Portugal comemorou esta semana 47 anos do regime da liberdade. Em 2022, o número de anos vividos pelos portugueses em democracia igualará pela primeira vez aqueles passados sob o manto de chumbo da ditadura. É uma importante viragem simbólica que deve motivar-nos a uma reflexão serena. Abril levou-nos mais além no plano económico, nos direitos sociais, na concretização europeia, na escolarização, na saúde universal e nas liberdades civis. Todavia, reféns de velhos vícios, ficámos aquém do sonho de maior prosperidade e igualdade, de maior justiça e solidariedade. Como cantava Sérgio Godinho, só há a Liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde, educação. Quarenta e sete anos depois, não temos liberdade a sério. Mas somos um quadro muito mais vivo e vibrante do que aquele pintado pelas cassandras. O que não nos deve impedir de reconhecer um facto simples: o país imaginado em Abril não se cumpriu. Ainda.
E digo “ainda” porque só depende de cada um de nós concretizar essa visão de um país que funcione para todos. Um país em que cada português tenha uma justa oportunidade para concretizar os seus projetos de vida. Sem ser esmagado pela burocracia, sem ver os seus direitos diminuídos, sem ser reduzido a um número no fisco. Um país em que as instituições funcionam (e funcionam a tempo e horas), em que os poderes se medeiam e contrabalançam, em que a sociedade civil é forte e acutilante. Sem tentação de controlo dos privados, sem tomadas de assalto do aparelho de Estado, sem tentações de instrumentalização e infantilização do povo. Esse sonho de um país normal, europeu e próspero, capaz de abrir novos ciclos de inovação e riqueza, está ao nosso alcance. Mas temos de ser nós, cada um de nós, a fazer a sua parte.
Olhar para o futuro da nação, e da democracia portuguesa, implica necessariamente partir as pedras colocadas no nosso caminho.
A mais evidente de todas é a pandemia. É óbvio que a covid-19 foi uma aliada conjuntural dos regimes totalitários e autocráticos. Homens fortes, dos hemisférios do norte e do sul, sentiram que a pandemia lhes ofereceu uma oportunidade para reforçar os seus poderes absolutos. Se o melhor remédio contra o vírus é a proibição, ou isolamento e o confinamento, ninguém consegue melhores resultados do que um autocrata a limitar a liberdade.
A natureza anti-liberal da pandemia trouxe este desafio colossal às sociedades livres. Em todas as latitudes, continuamos a lidar com supressão de liberdades e com restrições sociais inéditas desde o pós-guerra. Talvez não sejamos ainda capazes de antever os efeitos corrosivos deste tempo. Mais de um ano de isolamento e confinamento tem de ter efeitos no nosso entendimento das liberdades e no uso que delas fazemos. Creio, do mesmo modo, que sofreremos as consequências do aprofundamento da digitalização e da obrigatoriedade do teletrabalho. Suspeito que a glorificação do trabalho não presencial tem sido claramente exagerada. Ainda que circunstancialmente necessário e com efeitos positivos ao nível da mobilidade e da gestão do tempo, o teletrabalho obrigou-nos a entrar num caminho sem retorno em que cada um de nós é mais uma ilha do que parte de um continente maior. A consequência da atomização individual é o deslaçamento comunitário. Sem interação, sem confrontação ou cooperação física, sem sentido de comunidade não há confiança. E sem confiança não há democracias plenas.
Muitos têm olhado para a emergência dos extremismos como uma consequência da pandemia. É verdade que alguns historiadores têm feito essa ligação – como os da Reserva Federal Americana – inclusivamente estabelecendo um efeito causal entre a gripe espanhola e a ascensão do nazismo na Alemanha (os estados com mais vitimas mortais foram os que mais votaram no Partido Nacional Socialista). Não creio que a covid-19 seja, por esta via, uma ameaça à democracia. Bem pelo contrário, se há facto que emergiu com toda a clareza foi incapacidade total dos líderes populistas e extremistas, à direita e à esquerda, de gerir o bem comum em circunstâncias de extrema exigência. O seu falhanço foi clamoroso. E o povo sabe isso.
A verdadeira ameaça à democracia vem na onda formada na cauda da crise de saúde pública: a outra pandemia, a social. Enquanto a covid-19 não distinguiu classes ou credos, géneros ou raças, atacou homogeneamente, a pandemia social é seletiva. Salga as feridas já abertas dentro do regime democrático. Prejudica os mais frágeis. Exclui os mais necessitados. Penaliza os mais dependentes. A pandemia social está a abrir, a cavar mais fundo as clivagens dos nossos sistemas económicos e sociais.
Dar força à democracia, cumprir Abril, exige um esforço coletivo na ultrapassagem da tempestade perfeita que tocou às nossas gerações.
Em 1974, poucos derrubaram a ditadura para que a liberdade fosse património de muitos.
Em 2021, muitos não somos demais para que a pandemia do medo não volte a ser o projeto de poucos.
Em 1974, a revolução fez-se com cravos. Em 2021, a revolução faz-se com vacinas. Nuns e noutras, mora simbolicamente a nossa liberdade.
Hoje, como há 47 anos, a revolução somos nós.
Escreve à quarta-feira