Jeffrey Sachs, um popular economista norte-americano, nunca duvidou do poder e da centralidade das cidades. Ao ponto de olhar para o futuro, para o século XXI, como o “século urbano”. Sachs tem razão. Repare nestes números avassaladores: em 2030, e depois de um período de expansão sem precedentes, as cidades ocuparão somente 1,1% da massa terrestre do planeta. Contudo, serão casa para mais de 60% da população mundial. Pela primeira vez na história da humanidade, há mais vida urbana do que rural.
Esta realidade terá profundíssimas implicações sociais, económicas e políticas. Os comportamentos, os hábitos, as tradições e até os padrões de consumo serão muito mais marcados pelos gostos e desejos das classes médias urbanas em todo o planeta – e, sim, cada vez menos no ocidente e mais no oriente.
Com mais gente a viver em menos espaço, as cidades são “energia convertida em cultura”, como constata Lewis Mumford – o autor de The City in History.
Essa é a energia vital das cidades e o que verdadeiramente as diferencia das nações como unidades políticas vibrantes e indispensáveis na abordagem dos temas tipicamente reservados ao multilateralismo e ao globalismo – como o terrorismo, as alterações climáticas ou, para dar um exemplo mais recente, a pandemia.
É uma verdade autoevidente que os locais onde vivemos resultam daquilo em que acreditamos. Ideias como justiça, solidariedade, riqueza, proteção ambiental ou até educação não são inseparáveis da moldura ética e moral formada pelas nossas crenças políticas e religiosas. Não é por acaso que algumas das mais prósperas cidades do mundo são também aquelas com maior diversidade e tolerância religiosa. Detenho-me neste ponto: as cidades são, cada vez mais, o ponto focal do pluralismo religioso.
Algumas das mais espantosas iniciativas de promoção do diálogo inter-religioso têm lugar nas nossas cidades.
Como gosto de dizer, Cascais tem o corpo de uma pequena vila mas a alma de uma grande cidade. O pluralismo religioso, o harmonioso convívio entre correntes de fé, é uma das marcas da nossa identidade que os cascalenses mais prezam.
Recordo que, em 2013, a meio de um encontro europeu de Harley Davidson com 30 mil participantes e 20 mil motas, acolhemos uma concentração de monges budistas. Monges pacatos e ruidosas Harley’s passearam-se com o mesmo à vontade pelas ruas da vila num contraste extraordinário entre a meditação e a explosão, a contenção e a efusividade.
Pouco depois, com a comunidade judaica liderada pelo Rabino Eli Rosenfeld, passámos a organizar o Hanukkah no mais icónico espaço público do concelho, a Baía de Cascais. É aí que, todos os anos desde então, se ergue a menorá que em todo o mundo está mais próxima do Atlântico. A nossa relação com os nossos vizinhos judeus criou raízes tão profundas que, em 2020, inaugurámos a Casa Chabad – um espaço inteiramente dedicado à educação e à cultura judaica, que se assume como uma das mais importantes obras de matriz judaica que o nosso país viu nascer em democracia.
Também no centro de Cascais, junto à praia da Duquesa, os ortodoxos russos têm o seu local de culto.
E mais recentemente, concretizando esta visão pluralista da identidade histórica do concelho, celebrámos o Eid al-Fitr (o fim do ramadão) no Hipódromo Manuel Possolo, um espaço que até aqui tem sido usado para celebrar as missas católicas. Assim, cerca de 700 muçulmanos puderam, num espaço público no centro da Vila e com todas as condições de segurança, celebrar um dos dias mais sagrados do seu calendário, na presença do Pároco de Cascais e de vários representantes da Fé Cristã numa demonstração plena de ecumenismo identitário.
Num mundo tão carregado de ódio, de ignorância, fraco perante o medo e sensível perante o egoísmo, expor as comunidades à diversidade, à diferença e ao conhecimento é um recurso social e político valioso ao qual Portugal deveria recorrer com mais frequência.
Afinal de contas, ainda que muitos o desconheçam e outros o prefiram ignorar por motivações de poder ou política, por terem medo que o medo acabe como dizia Mia Couto, somos todos descendentes de Abraão.
Há cidades que têm de fazer um enorme esforço para se abrirem ao exterior e à diferença. Cascais não precisa de fazer esforço algum para ser tolerante e inclusiva. Isso está no nosso ADN. É a nossa predisposição, confirmada pela história, ter os braços abertos ao mundo. Tratar o outro como um dos nossos.
Orgulhamo-nos de ser uma terra sem estrangeiros, apesar de aqui viverem representantes de mais de 120 nacionalidades do mundo.
A vocação humanista e universalista de Cascais constitui hoje um ativo que tem poder de atração junto das mais variadas comunidades espalhadas por toda a Europa e pelo mundo: budistas, hindus, judeus, muçulmanos ou católicos, todos são bem-vindos nesta nossa casa comum.
É um círculo virtuoso: quanto mais atrativa for Cascais, mais diverso e próspero se torna o território, com isso captando a atenção de mais cidadãos do mundo.
Há uma lei de Deus e uma lei dos homens. O Estado é laico. Mas como homem que acredita, eu não vejo futuro nas sociedades sem fé. Quaisquer que elas sejam.
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira