Índia. Eleições no inferno da covid-19, sob um calor dos diabos

Índia. Eleições no inferno da covid-19, sob um calor dos diabos


No meio de um verão sufocante, quando os mais pobres se aglomeram nos poucos espaços frescos, multidões juntaram-se na rua para comícios, alguns deles incentivados pelo próprio primeiro-ministro. Que saiu derrotado numas eleições cruciais.  


Enquanto a covid-19 deixava um rasto de morte na Índia, enchendo crematórios e esvaziando tanques de oxigénio, o primeiro-ministro Narendra Modi dedicou-se a consolidar o seu poder, promovendo enormes comícios, tentando tomar um dos últimos bastiões dos seus opositores, o estado de Bengala Ocidental. O tiro saiu-lhe pela culatra. O Partido do Povo Indiano (BJP), de Modi, apesar de todo o dinheiro e esforços investidos, sofreu uma rara derrota nas eleições estaduais, aparente rejeição do falhanço do Governo federal em enfrentar a pandemia.

Os números mostram um cenário dramático, com mais de 300 mil novos casos diários de covid-19 registados nos últimos 10 dias, chegando aos 400 mil casos este fim de semana, e quase 3700 mortes diárias. Poderia relativizar-se estes números, lembrando que a Índia é tão populosa, com quase 1,4 mil milhões de habitantes. Contudo, todos têm noção que boa parte das infeções indianas – e até das mortes, normalmente o melhor indicador quando falta testagem – ficam por registar.

“O maior buraco é na Índia rural”, lembrou o epidemiologista Prabhat Jha, da Universidade de Toronto. Por mais que a imagem da Índia, como vista nos meios de comunicação ocidentais, seja frequentemente a de um país de miséria e subdesenvolvimento, este falhanço é mais bizarro do que se poderia imaginar, argumentou o epidemiologista. “É um país que tem um programa espacial. Contar os mortos é uma função básica”, salientou, à Al Jazeera, “A Índia deveria estar a sair-se muito, muito melhor”.

Política e covid-19 Enquanto se contava votos em Bengala Ocidental, ao mesmo tempo que em Assam, Tamil Nadu, Kerala e Pondicherry, o estado entrava em confinamento, por ordem da líder do Executivo, Mamata Banerjee, uma feroz crítica de Modi, que impôs o fecho imediato de centros comerciais, ginásios, salões de beleza, restaurantes e bares, com proibição de reuniões de mais de 50 pessoas.

Não se notou muito – após comícios maciços durante as eleições, seguiram-se as celebrações da vitória do partido local de Banerjee (ver foto acima), que obteve 216 dos 294 lugares na assembleia estadual. No meio desta “guerra pela democracia indiana”, para impedir uma total hegemonia do BJP, como descreveu o analista Prashant Kishore, à BBC, as aglomerações de gente aos gritos, dos vários partidos, não terão ajudado nada a conter o coronavírus.

No entanto, talvez os fatores mais determinante para este pico de covid-19 tenham sido o Kumbh Mela – maior festival religioso do mundo, quando uns 150 milhões de fiéis se banharam no rio Ganges, em plena segunda vaga, algo que Modi é acusado de ter permitido para não enfurecer a sua base nacionalista hindu, tão próximo das eleições estaduais – ou até o calor infernal que costuma assomar a Índia nesta época do ano.

É que, enquanto na Europa se nota um maior impacto da covid-19 no inverno, talvez porque mais pessoas se juntem em espaços fechados para fugir ao frio, na Índia é exatamente o contrário. “Medidas de saúde pública para a prevenção de doenças e mortalidade durante ondas de calor – como sair de casa para espaços públicos mais frescos, como centros comerciais ou jardins, cuidados médicos ambulatórios – podem ser impossíveis ou contradizer o distanciamento social”, notava um artigo na Lancet, publicado o verão passado, alertando para o risco enfrentado por “pessoas que vivem em casas lotadas, quentes e mal ventiladas, moradores pobres de bairros de lata, pessoas com poucas opções de auto-quarentena ou de manter os níveis de higiene necessários”.

De facto, quando olhamos para os novos casos na Índia, o epicentro é o estado de Maharashtra, onde fica Bombaim, que tem a maior favela do planeta, Dharavi, lar de mais de um milhão de pessoas. A região sofreu ondas de calor em março e abril – nos últimos dias, a chegada das chuvas das monções tem baixado as temperaturas, podendo, ainda assim, trazer catástrofes como cheias para agravar ainda mais a situação.

Já na capital, Nova Deli, o calor continua pesado, com uma temperatura média próxima dos 40ºC e baixa humidade, enquanto muitos habitantes sufocam, com falta de oxigénio engarrafado e a covid-19 a destruir-lhes os pulmões. “Estou muito assustado”, contou Sadanand Patel, de 30 anos, a partir de uma cama de hospital, rodeado por 30 pacientes em agonia, com poucos médicos à vista. Lá fora, a sua mulher, Goldi, que está grávida de sete meses, ia de centro de saúde em centro de saúde, a mendigar oxigénio, como tantos outros. “Se a minha saúde ficar crítica, não creio que me consigam salvar”, lamentou Patel, à CNN.

A tragédia da família Patel não é, nem de perto nem de longe, caso único. Vários analistas estimam que os números reais de vítimas da covid-19 na Índia possam ser até mais de 30 vezes superior aos oficiais. Seria o equivalente a uns assombrosos 500 milhões de infeções, mais de três vezes o número total de casos registados a nível mundial.

À luz desta mortandade, a decisão de Modi de levantar as restrições em setembro – após tê-las imposto de um momento para o outro, em março, deixando multidões de trabalhadores presos nas cidades, sem maneira de regressar às regiões rurais de onde vinham – e declarar vitória contra a covid-19 parece particularmente desastrosa. Juntando-o aos comícios que encabeçou, não espanta que tenha começado a ser apelidado de primeiro-ministro “superspreader” nas redes sociais.

Entretanto, o Governo indiano já pediu ao Twitter que apagasse todos os posts do género, tendo o gigante tecnológico cumprido, avançou a BuzzFeed.