo” de uma exposição em que são apresentadas quase 200 obras de 40 artistas mulheres portuguesas, não se furtam a reconhecer que o âmbito desta mostra passa por “inverter, contrariar ou reequilibrar o histórico apagamento a que as artistas mulheres e as suas produções estiveram desde sempre sujeitas”. Não só isso, no texto que abre o catálogo da exposição, os curadores vincam “que o conjunto de obras aqui reunido constitui um documento em si mesmo da luta das suas autoras pelo pleno direito à sua voz”.
“Só quero uma coisa: espaço, e nada mais”, escreveu Lou-Andreas Salomé, figura que soube impor a sua indómita visão nos romances e poemas que escreveu, sem ficar refém das paixões que despertou em colossos como Nietzsche ou Rilke, e que se furtou à pose um tanto estéril da musa, e que aqui aparece como figura tutelar na “reimaginação do lugar das mulheres no espaço social, intelectual, sexual e amoroso dos últimos séculos. Mas se há uma tensão que se desenha de forma irresolúvel nesta mostra é precisamente a questão do espaço, e são as limitações deste que, no balanço de uma proposta tão ambiciosa, tornam especialmente salientes os aspectos mais perniciosos do regime de exposição museológica. A exposição transforma-se, assim, numa exposição da exposição, em que o programa que lhe subjaz e que prescreve fins determinados às cerca de 200 obras reunidas cria um terreno minado, com peças de artistas de referência e outras menos conhecidas, nomes como Aurélia de Sousa, Maria Helena Vieira da Silva, Lourdes Castro, Paula Rego, Helena Almeida, Fernanda Fragateiro e Grada Kilomba, entre muitas outras, a serem feitas reféns de uma promessa de reparação da ausência da mulher enquanto artista na História da Arte, como se a arte abdicasse do seu cepticismo, até de uma distância e frieza que enfrenta a falsidade dos propósitos que animam esse público que acorre aos museus para satisfazer um desejo genérico de cultivar vagas sensações que o confirmem e às suas crenças no confronto com coisas artísticas.
A questão da identidade impõe-se como uma rima tonitruante que quase não deixa ouvir a silabação interior das obras, a tensão que, autonomamente, nos põe diante do esforço de quem escapa a todas as formações, se evade, busca uma individualização implacável. Essa que, noutras condições, permite ao artista exprimir a sua mensagem e a verdade não manipulada do seu conteúdo social. Mas aqui, se há um calafrio que toma conta do visitante esse prende-se com o confrontar-se com uma quantidade impressionante de obras que dão por si numa justaposição forçada no exíguo espaço das duas salas daquele museu, as quais não deixam de ser bastante vastas, mas não o suficiente para impedir a sensação de encafuamento, nem, por outro lado, essa condução que vai tematizando as relações entre elas, estando a mostra dividida em núcleos: Ponto de Partida; O Lugar da Artista; Feminino Plural; O Olhar; A Palavra; O Espaço da Escrita; Construção; Le Vivant; A Casa; O Político; Memórias Coletivas; Quotidiano Vernacular; Teatro do Corpo; e Ouve-me.
A luz é de tal modo forte que anula toda a parte de sombra, os vazios glaciais que estas obras geram à sua volta. Boa parte delas são avessas a esta salada, mas ali, despojadas da sua autonomia, vêem-se a participar num roteiro educativo, em que o que avulta é a prepotência curatorial, em mais outro desses empreendimentos que servem, antes de tudo, a glória de quem os concebe e encomenda. Assim, boa parte das obras expostas surgem-nos esmagadas, seja umas pelas outras, numa vizinhança claustrofóbica e até ruidosa, seja pelo próprio espaço, que, na sua limitação, produz uma espécie de Frankenstein… Como se sabe, nenhum universo durável foi criado pelos fragmentos de criação, e é a essa condição a que se vêem condenadas as peças expostas no que se torna um enunciado algo ingénuo, uma montra que assume o desejo de formular uma panorâmica, acabando, contudo, por forçar um convívio regimental, como se estas artistas, muitas delas com projecção internacional, voltassem à estaca zero, sendo perfiladas, obrigadas a prestar provas, tentando desenvencilhar-se umas das outras.
Há, deste modo, algo de processional nesta exposição que se abre cheia de promessa à contemplação extasiada dos visitantes, mas que defrauda a solidão do indivíduo abismado em si mesmo e que exprime a sua lucidez ao não acreditar na hipótese de um resgate comunicativo imediato. De resto, o que exprimem algumas destas artistas é a sua impotência diante da existência petrificada e lacerada deste mundo, e a sua denúncia indirecta a esta sociedade funciona precisamente pela universo que resiste como um segredo em face dessa “fantasia ditatorial” característica das promessas feitas em nome de uma função cívica atribuída à arte. Esta concepção participa, na verdade, na imposição de um espírito mercantil, de um valor de circulação, num efeito especulativo que acaba por estreitar todos os caminhos. Ora, o que estas obras precisam é de ser defendidas destes anseios, das boas intenções que mobilizam os “republicanos da arte”, com os seus sonhos baseados na optimismo da ideia de um progresso global e ilimitado do género humano.
Os curadores reconhecem que um exercício como aquele que propõem, no qual a questão identitária, bem como a limitação a relações entre artistas dentro de um território nacional tende a firmar um eixo que não é, em si mesmo, “matéria consensual entre as artistas representadas”. E para contornar este óbice, Helena Freitas e Bruno Marchand garantem que o roteiro foi escrito, “não através da imposição de uma narrativa extrínseca às peças que nela participam, mas antes na base da articulação cuidada e atenta das suas distintas naturezas artística, formal ou discursiva”. Há momentos em que, de facto, parecem ser as obras escolhidas “a comandar o fluxo da exposição”, como no diálogo ensaiado entre Aurélia de Sousa e Rosa Carvalho, artistas que em dois tempos históricos diferentes, aqui se complementam, com a primeira a afirmar “o seu protagonismo como modelo de si mesma e autora da sua imagem”, ao passo que a segunda “entra no jogo das referências subtraindo o modelo feminino à rigorosa citação de pinturas históricas, assim esvaziando a imagem voyeurista e perturbando o seu reconhecimento”, como assinalam os curadores. Mas este enfrentamento não é a regra, mas sim a excepção. E é justo reconhecer que seria muito difícil que uma exposição nestes moldes, com esta abrangência e ambição, pudesse ter resultado, ter escapado ao corpete dos constrangimentos impostos pela multiplicidade de abordagens, pela exiguidade do espaço e por uma condição expositiva comum, em que as peças, ainda que se contorçam, não vêem as suas convulsões alcançar uma nova expressão. E isto porque, no final de contas, estas ainda são boas intenções para o uso geral, em nome desse projecto de ligeira reforma ou redenção que permite garantir que tudo permanece na mesma, e que se mostra incapaz de salvar estas formas de se verem contaminadas por significados comuns. Como se sabe, aquilo que não é criado pelo próprio artista deve ser sentido como matéria morta e mortífera.
Se os curadores recusam acompanhar esta mostra de um qualquer manifesto, garantindo que esta não assume um carácter histórico, acabam por resvalar para uma longa lista de justificações, e não evitam o regime da reificação. Em vez de um protesto contra a mera existência, estas obras são loteadas, ficando submetidas a um programa que lhes é alheio, que converge para a debilidade estética desse culto inane da arte, do desejo de resgatar para um desentendimento geral, uma espécie de lote feminil em que, por mais fortes que sejam as propostas consideradas individualmente, não é superada a fórmula do pack promocional, da venda por atacado.