Ahmet Hamdi Tanpinar. A burocracia do tempo

Ahmet Hamdi Tanpinar. A burocracia do tempo


“O Instituto para o Acerto dos Relógios” (ed. Maldoror) é o cómico relato das dores de ocidentalização de um homem e do seu país, a Turquia, contada pelo olhar sagaz e ácido de um dos seus escritores maiores.


Antes dos relógios já havia tempo. O físico Carlo Rovelli descreve assim a definição de tempo aristotélica – “O tempo é a medida da mudança: se nada muda, não existe tempo.” Sol e Lua e passou-se um dia. Primavera, Verão, Outono e Inverno e passou-se um ano. As árvores mais crescidas, os cabelos a ficarem encanecidos, mais rugas a riscar as faces. Durante a maior parte da nossa existência enquanto seres humanos, a experiência empírica da passagem do tempo foi suficiente para gerir os ritmos da sociedade. Só com o alvor do século XIX, com a invenção do telégrafo e a massificação do comboio enquanto meio preferencial de transporte entre várias cidades, se tornou necessário padronizar a hora. No final do século decretaram-se fusos horários que estabeleciam diferenças temporais entre várias zonas do globo e consequentemente a hora que um viajante, tendo entrado no comboio em Paris, iria encontrar à chegada, em Moscovo. O tempo da modernidade é um tempo técnico, uma burocracia a partir da qual se sincronizam os comboios que rasgam a Europa em todas as direcções. A ideia de fuso horário era uma ideia global, mas havia quem vivesse fora do tempo.

Dos escombros dos Impérios decrépitos que à Primeira Guerra Mundial cumpriu desmantelar, nasceram novos estados. À cabeça da recém criada República da Turquia estava Mustafa Kemal, que haveria de se chamar Ataturk, “O Pai dos Turcos”. Ataturk estava apostado em modernizar e ocidentalizar a velha máquina otomana que tinha em mãos. Para isto, conduziu uma extensa reforma que impactou todas as esferas da vida em sociedade. Entre elas contam-se a instauração da democracia representativa, secularização do estado e da justiça e a atribuição de direitos políticos às mulheres. O projecto político, que ficou conhecido como Kemalismo, tinha longos tentáculos e nem a medida do tempo escapou. Adoptou-se o calendário ocidental, bem como a divisão do dia em 24 horas. O ocidente avança. 

Ahmet Ahmdi Tanpinar tinha 22 anos quando, em Outubro de 1923, foi oficialmente fundada a República da Turquia. Foi com os seus próprios olhos que este antigo estudante de veterinária, posteriormente de literatura e professor universitário, viu a ocidentalização da Turquia. “O Instituto para o Acerto dos Relógios”, escrito em 1954 como uma série de folhetins para um jornal, é um sacrástico e bem humorado relato da ocidentalização da sociedade turca vista pelo olhar de Hayri Irdal, “o homem mais simples e tolo do mundo”, aprendiz de relojoeiro transformado em burocrata de uma nova instituição cujo propósito era abrir caminho para uma nova filosofia – “Vamos declarar que o ser humano é, antes do mais e acima de tudo, uma criatura que trabalha, e que trabalho é sinónimo de tempo.”

“Algumas pessoas vivem a vida tirando bom proveito do seu tempo, mas para mim o tempo era como uma perna estendida à minha frente e eu tropeçava nele.” Assim descreve o desafortunado Hayri a sua própria relação com o tempo, como uma repetição de azares e inconsequências, uma luta precária pela sobrevivência na babilónica Istambul. Com filhos e mulher para alimentar, Hayri vive de biscates, esquemas e trabalhos de escritório que mal chegam para sobreviver. Arrasta-se desencantado entre cafés e conversas, tenta regressar ao velho ofício, mas “Já não existia na minha cabeça qualquer ligação entre as palavras «vida» e «trabalho». Para mim a vida era um conto de fadas que inventamos de mãos bem afundadas nos bolsos.” 

Hayri relata as suas peripécias antes de se transformar num homem novo. Saltitava de capricho em capricho, acompanhado pelos seus conhecidos, que incluíam um farmacêutico alquimista, que tentava avidamente produzir ouro no seu próprio laboratório, e um profeta louco que encetou uma demanda por um tesouro escondido. Hayri ver-se-á envolvido num bizarro processo judicial, uma farsa kafkiana, que o entrega nas mãos de um prosélito de uma moderna religião – a psicanálise. Este é o ponto de viragem para o desesperado Hayri que, pela mão do psicanalista, trava conhecimento com aquele que irá ser o seu salvador. Hayri sofria muito, principalmente depois da morte da sua primeira mulher. Conhecia “todos os túmulos, campas e mausoléus de qualquer dos santos ou milagreiros que se podiam encontrar em praticamente qualquer bairro de Istambul”, mas pelas preces que lhes concedeu, nenhuma benção recebeu em troca. Nenhuma dessas entidades místicas “proporcionara qualquer bálsamo para as minhas feridas, nenhum mexera um dedo para acalmar a minha dor e o meu sofrimento na época em que eu lutava para alimentar a minha família.” Ao homem santo nada que lhe ofereçam na terra faz falta, “ofereciam tudo o que possuíam para viverem em condições mais abjectas do que as minhas, com o objectivo de disciplinarem a mente e fortalecerem a alma.” A estes interessa-lhes somente o que vem depois, almejam a eternidade a que a morte os há-de entregar, vivem fora do tempo, imunes à aceleração da civilização. “Enquanto eu lamentava não ter uma camisa limpa para vestir de manhã, Dede, o Descamisado, tratava de rasgar violentamente as suas no meio da rua, camisas que lhe tinham sido oferecidas.” Na fé e na abnegação, Hayri não encontrou pão para pôr na mesa, nem uma camisa limpa. Passou o tempo da miraculosa intervenção divina, é chegada a hora de o homem tomar as rédeas da providência. 

Halit Ayarci é para Hayri, tal como Ataturk o foi para a Turquia, o homem providencial. Sob a alçada de Halit, que pertence à casta daqueles que “agarram , que se apoderam, que devoram e despedaçam aquilo que lhes agrada, e que depois partem em busca de algo novo”, Hayri há-de passar de madraço imprestável para “assistente de direcção de uma das instituições mais inovadoras e beneméritas do mundo” – o Instituto para o Acerto dos Relógios. Halit Ayarci é acima de tudo um homem prático. Para tudo possui uma solução, com um sopro desanuvia uma tempestade. Para o longo rol de queixumes e tormentas de Hayri, Halit oferece o desembaraço vácuo do pantomineiro experimentado. “Como vê, não há problema que não tenha solução. Alguns pequenos ajustes à sua vida, um pouco de empreendedorismo, um pouco de esforço, uma pequena mudança no modo de ver as coisas – e voilà! Tudo se altera.” Perante os protestos de Hayri, Halit é taxativo “O que é que ganha ao aceitarmos a realidade tal como ela é? (…) O que posso fazer com o material que tenho à minha frente, com este mesmo objecto e tudo o que ele tem para me oferecer? É esta a pergunta a colocar." A resposta de Halit a esta mesma pergunta foi agarrar em Hayri e nos velhos adágios sobre a natureza do tempo que herdara do seu antigo mestre relojoeiro e contratá-lo como fundador do Instituto para o Acerto dos Relógios.

Sobre tempo, trabalho e modernidade escreveu Kafka quase tudo. Gregor Samsa, que acordou “transformado num insecto horroroso”, olha para o despertador que falhou em acordá-lo à hora certa para partir numa viagem de trabalho e aflige-se com o atraso, com o patrão e com o que irão pensar de tão aplicado trabalhador que cometeu a primeira falha em cinco anos de serviço. O Instituto para o Acerto dos Relógios encarregar-se-ia de garantir que o relógio despertador de Samsa está sincronizado com o da estação de comboios.

 Hayri está feliz com o seu novo emprego, contente por “já não [andar] de café em café à procura de uma cara conhecida”, mas não compreendia o trabalho que tinha que realizar,  “um posto nascido de um punhado de palavras”. O antiquado Hayri não compreende o aperfeiçoamento da burocracia, as discussões para cargos directivos, a contratação de familiares de modo a “abafar à nascença todo o tipo de queixas”, a contratação de trabalhadores excedentários para, quando aparecerem os relatos de gastos excessivos do Instituto, tenham “dois ou três funcionários que possamos sacrificar tranquilamente, se quisermos mostrar ao público que as nossas intenções são as melhores.” O que Hayri não entende e que Halit insiste em tentar convencê-lo de, é que é chegada a era da burocracia, que esta atingiu o seu zénite, e que estão no “processo de fundar uma instituição absoluta – um mecanismo que define a sua própria função. O que poderia estar mais próximo da perfeição do que isso?” 

Hayri nunca será capaz de vestir a pele de burocrata perfeito. É demasiado conservador e antiquado para os padrões destes novos visionários. Nele convivem lado a lado o novo e o velho, o progresso e a crendice. Tanpinar acerta em cheio no modo como desenha a incredulidade de Hayri perante o absurdo que o rodeia. É pelo olhar espantado dele que vemos o presidente da câmara a inspeccionar os escritórios ainda vazios de gente do Instituto e a “converter meia dúzia de passos até à sala seguinte numa viagem de meia hora”, enquanto examina “candeeiros de escritório (ainda sem lâmpadas), que prometiam longas e ininterruptas noites de trabalho”. Sente-se vivamente a indignação de Hayri diante dos delírios hollywoodescos da esposa, que vivia a vida como se fosse uma das atrizes que via nos filmes, que se convenceu que Hayri era parecido com Napoleão porque ambos adoravam azeitonas secas, e que disse numa entrevista que o marido era “um razoável cavalheiro, um excelente nadador e de vez em quando jogava ténis”. São palpáveis as suas hesitações entre acreditar ou não, entre entregar-se aos factos ou repudiá-los em absoluto. Hayri mantém-se fiel a Halit, que lhe exige “crença genuína na importância do nosso trabalho”, que espera dele que acredite piamente na existência de Ahmet, o Cronologista, velho sábio sobre o qual Hayri escreveu uma biografia, mas que nunca existiu. “Duvidar da sua existência numa fase tão adiantada teria sido demasiado perturbador.”

O Instituto, que começava a internacionalizar-se, haveria de se esboroar pela base. Hayri, que se reinventara como uma espécie moderna de homem da renascença, artesão em vez de artista, foi responsável pela arquitectura do projecto megalómano e totalmente absurdo da nova sede do Instituto. A maquete do projeto, feita em casa com a ajuda do filho, era feita com caixas de fósforos. Quando se equacionou que Hayri utilizasse as suas recém adquiridas capacidades de engenheiro e arquitecto para construir um bairro para os trabalhadores do Instituto, a insurreição começou. “Quando o que estava em jogo era dinheiro público [as pessoas] mostravam-se generosas, entusiásticas, orgulhosas do meu trabalho e encantadas com as suas inovações; mas quando a coisa afectava os seus interesses pessoais, mudavam de partido. Aliás, até deixaram de dar ouvidos a Halit Ayarci”. O Instituto não desapareceu porque as suas intenções se tornaram obsoletas, aliás, nem essas intenções seriam suficientes para que o Instituto tivesse sido formado em primeiro lugar, “Qual é a necessidade de um instituto como este quando é tão fácil saber que horas são?”, mas antes porque enquanto instituição burocrática se tornou demasiado ufana para repetir o contorcionismo filosófico que tornou possível a sua criação. O rei vai nu, os ratos fogem do porão e só resta fechar as portas. 

No século das utopias falidas, do Homem Novo que nunca chegou a sê-lo, quem soube estar atento aprendeu uma valiosa lição – a burocracia não precisa de princípios que não os da sua própria replicação e não pode parar de se reinventar. Para sobreviver, basta que nos lembremos da célebre máxima de Grouxo Marx – “Estes são os meus princípios, se não gostarem deles, tenho outros.”