Boavista. Há 20 anos, rompia-se a hegemonia dos ‘três grandes’

Boavista. Há 20 anos, rompia-se a hegemonia dos ‘três grandes’


Há exatamente 20 anos, a 18 de maio de 2001, o Boavista FC juntava-se ao restrito clube de campeões nacionais, onde, além dos “três grandes”, figurava apenas o Belenenses. “Aliava-se o fato de macaco ao fato de gravata”, brinca o guarda-redes Ricardo.


Corria o ano de 2001, o Sporting CP vinha da euforia da temporada passada, em que conquistara o primeiro título de campeão nacional desde 1982, e o FC Porto estava ainda na ressaca do pentacampeonato (entre 1995 e 1999). Já o SL Benfica atravessava um jejum que se arrastava desde 1994, e que colocou os ‘encarnados’ em sexto lugar no final da época 2000-2001, a sua pior classificação de sempre. Por entre os “três grandes”, no entanto, intrometia-se um quarto candidato ao título, que acabaria mesmo por conquistar o primeiro lugar num memorável 18 de maio de 2001.

O Boavista Futebol Clube, instalado no Estádio do Bessa, na zona ocidental da cidade do Porto, rival eterno dos azuis-e-brancos, tornava-se assim o quinto clube de sempre a conquistar um campeonato nacional, depois de FC Porto, SL Benfica, Sporting CP e Belenenses.

Este último sagrara-se campeão nacional no longínquo ano de 1946. Foi preciso esperar 55 anos para que uma equipa fora do restrito clube dos “três grandes” voltasse a conquistar o título de campeão nacional, e já passaram 20 anos desde a última vez que tal fenómeno aconteceu: o Boavista conquistou o seu primeiro e único título de campeão nacional, uma realidade que parece não se assemelhar em nada com a atualidade, quando os axadrezados estão em perigo de descer à Segunda Liga.

Em 2001, o emblema treinado naquele então por Jaime Pacheco, tinha já mostrado sinais de ser um verdadeiro candidato ao título nas temporadas anteriores, sendo vice-campeão em 1998-1999, alcançado o quarto lugar em 1999-2000, e conquistando a vitória nas duas mãos da 3.ª pré-eliminatória para a Liga dos Campeões na mesma temporada, frente ao Bröndby IF da Dinamarca, acabando por ficar pelo caminho na fase de grupos. Em Portugal, foi eliminado, no ano 2000, nos quartos-de-final da Taça de Portugal, pelo Rio Ave e, na temporada de 2000-2001, chegaria às meias-finais, falhando a passagem à final após perder com o Marítimo em casa. O peso do Boavista no panorama futebolístico nacional era tal que, naqueles anos, Ricardo, Frechaut, e Petit, todos elementos do plantel axadrezado, representaram em peso a seleção nacional.

Desse grupo, contavam-se nomes que vieram a marcar a história do futebol português para sempre. Ricardo defendia a baliza axadrezada, poucos anos antes do mítico Europeu de 2004, e da sua icónica defesa sem luvas, que permitiu a continuidade da seleção das quinas no Europeu que se jogou em Portugal, onde viria a perder, na final, frente à Grécia. Na defesa estavam nomes como Pedro Emanuel, que acabou por conquistar, com o FC Porto, a Taça UEFA e a Liga dos Campeões, e no meio-campo uma dupla pendular: Petit, o atual treinador do Belenenses SAD, que fez carreira no SL Benfica, como jogador, e tem orientado equipas por todo o país, e Erwin Sánchez, o craque boliviano, hoje também treinador no seu país natal. Na frente, Elpídio Silva era o homem-golo do emblema axadrezado. Também Martelinho marcava o ritmo na frente, e juntava-se a um elenco de jogadores que se sagraram campeões nacionais sem ter um dragão, uma águia ou um leão ao peito, numa família “humilde”, como referia recentemente Martelinho em declarações no programa A Grandiosa Enciclopédia do Ludopédio, da RTP.

 

Rivalidade na cidade

Na altura, tal como na atualidade, mas de uma forma ainda mais intensa, mantinha-se uma forte rivalidade entre o Boavista FC e o FC Porto, dois emblemas da mesma cidade, separados por alguns quilómetros de distância, mas juntos na vontade de ver o adversário derrotado, que deu forma, em 2001, a dois grandes espetáculos. Na última jornada da temporada 2000-2001, aliás, quando o Boavista já era matematicamente campeão, os dragões golearam os axadrezados, nas Antas, por 4-0. Uma vitória com sabor agridoce, já que, apesar da goleada, seriam mesmo os jogadores do Boavista a celebrar o campeonato, com um ponto de vantagem frente aos rivais azuis-e-brancos na tabela classificativa. Ponto este que, entre outros, os portistas deixaram fugir na última jornada da primeira volta do campeonato, no estádio do Bessa, num jogo que o Boavista venceu por uma bola a zero, e que viria a selar o destino dos axadrezados na prova.

Se a última jornada do Boavista foi de derrota por 4-0, o jogo anterior pintou outra realidade, quando, ao bater o Desportivo das Aves, por 3-0, os adeptos axadrezados viveram um momento que, pelo menos na época moderna do futebol português, só os fãs dos “três grandes” conhecem, e os 10 mil boavisteiros presentes invadiram o relvado do Bessa assim que se ouviu o apito final. Naquela noite de 18 de maio de 2001, a rotunda da Boavista pintou-se, de preto e branco, com cânticos como “o Porto tem mais encanto, vestido de preto e branco…”, num eco que se fez sentir também na Avenida dos Aliados, e que fez rebentar uma festa que durou até à madrugada seguinte.

Hoje em dia, os elementos axadrezados envolvidos no título de campeões nacionais estão um pouco por toda a parte, alguns no mundo do futebol, outros já afastados dos campos. Ricardo, Petit e Pedro Emanuel encontram-se ainda no ativo, sendo o primeiro comentador desportivo e tendo os últimos dois envergado pela carreira de treinador. Jaime Pacheco manteve a atividade como técnico, passando por países como a Arábia Saudita, a China e o Egito, onde esteve até ao corrente ano. Também a família Loureiro, apesar de afastada da direção do Boavista, continua a mostrar-se como fervorosa adepta dos axadrezados, tal como o eram na passagem do milénio. Um fervor que muitos apontam como tendo sido crucial para a conquista do campeonato pela equipa das “camisolas esquisitas”, como ficou conhecida na sua passagem pelas competições europeias.

Aliás, o Boavista que conquistou o campeonato nacional em 2001 ficou conhecido como o “Boavistão”, termo muito utilizado para se referir à equipa orientada por José Maria Pedroto, na década de 1970. Na passagem do milénio, no entanto, pergunte-se a quem se perguntar, há dois apelidos que são ponto assente nas razões que levaram o Boavista à vitória: Pacheco e Loureiro. O envolvimento do técnico, que fez a sua carreira de jogador no FC Porto, e de Valentim e João Loureiro na direção técnica do clube, são, para os vários adeptos e elementos do emblema axadrezado ouvidos pelo i, os pilares sobre os quais se construiu o tal “segundo Boavistão”. O qual, recorde-se, também brilhou para além da conquista do campeonato nacional, nos anos antes e depois do épico 2001. Fale-se, por exemplo da Taça de Portugal conquistada em 1997, ao bater, na final, o SL Benfica por 3-2. Mas um dos maiores orgulhos que se sente na voz dos boavisteiros ouvidos pelo i, ao falar dos primeiros anos do milénio, prende-se com a presença europeia dos axadrezados, que lhes valeu a alcunha do clube “das camisolas esquisitas”. O Boavista bateu-se, na temporada 2001-02, com equipas como o Manchester United, o Bayern de Munique, e o Liverpool, que foi incapaz de vencer os axadrezados nos dois confrontos na Liga dos Campeões . Na época seguinte, no entanto, o Boavista atingiu o seu pico no panorama europeu, ao alcançar as meias-finais da Taça UEFA, onde foi derrotado pelo Celtic, equipa que viria a ser derrotada pelo FC Porto na final.

 

Relato na primeira pessoa

Ao i, o mítico guarda-redes Ricardo, que jogou pelo Boavista entre 1995 e 2003, antes de rumar ao Sporting CP – onde, ao contrário do que seria expectável, não conquistou mais nenhum título de campeão nacional –, fez questão de relembrar, durante os seus dias ao serviço dos axadrezados, o “companheirismo, a qualidade que tínhamos, a perseverança e a confiança a crescer num grupo de trabalho que era ajustado todos os anos, mas com uma espinha dorsal com qualidade tremenda”, da qual, defende, o líder e principal mestre de festas era o treinador Jaime Pacheco, sem o qual, garante, “não havia aquela equipa, que conseguiu ser da maneira que era, em termos de atitude competitiva, até porque isso era um reflexo da humildade e do trabalho que Jaime Pacheco transmitia”.

Ricardo faz questão de recordar que o Boavista vinha já numa espiral ascendente nas épocas anteriores a 2000-2001, com as várias participações em competições europeias e o segundo lugar alcançado na época 1998-1999.

Os anos passaram, e as memórias são já deturpadas pelo tempo, mas Ricardo aponta, como um dos momentos-chave durante a época, a deslocação à Madeira, a poucas jornadas do fim da temporada, onde se “assumiu”_a candidatura ao título. De resto, recorda as lições, os festejos e a “família” que se criou no estádio do Bessa no início do novo milénio.

O segredo para o título? “Aliar o fato de macaco ao fato de gravata”, brinca o antigo guarda-redes. Mas a brincadeira dura pouco. “O Boavista foi o primeiro clube a ser campeão nacional sem ser os três grandes, ponto final”, declarou sem hesitar, parecendo colocar um corretor sobre o campeonato nacional conquistado pelo Belenenses em 1946.

“Se nós transportarmos o Boavista [de 2000-2001] para a época de hoje, com as lógicas diferenças das estruturas, poderíamos comparar a quem se posiciona no meio dos grandes, que nos últimos anos tem sido o Sporting de Braga”, aproveita ainda Ricardo para explicar, fazendo um paralelismo futebolístico da atualidade. “É difícil andar metido nos grandes, mas é muito mais difícil conseguir ganhar”, continuou ainda, deixando uma garantia: “Quantos mais anos forem passando, mais valor as pessoas que estão envolvidas seriamente no futebol vão dando àquilo que nós construímos.”

 

Festejos únicos, literalmente

Se a festa começou na noite de 18 de maio de 2001, após a vitória frente ao Desportivo das Aves, as celebrações dos axadrezados perduraram durante largas semanas, concluindo já no fim do mês, num jantar de gala no prestigiado Casino Solverde, em Espinho, onde o plantel, junto do técnico Jaime Pacheco e do presidente João Loureiro – que partilhou a gala com o pai, Valentim Loureiro, que era, na altura, presidente da Liga Portuguesa de Futebol Profissional – concluíram as celebrações do primeiro, e, até agora, único título de campeões nacionais.

No dia 18, no entanto, a festa foi dos adeptos, e que o diga José Moreira, boavisteiro que esteve presente nos festejos do campeonato, em 2001, e que contou ao i o que se viveu naquela noite. Enquanto se preparava para assistir, junto da filha, nascida já depois do campeonato axadrezado, ao confronto entre o Boavista e o Portimonense no passado sábado, que acabou com vitória da equipa da casa por 1-0, o sócio boavisteiro parecia lembrar-se da festa como se tivesse sido no dia anterior. “Aquilo foi tudo muito novo, já tínhamos festejado taças, mas campeonatos era inédito”, começa por explicar, recontando a noite de 18 de maio, onde se viveu uma “adrenalina descomunal”. “Até ao primeiro golo uma pessoa vê o jogo, a partir daí foi só festejar”, continuou, recordando a noite em branco que passou, desde a invasão do relvado do Bessa até ao roteiro pelos diferentes pontos da cidade. Não se lembra da hora a que se deitou na madrugada do dia 19, mas recorda-se de um peculiar evento do dia seguinte à conquista do título. “No dia a seguir, fui dar um passeio de barco pelo Douro, e levei a minha camisola do Boavista”, conta, deixando claro que, naquele então, a sua mente e a sua alma estavam só fixadas naquele campeonato que chegava depois de várias épocas a ameaçar os primeiros lugares.

Os festejos estenderam-se durante semanas, com a festa oficial a acontecer a 27 de maio, quando, apesar da derrota por 4-0 frente ao FC Porto, o Boavista se sagrou de uma vez por todas campeão nacional, e celebrou com um itinerário que percorreu toda a cidade do Porto. O então presidente da Câmara, Nuno Cardoso, recebeu a equipa na autarquia, na Avenida dos Aliados, no coração da cidade, palco habitual dos festejos dos rivais do FC Porto. Seguiu-se, então, viagem até à rotunda da Boavista, fazendo um verdadeiro desfile pelas artérias da cidade, aterrando no sítio mais icónico do Porto para os boavisteiros. onde a festa do título se fez madrugada adentro por uma maré pintada a preto e branco que, até hoje, não teve oportunidade de repetir a façanha, e que se vê numa difícil situação atualmente, com grandes contrastes com as glórias do início do milénio.