Foi em janeiro deste ano que Alessandra Clark, recém chegada a Portugal e neta da artista brasileira Lygia Clark, foi surpreendida na televisão, com uma obra que em muito se assemelha a um dos trabalhos da sua avó. Nos dias 18 e 21 de janeiro, em duas conferências do Conselho de Ministros, o primeiro-ministro António Costa falou ao país alertando para o agravamento da situação pandémica dessa altura. Atrás dele, uma grande escultura a preto e branco saltou à vista e, foi precisamente essa obra que confundiu Alessandra. A princípio, interrogou-se: «O que faz uma peça da minha avó no Palácio de São Bento, aqui em Portugal?». Com o intuito de esclarecer essa dúvida, a neta da artista brasileira, contactou uma galerista portuguesa que depressa lhe deu a conhecer o trabalho de Fernanda Fragateiro. A obra em questão, trata-se de uma escultura inspirada no trabalho de Lygia Clark, que dá seguimento a um projeto iniciado em 2016, apelidado de After Lygia Clark e faz parte da coleção Figueiredo Ribeiro, realizada em 2019.
A obra de Lygia Clark
«Cheguei a Portugal a meio da pandemia. Ao ver os pronunciamentos de António Costa na televisão, não entendi o que é que a obra da minha avó estava a fazer atrás do primeiro-ministro desconhecendo a ligação entre o Governo português e o trabalho da minha avó. Encaminhei uma fotografia para uma galerista portuguesa que me informou que a obra era da artista portuguesa Fernanda Fragateiro. Depois disso, pesquisei sobre a artista e descobri uma coleção inteira inspirada na minha avó», explicou Alessandra Clark ao Nascer do SOL.
Lygia Clark – 1920-1988 –, pseudónimo de Lygia Pimentel Lins, foi uma pintora e escultora brasileira contemporânea que se autointitulava «não artista» e dizia que a «arte é o seu ato». Como pode ler-se na Wikipedia, fundou a arte participativa, interativa e compartilhada, e, segundo muitos critícos, «destravou as portas do inconsciente através da sua arte». As exposições de Lygia Clark criaram novos conceitos, promoveram a interatividade com o público e pouco a pouco «afastaram-se dos suportes tradicionais da arte». A obra em questão fez parte de um conjunto criado em 1958, Superfícies Moduladas e Planos em Superfície Modulada. Estas séries «deslocavam a pintura para longe do espaço claustrofóbico da moldura». Com isso, Lygia criava a «linha-luz como módulo construtor do plano e a projeção de cada figura geométrica para além dos limites do suporte, ampliando a extensão de suas áreas», lê-se em algumas críticas ao seu trabalho.
À primeira vista, será complicado perceber as diferenças entre a pintura de Lygia Clark e a escultura «Black and White» de Fernanda Fragateiro. Esta escultura é uma obra que faz parte de uma série de outras esculturas que a artista tem realizado ao longo dos anos e que remetem diretamente para conhecidas obras de pintura abstrata, que são transformadas em esculturas. «Normalmente essas esculturas, vistas de longe, assemelham-se formalmente às pinturas usadas como referência, mas quando vistas de perto, percebemos que não se trata de pintura mas sim de objetos tridimensionais construídos em aço, sobre os quais são colocados livros ou cadernos de tecido manufaturados», explicou a artista portuguesa ao Nascer do SOL, acrescentando que «é através da sobreposição destes cadernos que se forma uma composição». Este processo de trabalho, segundo Fernanda Fragateiro, é uma conversa que a própria estabelece com a história da arte e com alguns autores, normalmente mulheres artistas ou arquitetas que foram de alguma forma esquecidas, ou pelo menos «não foram suficientemente reconhecidas na sua época».
As diferenças entre as peças
A artista portuguesa faz ainda questão de desconstruir as diferenças entre o seu trabalho e o trabalho de Lygia Clark: «A peça de Lygia Clark é uma obra bidimensional, uma colagem em papel. A minha escultura é uma referência direta a esta colagem, mas é uma escultura construída em aço e grandes cadernos de tecido manufacturados», declarou. A escultura suspende-se na parede, desligando-se desta e criando um ângulo, «o que não é percetível nas imagens que aparecem na televisão». O uso de cadernos manufaturados brancos e pretos sobrepostos criam uma composição, que é uma referência direta à colagem em papel e ao trabalho de pintura de Lygia Clark, mas também ao seu trabalho com livros.
«Também as características hápticas da minha escultura se inspiram no trabalho que a Lygia realizou nos últimos anos da sua vida, que implicava tocar o corpo do espetador, convertendo-o em obra. Assim, toda esta minha escultura remete, em forma de homenagem, para a obra da Lygia Clark e não só para uma colagem», revelou a artista.
A sua neta, Alessandra Clark, admite também que «apesar da desconcertante semelhança vistas as obras de frente, as diferenças apareciam no método de construção e a partir das perspetivas tridimensionais».
Mas de onde surge este interesse de Fernanda Fragateiro na arte de Clark? «O meu interesse pelo trabalho de Clark prende-se com a história da arte e não pelo lado pessoal», admitiu Fragateiro. Segundo a mesma, os artistas conversam com as obras dos outros artistas e «eu estou especialmente interessada nos temas da abstração e em pinturas ou objetos de design produzidos durante o modernismo». Além desse interesse, a artista portuguesa sublinha o desejo que tem de «convocar o trabalho dessa artista para uma conversa sem fim», como se pudesse ativar esse trabalho, trazê-lo novamente para discussão. No caso da Lygia Clark, «trazer o seu trabalho para uma discussão no presente é para mim fulcral», explicou Fragateiro.
Qual a fronteira entre a inspiração e o plágio?
Plágio, à luz da legislação portuguesa em vigor, é o termo comum para contrafação de obra protegida por direito de autor. «Constitui plágio, a utilização de uma obra como sendo criação sua, ou cuja reprodução, total ou parcial, seja de tal modo semelhante que não tenha individualidade própria», tal como esclareceu Inês Monteiro Alves, especialista em direitos de autor ao Nascer do SOL.
Ou seja, para que se verifique uma situação de plágio, em primeiro lugar, é necessária a existência de uma obra originária que cumpra os requisitos de proteção de direitos de autor, que tenha originalidade. Em segundo lugar, é necessária a existência de uma obra posterior, que seja de tal modo semelhante à obra originária, que não tenha individualidade própria. «Não haverá plágio quando a criação de uma obra posterior, inspirada na primeira, tenha dissemelhanças suficientes para se entender que estamos perante uma criação nova dotada de originalidade e criatividade», elucida a especialista. «A fronteira entre a inspiração e o plágio está, portanto, no pressuposto de a obra posterior ter ou não individualidade própria face à obra originária», acrescentou.
Neste caso específico, a própria artista, Fernanda Fragateiro, acredita que quem observar a escultura e estiver por dentro do trabalho da artista brasileira, depressa se perceberá de que se trata de uma inspiração e não de uma cópia. «Uma citação, um repensar, um trazer essa obra para uma discussão», afirmou a artista. «A arte contemporânea tem uma linguagem própria e o meu trabalho é conceptual. Não existe qualquer mal entendido, do meu ponto de vista e do ponto de vista da criação contemporânea», informou.
Inês Monteiro Alves corrobora essa afirmação, clarificando que a inspiração, por si, é algo positivo. «A inspiração permite a evolução da arte e é ela que conduz ao desenvolvimento criativo da humanidade. No entanto, é necessário que a inspiração leve à criação de obras novas dotadas de originalidade e que não se cinja apenas à reprodução de obras já existentes», sublinhou. Inúmeros são os casos de inspiração no campo das artes, tais como a influência da arte africana no cubismo, ou mesmo o Oriente que inspirou fortemente pintores franceses do século XIX, como Eugène Delacroix e Jean-Léon Gérôme.
Segundo David Damião, assessor do primeiro-ministro, a peça em questão, «Black & White», de 2019, de Fernanda Fragateiro, encontra-se no Palácio de São Bento desde Outubro de 2020 e até Outubro de 2021, no âmbito da mostra «Arte em São Bento», que consiste na apresentação, com periodicidade anual, de coleções privadas de arte contemporânea portuguesa na Residência Oficial do Primeiro-Ministro. Esta iniciativa começou em 2017, com a Coleção Serralves, e prosseguiu com as coleções de António Cachola/Museu de Arte Contemporânea de Elvas (2018), de Norlinda e José Lima (2019) e Figueiredo Ribeiro (2020). «A seleção das obras expostas na Residência Oficial é da responsabilidade de curadores indicados pelo colecionador», adiantou Damião em declarações ao Nascer do SOL.
As memórias de uma avó especial
Tendo sido Lygia Clark uma das artistas brasileiras mais influentes do século XX, reinventando a forma de ver e fazer arte, paira a curiosidade de como esta seria enquanto avó. Alessandra Clark relembra os momentos em que ambas permaneciam em casa «manipulando» as suas obras, descrevendo-os como naturais e espontâneos. «Eu visitava a minha avó com frequência. Quando a visitava de tarde, tínhamos um ritual… Eu chegava, brincava na sala ou balançava na rede. Quando ela se cansava da agitação, levava-me ao restaurante debaixo de casa e ficava de frente para o mar e eu de frente para ela», recorda Alessandra. Esse momento, conta, era feito de silêncio, enquanto as duas bebiam sumo de laranja. «Eu ficava a admirá-la enquanto ela olhava fixamente para o mar», contou. Depois, ao voltar a casa, Clark colocava um colchão no chão e fazia terapia na neta até esta adormecer. Aos 12 anos, depois de ver partir a avó, o seu pai e tios fundaram uma Associação Cultural para cuidar do seu legado e Alessandra foi apoiar, colaborando naquilo que lhe era possível. Foi nessa altura, entre 2001 e 2014, que acabou por se envolver «mais do que imaginava», e aprendeu tudo sobre a obra da sua avó. «O meu principal objetivo foi sempre apoiar o fomento, a pesquisa e divulgar a obra dela com a simplicidade com que ela a tratava», revelou.
A neta relembra-a como uma pessoa sem limites, resiliente, que seguiu sempre «em frente sem deixar que a vida caísse na mesmice».