Os ganhos do céu levam o seu tempo, e demoram muitas vezes a recompor-se depois de uma terrível queda. Seja como for, é preciso paciência. Se os anjos não se deixam caçar em armadilhas para passarinhos, a pressa de mudar o mundo, sem um firme intuito a guiá-la, não passa muitas vezes de um capricho. E a obsessão de justiça pode tornar-se uma monstruosidade como outra qualquer. Hoje, em vez de consumidores de épocas, desses que carregavam em si compêndios fabulosos, estimulando reflexos encantados nalgum resto de espelho, vastas reproduções animadas, em vez desses seres que, mesmo com o terror, não apagavam a admiração, temos viciados em sofrimento, esses que a todo o momento cospem sobre os outros as ruidosas catástrofes gerais, como se a indignidade destas, sentida por eles, oferecesse prova da sua infinita compaixão e sensibilidade. São esses monstros sensíveis que se exasperam em capturar uma dor sem nome ilusoriamente multiplicada por muitos espelhos. Bernard Shaw, no seu “Guide to Socialism”, tinha uma lição importante a dar aos deste tempo: “O que tu podes padecer é o máximo que se pode padecer na terra. Se morreres de inanição sofrerás toda a inanição que houve ou que haverá. Se dez mil pessoas morrerem contigo, a sua participação na tua sorte não fará que tenhas dez mil vezes mais fome nem multiplicará por dez mil o tempo em que agonizares. Não te deixes angustiar pela horrenda soma dos sofrimentos humanos; tal soma não existe. Nem a pobreza nem a dor são acumuláveis.”
Isto vem a propósito das controvérsias que se sucedem, hoje, a um ritmo delirante fervendo na água das infinitas suscetibilidades, essas tensões mais ou menos frívolas que vão servindo para manter sempre cheio o refeitório e encher as malgas daqueles que se reúnem com um vago sentimento de impotência e um desejo igualmente vago de retaliação, formando brigadas, patrulhas que fazem a vigilância cultural em busca de agressões mais ou menos irrelevantes, num ensejo desaustinado de corrigir todos os males deste mundo, apagar toda a dor provocada pelos desequilíbrios de poder. Por trás de todas estas manifestações, de todos estes sintomas de uma ânsia de indignação implacável não conseguimos evitar a sensação de que se esconde ali uma obsessão voyeurista, carnavalesca ou até perversa. Um teatro em que os bons sentimentos usam máscaras terríveis e que, em nome de uma suposta purga, se permitem esse zelo vingativo e odioso que apenas as multidões estão em condições de praticar.
O meio editorial norte-americano tem sido bastante fértil na encenação destas caçadas aos gambozinos, com movimentações e ofensivas a terem lugar nos pântanos identitários. E dentro deste sector, é o campo da ficção para jovens adultos que tem providenciado mais drama e reviravoltas, ao ponto de, no mês passado, várias publicações terem noticiado a forma como o romance de estreia de Kosovo Jackson, um jovem autor negro, que tinha já colhido ventos bastante favoráveis e estava prestes a deixar a fase de pré-publicação para lançar a sua investida nos escaparates, entrou na lista das baixas sem chegar a pôr o pé no campo de batalha. “A Place for Wolves” devia ter chegado às livrarias a 26 de março, mas Jackson preferiu devolvê-lo à gaveta, a esse limbo a que antes todos os autores queriam escapar. A sinopse do romance falava de dois rapazes americanos que se apaixonavam tendo como cenário a guerra no Kosovo, e o livro tinha já feito a ronda pelas mesas dos críticos, e não lhe faltavam apreciações recomendando a sua leitura, além do selo do hashtag #ownvoices, que é atribuído às obras de ficção em que os personagens partilham com o autor uma identidade marginalizada. Além de negro, Kosovo Jackson é também homossexual. Esta obra cujos elementos narrativos mais do que confecionados seguindo à regra todas as precauções quanto a alergias e outras limitações da dieta identitária, parece ter sido elaborada em laboratório, mas nem isso a livrou de um exame mais duro, o qual foi publicado no site Goodreads, e que contesta a forma como Jackson representa não apenas aquele conflito, mas, sobretudo, o modo como retrata os muçulmanos. Essa crítica foi o que bastou para torpedear o lançamento há muito aguardado de uma das vozes mais activas naquela comunidade, isto depois de os seus ecos se propagarem através do Twitter, com o jovem autor a sentir a pressão para vir pedir desculpas, o que fez, sem nem dar a hipótese ao livro de ser lido e de se defender a si mesmo. Num comunicado dirigido “à comunidade dos leitores”, Jackson publicou naquela rede social uma carta em que admite ter falhado por não ter sido capaz de “compreender totalmente as pessoas e o conflito” que serviu de pano de fundo para a acção do romance. “Prestei um mau serviço à história e às pessoas que sofreram aqueles eventos.” Mas se Jackson estava particularmente vulnerável a este tipo de ataques isso deve-se ao facto de se ter afirmado como líder de patrulha nestas acções de vigilância, e a decisão de dar baixa daquele que seria o seu livro de estreia, isto no final de fevereiro passado, é apenas mais um capítulo num processo maníaco que tem garantido que muitas obras literárias nem chegam a ser lidas. Assim, semanas antes, a escritora Amélie Wen Zhao sentiu-se coagida a dar baixa também de um romance em fase de pré-publicação isto depois de uma campanha avassaladora que vinha denunciar a violação desses apertados pré-requisitos da tabela identitária. Tratava-se de uma distopia com fortes elementos fantásticos. Com o título “Blood Heir”, a acção decorria num império que reduzia à condição de escravos minorias com poderes mágicos, e um dos elementos destacados na promoção da obra sublinhava a forma como, naquele mundo, “a opressão era cega ao tom de pele”. O tema era um convite aberto a qualquer um desses críticos com pressa de quebrar o jarrão literário e deixar às moscas a apreciação sobre o que dizem as flores enquanto comentário global ao fenómeno da opressão segundo as grelhas dos estudos pós-coloniais. Nem esse esboço bastante rudimentar, servindo-se de uma paleta de cores fantásticas, impediu o romance de ser emboscado e denunciado, supostamente por apagar o sofrimento dos afro-americanos. E a objecção central e à volta da qual foi erigido o processo nasceu de uma cena em que uma miúda (aparentemente negra) se sacrificava morrendo nos braços de um personagem (aparentemente branco). Foi o que bastou para que os deuses superiores caíssem sobre este deus subalterno, e, de repente, a jovem autora que tinha emigrado da China aos 18 anos, e que tinha tido a veleidade de assumir que o seu livro se baseava “na epidemia de trabalho forçado e tráfico humano prevalente em muitas indústrias do continente asiático, incluindo no meu país natal”, estava sujeita a ser envergonhada publicamente pela insensibilidade na representação do sofrimento de outra cor. Assim, tal como Jackson, a partir do momento em que foi singularizada, Zhao também não teve escolha senão a de publicar também o seu comunicado a retratar-se: “Nunca tive intenção de causar qualquer dano a qualquer leitor desta valiosa comunidade, particularmente àqueles sobre os quais pretendo escrever e dar voz e poder. Assim sendo, pedi ao meu editor que não desse seguimento à publicação de ‘Blood Heir’ no momento actual.”
Este quadro demonstra a impossibilidade de penetrar no esquema divino do universo desenhado por estas zelosas comunidades que participam num infernal bloqueio de qualquer tentação de representar o mundo, e vem assim cortar qualquer cabeça, denunciando a execução deficiente de um romance, esquecendo que isso significa matar o impulso criativo, pois não há nada mais dissuasor para a arte do que impor-lhe esse regime apertado do dicionário de Deus, quando todo o génio só pode planear esquemas humanos, e deve aceitar a condição provisória destes. E o lado mais irónico desta controvérsia é o facto de Jackson e Zhao serem ambos membros da mesma comunidade. A um tempo carcereiros e prisioneiros nessa colónia da literatura que se dirige a um público jovem, participando activamente no grupo do Facebook “the Novel Nineteens”. E Jackson foi dos elementos que soprou com mais força o trombone na hora de denunciar o romance de Zhao. De resto, ostentava orgulhosamente uma série de distintivos na sua farda enquanto membro destacado da hierarquia que faz cumprir o código de honra identitário. Contudo, e apesar de ter trabalhado para cinco grandes editoras como “leitor sensível” no que toca a expor as minas que cobrem aquele território, vetando os manuscritos em que os personagens de comunidades marginalizadas não eram representados de forma satisfatória, isso não o impediu de ver os papéis inverterem-se, sendo agora “demonizado pela comunidade que até ali ele tinha ajudado a policiar”, como escreveu Ruth Graham na revista “Slate”.
Estes dois casos são apenas exemplos, os mais recentes, de uma longa lista de romances cuja publicação tem sido adiada ou cancelada em resultado deste esforço de saneamento das limitações que são de esperar sempre que um autor retrata uma realidade hoje apresentada como um puzzle, e construído por infindáveis comissões num número sem fim de programas académicos. É como se a representação parcial, esse esquema humano, essa visão provisória, fosse submetida a um exame pernicioso o qual, em nome do sofrimento das vítimas históricas, mesmo que estas sejam apenas hipotéticas, anula a possibilidade de o indivíduo se servir do artifício literário para compor, com noções muitas vezes vagas e até contraditórias, uma engenhosa urdidura que permita transmitir uma experiência humana, certamente limitada, mas não menos preciosa por isso. O indivíduo já não é o bastante, e a própria ideia de universalidade torna-se, assim, um horizonte que está sob ataque. O que parece ser um programa de correcção de certos vícios de percepção, os quais perpetuam formas de opressão e humilhação de algumas minorias, revela-se, deste modo, uma utopia negativa, uma distorção que ataca a própria convicção do homem quanto à sua capacidade de fazer um uso sumptuoso da linguagem para realizar essa operação mágica que lhe permite produzir cortes e variações a partir da matéria do mundo, uma virtude tão bem descrita por Chesterton: “O homem sabe que há na alma matizes mais desconcertantes, mais inumeráveis e mais anónimos do que as cores de uma selva outonal. No entanto, julga que esses matizes, em todas as suas fusões e transformações, são representáveis com precisão por um mecanismo arbitrário de grunhidos e de guinchos. Julga que dentro de uma bolsa saem realmente ruídos que significam todos os mistérios da memória e todas as agonias do desejo.”
Ora, atacando esta virtude, na verdade, rebaixam-se as possibilidades da literatura, a audácia dessa operação mágica, exercida da forma mais rudimentar, com os meios mais elementares ao dispor do génio humano, e dá-se um passo decisivo para atacar esta hipótese final de revolta, esta forma de agência dos desamparados, daqueles que, isoladamente, aperfeiçoam este talento demoníaco, esta forma de superar a fragilidade da mais desolada das minorias, a razão de um contra todos, a desse ser que se vira para a linguagem, para as palavras e as suas infinitas combinações de forma a mitigar a sua negra sede de beber um reflexo admirável e digno nas poças de água de outro mundo. Só através desta forma de aperfeiçoamento do intelecto um homem está em condições de criar uma consciência que, de longe, lança o seu inferno íntimo como uma investida sobre o desgraçado e hipócrita paraíso das comunidades que ditam como o mundo é ou deve ser.
De longe, confiado ao ínfimo aparato da escrita, um ser investe com todas as suas forças, testando os limites da representação e provocando “uma nuvem de flechas como uma cúpula formada/ sobre a cabeça dos soldados e um alto nevoeiro”. É a ofensiva de um só, maturando até ganhar o eco de um exército invasor, impondo uma suspensão, um tempo sincronizado com o do seu próprio coração, e “então depois de haver tudo queimado como se queima um deserto de restolho/ por sua vez ele experimentará a fuga”. Traduzidos por Herberto Helder, os versos são de Lycophron, dito “o Obscuro”. Este fragmento que nos foi dado a ler como epígrafe da reedição da obra “Apresentação do Rosto”, começa por nos dizer: “e tudo será devorado pelo exército que avança em força/ todas as árvores de fruto até ao duplo tecido da sua casca/ todas as bagas selvagens que a fecunda montanha faz crescer…” É uma visão poderosa que exprime essa impotência que se revolta por dentro de si mesma, se revira, volta do avesso, e se lança sobre o mundo, nascendo de uma crença nos poderes da linguagem, na convicção de que esta é mais forte ainda do que os laços que ligam os mestres aos servos, e que não há, no fim de contas, outra forma mais eficaz de se assumir uma identidade superior do que através desta operação, a qual permite ao indivíduo transcender os limites de classe, raça ou do próprio ego, como nos diz Joseph Brodsky, num texto a propósito de Derek Walcott. “Isto é simplesmente uma questão de senso comum”, adianta, “e é também o mais ressonante e lúcido programa de mudança social que existe ao nosso dispor”. Afinal, que outra arte pode ser mais democrática do que esta, que outro poder está aí adormecido exigindo, para ser despertado, apenas que o indivíduo tenha a ousadia de se rebelar, de contar o seu lado, extrair à imaginação um antídoto para o veneno das visões gerais, um parafuso que permite apertar a realidade de tal modo que esta confesse as suas dúvidas, os seus receios e fraquezas.