Entre janeiro de 2017 e junho de 2020 foram distribuídos de forma manual mais de sete mil processos nos tribunais superiores, segundo um relatório que foi realizado por determinação do Conselho Superior da Magistratura (CSM). Este facto foi invocado esta semana pelo juiz Luís Vaz das Neves durante a sua defesa na audição pública do processo disciplinar que lhe foi movido pelo CSM na sequência da Operação Lex.
O antigo presidente do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), que desempenhou estas funções durante 11 anos, é acusado pelo Ministério Público (MP) da prática dos crimes de corrupção e abuso de poder, por suspeita de ter favorecido os arguidos Rui Rangel e José Veiga através da distribuição manual (e não eletrónica, por meios informáticos) de três processos. O MP considera que o desembargador violou e desrespeitou o princípio do juiz natural e ainda os deveres de isenção e imparcialidade.
Na audição da passada segunda-feira, Vaz das Neves citou aquele relatório do próprio CSM – intitulado ‘Procedimento Relativo à Distribuição Processual nos Tribunais Superiores’, sob o tema ‘Escrutínio dos processos sujeitos à distribuição manual/atribuição’ – para se defender no âmbito do processo disciplinar. O documento do Conselho conclui que, naquele período, houve milhares de processos distribuídos de forma manual nos tribunais superiores portugueses, incluindo o Supremo Tribunal de Justiça. E essas distribuições foram consideradas válidas, mesmo as que não foram acompanhadas por qualquer justificação.
«Curiosamente, todos os atos de gestão verificados naquele relatório sobre distribuições manuais/atribuição e que não tinham sustentação na lei – e são vários milhares, sendo que em alguns dos casos nem sequer era apresentada qualquer justificação para aquela forma de distribuição – foram todos considerados justificados e objeto de pronta deliberação pelo plenário do Conselho Superior da Magistratura, em 7 de julho de 2020, como dei conta no documento de análise a esse relatório, o qual se encontra junto a este processo disciplinar. Que, mais uma vez, foi ignorado [pelo inspetor extraordinário que lidera a investigação]», afirmou Vaz das Neves.
«No mais profundo de mim, sei que tudo fiz para honrar a justiça e a magistratura judicial. Pratiquei atos de gestão – obrigação que tinha como presidente do TRL – como tantos outros foram praticados por alguns senhores presidentes dos tribunais superiores, inclusive do Supremo Tribunal de Justiça e até pelo próprio CSM», acrescentou.
Três distribuições polémicas
O ex-presidente do TRL está ‘a braços’ com acusações de abuso de poder e de ter dado vantagem a terceiros. O MP considera que Luís Vaz das Neves viciou os sorteios eletrónicos de distribuição de recursos para apreciação pelos juízes do TRL em três ocasiões: os casos que envolviam o juiz Rui Rangel e eram relativos a recursos interpostos naquele tribunal pelo empresário de futebol José Veiga, pelo jornal Correio da Manhã e pelo empresário angolano Álvaro Sobrinho. Acusações que o juiz procurou ‘desmontar’, ponto por ponto, durante a audição pública.
Vaz das Neves justificou que o primeiro processo tenha sido atribuído diretamente pelos 17 desembargadores da 3.ª secção (cabendo por fim ao juiz Rui Gonçalves), por ter sentido na altura «uma genuína» preocupação com a possibilidade de um recurso de um dos arguidos e recorrente naquele processo [José Veiga] ir parar às mãos de Rui Rangel, uma vez que esse arguido foi quem «apoiou e custeou as despesas da candidatura à presidência do Benfica» deste juiz (que é agora o principal arguido da Operação Lex). Considerou, assim, que era «uma situação em que o prestígio do próprio tribunal estava em causa». As suas explicações não foram, porém, suficientes para convencer o inspetor nomeado pelo Conselho para instruir o inquérito disciplinar, que alega no seu relatório que as eleições no clube já tinham decorrido há dois meses e sete dias. «Esta análise e leitura dos factos por parte do senhor inspetor é que nos devem deixar a todos muito preocupados», salientou Vaz das Neves.
O segundo processo colocava frente a frente o Correio da Manhã e Rui Rangel, que enviou a Vaz das Neves uma SMS quando este estava no Brasil, em serviço, em que lhe pedia para «não ser maltratado pelos colegas». O processo só seria distribuído (novamente a Orlando Nascimento) três semanas após o regresso de Vaz das Neves a Portugal – um atraso explicado com a acumulação de trabalho acentuada pela ausência do país e, sobretudo, com a «delicadeza da situação», pois existiam por esta altura «graves incompatibilidades» que opunham Rui Rangel «à maior parte dos seus colegas no TRL», admitiu Vaz das Neves. Foi preciso mais tempo para «se encontrar uma solução que acautelasse o bom nome e o bom funcionamento, em serenidade, do tribunal e que proporcionasse um julgamento daquele recurso realizado também em total serenidade», explicou.
A terceira distribuição sob investigação é referente a um recurso entregue a Rui Rangel e que opunha Álvaro Sobrinho ao juiz Carlos Alexandre, que lhe arrestara vários imóveis, no âmbito de um inquérito do MP em que o empresário angolano é investigado por indícios de branqueamento de capitais. Face às sucessivas decisões da Relação favoráveis a Álvaro Sobrinho e que eram sucessivamente contrariadas por novas decisões de arresto do juiz (era a terceira vez que o dossiê subia ao TRL), Vaz das Neves decidiu «que o melhor seria distribuir agora aquele recurso apenas» pelos juízes da 9.ª secção, onde estava inserido Rangel, para «igualar a distribuição desta matéria, várias vezes repetida e sempre decidida no mesmo sentido por três secções criminais (3.ª, 5.ª e 9.ª), de forma a permitir uma mais ampla posição face ao que estava a acontecer com os sucessivos insucessos dos recursos». Rangel decidiria também a favor deste empresário, numa decisão que teve declaração de voto vencido do outro desembargador que apreciou o recurso.
Documentos desapareceram
Durante a audição, Vaz das Neves dirigiu duras críticas ao seu sucessor à frente do TRL, Orlando Nascimento, que acusou de ter permitido a destruição de documentos relativos à distribuição de processos, sem que antes tivesse havido a digitalização dos mesmos. Também o facto de Orlando Nascimento ter aceitado decidir em processos distribuído manualmente, com a sua total concordância, foi relevado. Nascimento foi ouvido à porta fechada e não prestou declarações aos jornalistas.
Outra matéria que faz parte do processo disciplinar de Vaz das Neves diz respeito ao facto de ter integrado tribunais arbitrais quando já estava jubilado, o que passou a ser proibido pelo CSM em 2016, embora aquela entidade não tenha dado conta publicamente dessa decisão. Vaz das Neves recorda que vários magistrados «de reconhecido mérito, impolutos e independentes» fizeram arbitragem «durante vários anos, como jubilados, e com o conhecimento e a não oposição por parte do CSM» e que, àquela data, «desconhecia que tinha havido alteração na posição do CSM sobre o exercício dessa atividade, tendo-a realizado à vista de todos, a escassos metros» do conselho.