Na sequência do texto que aqui publiquei na semana passada, fizeram-me notar que, no seu mandato como Ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz promoveu reformas no Código de Processo Civil e no Código de Processo dos Tribunais Administrativos, que tiveram em vista, precisamente, reduzir os pretextos formalistas que impediam os tribunais de resolverem as questões de fundo mais rápida e eficazmente.
A crítica é certeira e importa reconhecê-la, uma vez que o meu texto, por demasiado vago, não se dirigiu, como devia ter feito, mais especificamente ao Código de Processo Penal.
Porém, tal crítica identificava implicitamente, também, que o problema, afinal, existia e era já preocupante.
Dois dias depois de publicado o meu texto, li, entretanto, um desenvolvido artigo em coautoria do Conselheiro José Santos Cabral e do Procurador-Geral Adjunto Euclides Dâmaso que, embora referindo-se sobretudo à prática judicial e, em concreto, à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, veio suscitar, exatamente, o mesmo problema.
Refere-se o dito artigo ao facto de os tribunais se aterem, demasiadas vezes, a questões formais, que, em concreto, não são suscetíveis de condicionar verdadeiramente os direitos dos arguidos, e que poderiam, por isso, ser ultrapassadas e resolvidas por uma leitura mais abrangente e integrativa da peça processual onde se inserem.
Muitas leituras restritivas da lei – mesmo daquela que pretende aligeirar os formalismos excessivos – acabam, na verdade, devido a uma cultura atávica, por pôr em crise a própria realização da justiça, menosprezando, assim, em alguns casos, os importantes direitos das vítimas.
O relevo dado, na nossa prática judicial, a irregularidades que, verdadeiramente, não afetam, em concreto, os direitos protegidos abstratamente pelas normas que as preveem e que, além disso, revestem uma importância relativamente diminuta, face à gravidade de muitos dos crimes em apreciação nos tribunais, condiciona grandemente o andamento e o resultado de alguns processos.
Tal orientação – resulte ela diretamente da lei ou, mais indiretamente, da leitura que dela é feita nos tribunais – decorre de uma atitude cultural, com razões históricas conhecidas, mas que, como se explica no artigo daqueles dois ilustres magistrados, não tem já hoje razão de ser.
Tal cultura x sedimentou-se e expande-se ainda – para além das razões históricas que estão na sua origem –, através de um ensino e de uma aprendizagem rotineira e formalista do processo, que domina e contamina todas as profissões forenses e que faz do direito processual a mãe de todo o Direito.
Do ensino universitário, à escola da magistratura, passando pela formação da advocacia, todo o ensino jurídico privilegia uma visão do processo como instrumento onde – mais do que a realização da justiça – se desenvolvem, sobretudo, estratégias adversariais condicionantes da aproximação à verdade.
Trata-se, no fundo, de um sistema legal e judiciariamente enraizado que, mais do que estipular regras objetivas que devem ser respeitadas para que se possa atingir um resultado justo para as partes envolvidas, ergue, afinal, um conjunto de barreiras à capacidade de compreensão pelos juízes do caso em análise, restringindo, deste modo, também, a abrangência da sua decisão.
Em última análise, continua a desconfiar-se do poder que os juízes exercem no processo e, bem assim, da sua capacidade efetiva para realizar justiça.
E, pior, em muitos casos, são os próprios juízes das instâncias superiores que veiculam tal cultura e a impõem reprodutivamente às instâncias inferiores.
Reflexo dela, é, ainda, a exigência de fundamentação exaustiva, mas formalista, das sentenças – que não tem par nos sistemas estrangeiros – e que muito contribui, também, para o avolumar do trabalho dos juízes e, consequentemente, para o aumento da duração dos processos.
Dito isto, importa dizer que não sou propriamente favorável a que se atribua aos juízes a função de salva-vidas dos processos conduzidos – ou malconduzidos – pelos advogados ou pelo Ministério Público.
Apenas quero relevar a importância de atribuir aos juízes – e não a uma plêiade alargada de normas rígidas – o poder de, em muitos mais casos, avaliarem, em concreto, a importância que uma irregularidade processual possa ter tido, de facto, para a sustentação de uma defesa consistente por parte do arguido.
Tal avaliação deverá, naturalmente, ter em atenção a gravidade do crime que lhe foi imputado e cuja prova do cometimento, não fora a dita e inócua irregularidade processual invocada, se mostra, mesmo assim, plenamente evidente e efetivamente realizada.
Ora, aqui sim, justifica-se a necessidade, por parte do juiz, de uma fundamentação rigorosa – que não hermética e formalista – da desconsideração da irregularidade verificada na decisão de fundo, por ele tomada, apesar dela.
O mais contraditório e desconcertante desta cultura política e judiciária, assente no formalismo e na desconfiança nos agentes da justiça, e mormente nos juízes, é o facto de, ante a incompreensão pública do sentido de muitas decisões dos tribunais, muitos juristas e representantes do poder político com poderes de iniciativa legislativa começarem a aceitar, agora, que a informação obtida, ilícita e criminalmente, por agentes alheios às funções judiciais e policiais de investigação poder ser considerada para a obtenção posterior de meios de prova processual.
Quando a manta da coerência é curta, com uma mão se tapa e com outra se destapa.