Safo por Eugénio

Safo por Eugénio


Apaixonado pela escrita de Safo, Eugénio de Andrade traduziu a sua escassa obra, embora desconhecesse o grego. Valeu-se, por isso, de traduções noutras línguas e, sobretudo, da sua sensibilidade e do seu imenso domínio da língua de Camões.


Estamos num tempo em que, para compensar uma injustiça histórica, estão a ser lembradas, nalguns casos mesmo descobertas, notáveis contribuições das mulheres para a cultura. Por exemplo na música, a alemã Hildergarda Bingen (1098-1179), monja, mística e compositora, foi homenageada há poucos anos quando o seu nome foi dado a uma cratera lunar. Na pintura, a italiana Artemisia Gentileschi (1593-1656) teve uma grande exposição na National Gallery de Londres. Na ciência, a naturalista e artista alemã Maria Sibylla Merian (1647-1717), que trabalhou na América do Sul, foi há poucos anos homenageada na sua terra natal, Frankfurt am Main, com o nome de um centro de investigação em biodiversidade.

Na poesia, a autoria feminina consegue ir muito mais atrás no tempo. A autora mais antiga foi Enheduanna (2285-2250 a.C.), uma princesa, sacerdotisa e poetisa suméria. Porém, a autora mais conhecida da Antiguidade é, sem dúvida, Safo de Lesbos (c. 630 – c. 570 a.C.), que escreveu poesia lírica, isto é, poesia para ser cantada ao som da lira, que embora só parcialmente e de modo muito fragmentado, chegou até aos nossos dias. Acaba de sair na Assírio & Alvim o livro Poemas e Fragmentos de Safo, que essencialmente encerra toda a sua obra conhecida. Foi seu tradutor o grande poeta português Eugénio de Andrade (1923-2005), cuja obra completa Poesia e Prosa (1940-1986), em três volumes, foi publicada em 1987 pelo Círculo de Leitores. Apaixonado pela escrita de Safo, resolveu, como explica na Introdução (“Amada voz, rouxinol”) traduzi-la, apesar de não saber grego: valeu-se de traduções em inglês, francês, espanhol e italiano, que lista na bibliografia. E valeu-se acima de tudo da sua enorme sensibilidade poética e do seu imenso domínio da língua de Camões. Além da obra de Safo, Eugénio traduziu a poesia do espanhol Garcia Lorca e o grego Yiannis Ritsos e as cartas em francês da freira de Beja, Mariana Alcoforado, que, sendo prosa, não deixam de ter um tom poético,

A edição original do livro agora saído veio a lume na editora Limitar do Porto em 1974. Mas, dada a procura, tem havido outras edições. A que tenho em mãos, com uma bela capa dura e bom papel, é a reimpressão da segunda edição, de 1982, também na Limiar (saiu em 1995, portanto, ainda em vida do tradutor). Escreve Eugénio na sua Introdução: “Não é a primeira vez que o afirmo: esta mulher é uma das minhas fascinações mais antigas. Não admira, portanto, que ao longo da vida tenha ido coleccionando traduções da sua obra. E um dia não resisto: meti-me também eu a traduzi-la. A traduzi-la é uma maneira de falar. O que aí está, dada a minha ignorância do grego, foi-me dado a saber por outros olhos […] foram duas ou três semanas febris, como de criação pessoal se tratasse, e nunca um outro trabalho me deu prazer semelhante”. Conclui assim a sua introdução: “Tenho esperança que o perfume a violetas das tranças de Safo não esteja de todo ausente destes versos.” Não está, de todo.

Sabe-se muito pouco sobre Safo. Segundo um epigrama atribuído a Platão ela foi a décima das musas (tradicionalmente eram só nove). A sua vida está envolta em mistério e lenda. A sua obra perdeu-se quase por completo. Safo foi uma poetisa prolixa: terá escrito cerca de 10 000 linhas de poesia, mas só 650 sobreviveram De facto só há dois poemas que chegaram até nós na íntegra: “Ode a Afrodite”, que nos foi transmitido por Dionísio de Halicarnasso, o poema que abre o livro da Assírio & Alvim, e “Titónio”, que não está incluído, pois só foram descobertos no Egipto já neste século papiros que permitiram completá-lo. É uma pena que o tempo, esse “grande destruidor”, tenha corroído o seu testemunho poético. Contudo, a sua fama ficou: se Homero, personagem inexistente, era “o poeta”, Safo era “a poetisa”. Pouco se sabendo da sua vida, o facto mais notável é ter dirigido uma escola para raparigas, em Mitilene, na sua ilha de Lesbos, a terceira maior ilha grega, onde se aprendia não só poesia e filosofia como música e dança. Na Antiguidade grega a educação era só para homens (os Jogos Olímpicos também eram só para homens). As “companheiras” de Safo vinham de todo o lado da Grécia para aprenderem com ela. Há varias reminiscências dessa companhia feminina nos fragmentos, que Eugénio dedicadamente traduziu.

É curioso verificar as diferenças entre as versões eugenianas e as versões da grande classicista da Universidade de Coimbra Maria Helena Rocha Pereira, que talvez seja mais fiel ao original, mas que talvez não seja tão fiel às musas. Eugénio informa-nos que a sábia gostou das suas traduções, embora tenha feito alguns reparos. Mas vejamos alguns fragmentos de Safo segundo a pena de Eugénio. Uns falam apenas do grupo de mulheres em festas ou celebrações:

“[…] Vem, Cípris, a fronte cingida, e nas taças/ de oiro voluptuosamente entorna/ o caro vinho e a alegria.”

“Com os pés ligeiros, assim dançavam/ noutro tempo as raparigas de Creta/

à roda do altar; frescas eram/ e frágeis as flores de relva que pisavam”.

“Cheia brilha a lua, e as raparigas/ de pé como a vida de um altar…”

“Para alegria das minhas companheiras/ quero cantar agora uma canção.”

Mas outros vão um pouco mais longe no que diz respeito à proximidade entre as mulheres:

“Ah, pudesses tu dormir/ no peito da mais terna amiga” (talvez o poema mais homoerótico) .

“Pudesse esta noite durar/ não uma mas duas noites inteiras…”

“… abrasas-me…” (o poema mais curto)

“ ‘Virgindade, virgindade, para onde vais?’/ ‘A ti não voltarei, não voltarei jamais.’ ”

“De novo me torturas e quebras os membros, Eros, doce-amarga indomável serpente.”

“Eros me afecta o coração – assim nos montes / o vento sacode os carvalhos” (escolhido para a contracapa do livro).

“Desejo e ardo.”

“… Na noite, em vigília, cantam as raparigas, cantam a tua amada, de violetas tingida”

“… pegai na lira,/ cantai um seio de violetas.”

O nome lésbica vem da ilha de Lesbos e está associado a Safo (talvez também a palavra “safado”). Mas, de facto, não há a certeza de que Safo tenha sido lésbica. Como se vê, os poemas não são sexualmente explícitos, mas apenas sugestivos. Segundo os relatos da Antiguidade, Safo seria uma mulher heterossexual, a quem é atribuída alguma licenciosidade. Teria tido um filho. Há quem a considere amante de Alceu de Mitilene (c. 630 – c. 580 a. C., portanto seu conterrâneo e contemporâneo). Por vezes as obras dos dois estão reunidas, como na tradução que fez o poeta Albano Martins para a Imprensa Nacional – Casa da Moeda, na coleção “O essencial”, Alceu e Safo (1986), que se pode descarregar gratuitamente do site daquela editora. Só no período helenístico é que a suspeita de ligações eróticas de Safo a mulheres se começou a adensar. Na Idade Média a poetisa foi quase esquecida, embora Bocaccio lhe tenha feito referência. No romantismo, o inglês Alfred Tennyson foi influenciado por ela, em especial pela “Ode a Afrodite”. Mas foi no final do século XIX, no período dito decadentista, que Safo passou a ser considerada lésbica. Um dos autores que o fez foi o francês Charles Baudelaire (1821-1867, portanto nascido há 200 anos). Hoje Safo entrou na cultura popular, sendo uma figura de referência dos movimentos LGBT. Mas a controvérsia continua, entre os especialistas, sobre a sua sexualidade.

Há um livro curioso de um autor português pouco conhecido, Visconde de Vila Moura (1877-1935), de seu nome completo Bento de Oliveira Cardoso e Castro Guedes de Carvalho, publicado em Lisboa na Livraria Ferreira, em 1912, que se intitula Nova Safo. Há duas edições mais recentes, uma com o subtítulo “Tragédia estranha” com apresentação de Aníbal Fernandes e publicada pela Sistema Solar em 2017. E outra uma edição apenas em forma de livro electrónico (INDEX e-books), disponível na Amazon. A personagem principal é Maria Peregrina, uma minhota rica que vai estudar para Londres, onde descobre o amor sensual. Na introdução, a professora norte-americana de Literatura Portuguesa Ana M. Koblucka diz que é “a primeira e, de longe, a mais ambiciosa obra literária de Vila Moura […] uma obra literária quase esquecida, considerada como o único romance decadente da literatura portuguesa […] que merece ser resgatada do esquecimento por uma grande variedade de razões, não sendo uma das menores, a figura inédita (e única, mesmo no século seguinte da literatura lusófona) da sua protagonista, uma lésbica intelectualmente e sexualmente assertiva e uma poetisa genial.” O Visconde de Vila Moura teve uma vida política durante a monarquia, mas abandonou-a com a implantação da República, para se dedicar por inteiro à vida literária: pertenceu à Renascença Portuguesa, embora pouco tenha a ver com este movimento. Como não podia deixar de ser, as suas referências à homossexualidade originaram polémica na época.

Termino com um dos poemas que mais gosto do livro: “No ramo alto, alta no ramo/ mais alto, a maçã/ vermelha/ ali ficou esquecida. Esquecida? Não, em vão tentaram colhê-la.”