Ruínas de Entrecampos: Desde o Paleolítico ao contemporâneo

Ruínas de Entrecampos: Desde o Paleolítico ao contemporâneo


Lisboa, habitada desde a Idade do Ferro, está habituada a encontrar vestígios do passado debaixo dos seus pés.


Andar em Lisboa pode ser, literalmente, andar sobre séculos de história. É frequente trabalhos de construção projetados para a capital terem de ser interrompidos após ser encontrado qualquer vestígio de uma civilização antiga. Desta vez, o episódio aconteceu nos antigos terrenos da Feira Popular, na zona de Entrecampos.

“Presentemente o grosso das estruturas visíveis no terreno corresponde a vestígios de fundações do edificado pertencente ao Mercado do Gado e a dependências das quintas que existiram na área até meados do século XX”, informou a Direção Geral do Património Cultural (DGPC) ao i, esclarecendo que, apesar de não ser a entidade responsável pela realização dos trabalhos arqueológicos, compete-lhe “o acompanhamento e fiscalização dos mesmos, bem como a determinação das medidas de salvaguarda a implementar”.

 

Construção de edifícios de escritórios

Contactada pelo i, a Fidelidade, empresa responsável pelo projeto, explicou que o que irá ser construído, mediante a aprovação e licenciamento da Câmara Municipal de Lisboa (CML), “serão edifícios de escritórios, habitação e espaços públicos, servidos por uma área de retalho e estacionamento”. No entanto, neste momento, está a decorrer, em articulação com a DGCP, um processo de “escavação arqueológica em área que permitirá a caracterização e registo de todas as realidades arqueológicas existentes na área em análise”.

 

Alicerces do antigo mercado do gado

Ao contrário do que alguns possam pensar, a maioria das ruínas encontradas por baixo dos terrenos da antiga Feira Popular não pertenciam ao período romano mas sim ao século passado: “A grande maioria das estruturas visíveis são efetivamente de cronologia contemporânea (finais dos séculos XIX, inícios do XX) e correspondem a antigas quintas rurais existentes na zona de Entrecampos”, explicou a Fidelidade. Na metade sul do terreno são ainda visíveis “alicerces do antigo Mercado de Gado de Lisboa”, demolido no início do século XX.

Relativamente às estruturas que remontam ao período romano, “ocupam apenas uma zona restrita da área de intervenção e encontram-se muito destruídas” devido “à reutilização da pedra e do espaço para as construções de época moderna e contemporânea”, explica a empresa responsável.

Independentemente do período ao qual pertence, a DGPC acredita que “o conjunto assume uma enorme importância no panorama do conhecimento sobre a diacronia de ocupação antrópica desta área da atual cidade de Lisboa” e, por isso, “determinou a realização dos extensos trabalhos de escavação arqueológica em curso, visando a recolha de toda a informação disponível e tendo como objetivo último a publicação e divulgação do sítio, quer ao nível científico, quer ao nível do público em geral”.

Os vestígios agora encontrados serão preservados através do princípio legal da conservação pelo registo, que consiste “na preservação das realidades arqueológicas identificadas, por intermédio do registo das mesmas nas suas mais variadas dimensões (registo fotográfico, registo topográfico, registo gráfico, registo fotogramétrico, memória descritiva e eventualmente vídeo)”, explica a seguradora.

 

Artefactos romanos “destruídos” pelas construções contemporâneas

Contactado pelo i, o arqueólogo Nuno Neto, um dos responsáveis pela escavação arqueológica do local, explica que foi possível encontrar alguns artefactos do Paleolítico, mas que a sua caracterização ainda é “um trabalho em desenvolvimento”.

Os materiais encontrados relativos a um período da Pré-História mais recente são também em quantidade reduzida e têm apenas uma “relevância diminuta” uma vez que vieram de arrasto, “trazidos pela ação da água de um local mais a montante”.

No que toca ao período romano, foram encontrados alguns vestígios de peças de cerâmica, que serão “lavados, analisados e documentados” para estudos futuros, explica Nuno Neto.

No entanto, todos os estes vestígios se encontram bastante destruídos. E por dois motivos. Na época moderna e contemporânea construiu-se por cima do que já existia e, além disso, os materiais de períodos mais antigos foram saqueados: “Foram destruídos poços da época romana porque naquela zona, do ponto de vista geológico, não é rica em pedra” esclarece o arqueólogo. Uma vez que já existia pedra no recinto, derivada das construções mais antigas, esta foi “roubada” para dar vida a novas construções.

A Feira Popular, adianta ainda Nuno Neto, não veio causar “muitos estragos” ao que já existia no local, visto que “as construções não foram muito invasivas”.

 

Acontecimento comum

“Todos os trabalhos que são realizados requerem um acompanhamento arqueológico prévio”, explica o arqueólogo. Logo, quando se vai começar a construir algo, já houve uma investigação prévia para saber se seria provável que aquele local tivesse, ou não, ruínas ou artefactos de épocas passadas.

Durante a última década foram vários os vestígios arqueológicos encontrados que colocaram projetos de construção em pausa.

Em 2012 foram encontrados na atual sede de EDP, na Avenida 24 de Julho, vestígios de duas embarcações de transição do século XVII para o século XVIII. Quatro anos depois, foram descobertos mais oito navios, desta vez no Campo das Cebolas. Estes barcos tinham dimensões mais reduzidas e teriam servido para transportar mercadorias, como alimentos e cortiça, ao longo do estuário do Tejo. Duas delas ficaram no local encontrado, onde agora está um parque de estacionamento subterrâneo, e as restantes seis foram levadas para longe dos olhos do público, juntamente com as 60 toneladas de material encontrado, entre as quais se encontravam cachimbos holandeses, cerâmicas espanholas, vidros italianos, porcelana chinesa, peças em marfim africano ou cerâmica romana.

Em Alfama têm sido desenterrados desde 2014 alguns elementos da necrópole islâmica ocidental, cuja datação se situa entre os séculos XI e XIII. A análise dos dentes e do cálcio presente nos ossos, que desvendou os hábitos alimentares de quem ali ficou enterrado, mostrou que este era um cemitério de pessoas provenientes de zonas pobres.

Em 2016 foram encontradas na Rua dos Lagares cerca de 100 sepulturas que pertenciam a pessoas de três religiões diferentes. Aquele lugar foi inicialmente utilizado como uma necrópole cristã e judaica, sendo que, mais tarde, passou a estar associado ao culto islâmico.

Por Lisboa ter estado “em constante ocupação desde a Idade do Ferro”, como explica Nuno Neto, “é bastante comum que encontremos vestígios em praticamente cada ‘buraco’ que se escava na cidade”.

Em dezembro de 2018, a Fidelidade Property comprou à CML por 238,5 milhões de euros, todos os terrenos que faziam parte da hasta pública da antiga Feira Popular, tendo os trabalhos arqueológicos começado cerca de um ano depois.