Isabelle Eberhardt. A feminilidade islâmica

Isabelle Eberhardt. A feminilidade islâmica


Em cada livro de Isabelle Eberhardt, o Oriente desfila viril, fervilhante e voluptuoso aos nossos olhos. É esse Oriente esplêndido, mas cruel, fatalista, vertiginosamente sedutor, que a escritora através dos seus contos, diários ou romances nos soube salmodiar.


Na sua literatura há um certo tom salmódico, extasiado, profético, que a levou a escrever “o povo de Israel não é, de facto, igual aos outros nem os seus destinos são iguais aos dos outros povos da terra. Nem melhores nem piores: diferentes.”

O destino de Eberhardt também não seria igual ao de nenhuma outra mulher, ao de nenhuma outra viajante europeia, escritora ou jornalista e o seu destino não seria nem melhor, nem pior, seria inigualável.
 
Correspondente de vários jornais e da La Revue Blanche, onde escrevia artigos sobre as suas viagens e a sua vida no Islão, Isabelle foi acima de tudo uma aventureira fora de série. Aventureira, não por ter cruzado fronteiras e religiões praticamente intransponíveis à comum das mortais da sua época, mas por tê-las vertido e resgatado em testemunhos extremamente poéticos e perturbadores.   

“Sou apenas uma extravagante, uma sonhadora com o desejo de viver longe do mundo, de viver uma vida livre e nómada para contar o que vê à frente do triste esplendor do Sara, conhecer, talvez, o melancólico e enfeitiçado estremecimento.”

Debruçarmo-nos sobre qualquer livro seu é como subir ao cume da colina da Casbah, e de lá do alto, esperar pela hora do crepúsculo e “compreender esta singular natureza da terra africana, os seus tristes esplendores e os seus misteriosos encantamentos.”

Pela sua melancolia acerbada, pela sua arrepiante aflição, pelo seu martírio, pela corroída tristeza, pelos tons multicolores do seu tédio, pelo escarlate de uma solidão corrosiva, as suas narrativas mergulham nas mais profundas correntezas do desespero humano.

Em cada descrição macilenta ou inundada de esperança, em cada desabafo, miragem ou abandono, em cada quezília, sentimento de vingança ou em cada baixar de armas, o leitor deixar-se-á tomar mais do que pelos odores das especiarias, do benjoim e do âmbar, das águas do golfo ou do som dos Djuak (flauta de caniço), pela sua atração pelo abismo islâmico. Um abismo pronto também ele a atrair-nos e a exercer fascínio sobre nós, sobre os nossos mais perversos, animalescos e secretos impulsos.
 
A Sistema Solar, tem traduzidos para português dois livros seus. O primeiro editado em 2013, Histórias da Areia, que reúne uma série de contos, e o segundo, Rakhil editado em 2018. Os dois livros contam com a seleção, tradução e apresentação de Aníbal Fernandes.

Rakhil é um romance que, não tendo chegado a ser concluído pela própria, que entretanto morreu soterrada na povoação argelina de Ain Safra, foi finalizado pelo seu amigo, editor e jornalista Vitor Barrucand, redator principal do semanário franco-árabe Akhbar.
 
Mas, afinal, quem era esta mulher extraordinária, desbravadora das dunas, que se vestia de homem, se embebedava com os beduínos, frequentava mesquitas, fumava kif com os vagabundos, percorria os cemitérios durante a noite, frequentava os bordéis infestados de kababs (prostitutas) e haram (pecado)? Quem era essa mulher que se fazia passar por um soldado, se deitava com muçulmanos e judeus, se excitava mais do que com o francês, com a língua árabe, frequentava cafés duvidosos, sobreviveu a um atentado de sabre, fez parte de uma seita islâmica, chegou a ser deportada da Argélia pelos colonizadores franceses, e vivia no limiar do insaciável?

Quem era esta mulher que como nenhuma outra escritora da sua geração, soube aureolar o majestoso e cativante Oriente numa prosa sedutora e transparente? 
 
Nascida a 17 de fevereiro de 1877, Isabelle Eberhardt teve desde sempre uma vida trágica. A sua mãe, Nathalie, era uma aristocrata russa casada com o General Moerder, um homem quarenta anos mais velho. Nathalie, de um momento para o outro decide fugir da Rússia com o perceptor dos seus três filhos, o anarquista Alexandre Trophimovski. Nove meses depois da fuga nasce-lhe outro filho, Augustin, que ainda carregará o apelido Moerder. Isabelle nascerá cinco anos depois, longe do país dos Czares e será dos cinco filhos a única a não ter o mesmo sobrenome, já que o seu suposto pai, o rígido perceptor, nunca a perfilhou. Esta paternidade foi um tema que toda a vida a assombrou, assim como o ambiente disfuncional que reinava na sua desestruturada família. Sabemos de tudo isso pelas cartas que Isabelle escreveu, compiladas no livro Écrit Intimes (Escritas Íntimas) ou nos diários que foram encontrados depois da sua morte.

As cinco crianças, Nathalie e o perceptor habitavam na terrorífica Ville Neuve nos arredores de Genebra. O seu irmão mais próximo foi Augustin, mas também ele, ao encontro de todos os elementos da família, teve um fim fatídico. Aliás, não houve nenhum que tivesse escapado às garras inclementes da tragédia.
 
Aos vinte anos na companhia da mãe, Isabelle parte para o Norte de África e adopta o nome de Mahmoud. Com este nome e as indumentárias masculinas facilmente se infiltra desapercebida entre os homens e passa a integrar a ordem sufi mais consagrada, os Qadirya.
 
Em Histórias de Mulheres, Rosa Montero escreveu “A sexualidade de Isabelle despertou sempre uma curiosidade mórbida. Parece que só se excitava quando se vestia de rapaz, embora também pareça que só se sentia atraída por homens: gostava imenso de visitar bordéis com outros homens, mas ela só observava. Foi muito promiscua e no final da sua vida teve sífilis (e paludismo). Mas também foi muito espiritual. Vivia uma vida dupla e cindida, de manhã pura e ascética, sempre na perseguição da verdade mística e da beleza literária; e à noite obscura e tortuosa.”
 
Mas Eberhardt foi muito mais do que uma mulher que trajava roupas de homem. Foi alguém que escavou limites, que extravasou, que imprimiu excessos, que se pautou pelo trilho argiloso do rebelde e do melancólico.
 
No texto de apresentação de Aníbal Fernandes lemos que “nas suas histórias reconhecem-se as toadas do contador árabe, mas com mulheres diferentes das que essa tradição nos deixou. As mulheres de Isabelle Eberhardt sofrem com um desejo de liberdade no amor que a cultura islâmica proíbe, vivem amores nómadas dramáticos quando não transcendidos pela fé; os seus homens europeus sofrem o feitiço oculto no infinito das dunas e na solidão reveladora do «outro», místico e esotérico, transcendido com o esplendor magnífico dos elementos, vivem embriagados por um amor que opõe o Oriente ao Ocidente, e por ambos reprovado. Muitos traços destas personagens masculinas e femininas podem ser-lhe atribuídos, podem ser consideradas habitantes dos painéis de uma fragmentada e romanceada autobiografia raras vezes decidida a assumir-se como um explicito «eu». Isabelle Eberhardt, com uma prosa generosamente adjectivada que o calor do seu olhar exige, apaixonada por ruídos, cheiros, cores, sabores, ainda assim não deixa de fazer pesar nesta festa e nesta imemorial beleza uma presença de morte.”
 
Este parágrafo consegue ser transversal a qualquer livro seu. Na verdade, em todos eles, quer nos dois acima citados, ou em In the Shadow of Islam ou nos Diários de Uma Nómada, assistimos de costas voltadas para uma Europa encardida e taciturna, ao mesmo desejo de liberdade, ao mesmo assombro pelo indefinível, pelo êxtase.
Mas, se em todos os seus textos somos capazes de ouvir as mesmas toadas dos contadores árabes, dos imãs, aquilo que mais surpreenderá o leitor é o fenómeno da conversão. E não interessa que essa seja uma conversão a Maomé, a Moisés ou a Jesus, porque a conversão dos seus personagens acaba sempre por ser a conversão ao incomensurável, ao absoluto, ao afastamento total, simplesmente porque “o acto de nos afastarmos é o mais corajoso e o mais belo.” Aliás, o afastamento em si, poderá ser também o mais incompreendido, angustiante, o mais doloroso, mas é certamente por isso, que em todas as suas narrativas as personagens somam personalidades de uma profundidade extraordinária, quase febril.

Se nos demorarmos na maioria das personagens femininas de Erberhardt notamos em todas elas, os mesmos denominadores comuns. A ânsia de liberdade, o desregramento, a impaciência. Acima de tudo são mulheres que não se contentam com a vida que têm. São mulheres que sonham, que envolvidas em véus de uma suposta fidelidade, não se importam em partilhar o mesmo homem (caso da negra Bubu, Chelbia e Mannubia no romance Rakhil) ou ainda pelo contrário, são mulheres que uma vez apaixonadas, se manterão apaixonadas para o resto dos seus dias (caso de Tatani do conto O Legionário).  Independentemente de qualquer percurso, de qualquer fé ou de qualquer idealização, Eberhardt desvirgina como que maquinalmente o pressuposto feminino oriental.
 
As suas mulheres, na maioria são pastoras, viúvas, divorciadas, mulheres carregadas de ódio, velhas, feiticeiras, criadas paupérrimas ou prostitutas. Claro que também há mulheres bonitas, puras, basta recordar Saadia, do conto O Anarquista, mas mesmo esta, embora bonita era profundamente triste, solitária, inquieta. Vejamos como em todas as suas descrições há vincadamente uma adjectivação dolorida que nos consome. São adjectivos que nos parecem gradualmente desmaiar. “Saadia era bela, com um rosto oval de cor escura e quente todo impregnado com a tristeza grave dos seus olhos. Tinha uma vida modesta na casa da sua mãe e era evitada, apesar de bela, pelos supersticiosos ruaras. (…) Um dia para conhecê-la mais a fundo Andrei quis saber o que tinha feito morrer o seu marido. – Chegada a hora, não há quem saiba retarda-la num tempo igual ao de uma piscadela de olho… E quem comete a iniquidade, merece a cólera de Deus. Nos olhos de Saadia passou uma sombra.” Mas essa sombra não passará apenas nos olhos de Saadia, mas sim em todos os seus personagens femininos. Acontece que ao mesmo tempo que as ensombra, também as fortalece e ilumina.
 
Notemos por exemplo, como Rakhil era forte, “obstinada e dura, fechada dentro de si própria. O seu olhar tinha-se feito impenetrável, triste e sem doçura, como se escondesse temíveis mistérios. (…) Rakhil era tirânica, exigente, e de uma dureza que parecia estranha naquela formosa criança com voz doce, harmoniosa, e grandes olhos de firmamento azul.” Ou foquemo-nos em A Zaúia, talvez o seu conto mais autobiográfico. Neste curto texto lemos num diálogo como prova dessa fortaleza feminina inabalável “Era vulgar dizer-me: – Como a tua natureza é mais viril do que a minha, e como és bem mais feita para as duras e implacáveis batalhas da vida… Espantava-se com a minha violência. Nessa altura eu era muito nova, não chegava a ter vinte anos, e o vulcão que se descobriu desde esses dias com cinzas não tem as erupções que antigamente ferviam com terrível violência, com torrentes de lava ardente que arrastavam todo o meu ser para os extremos…”.

É, indubitavelmente, esta natureza violenta que se espelhou sem pudor nas inúmeras mulheres de extremos que percorrem o seu imaginário. Todas, sem exceção, são mulheres de extremos, mas se analisarmos estes contos reunidos em Histórias de Areia, talvez seja Taalith, a jovem viúva que dá o nome ao conto, aquela que mais sobressai pelo extremismo.
 
Taalith tinha um casamento feliz e estável com Rezki u Said, um belo caçador, que durante uma noite é assassinado por um grupo de ladrões. Meses mais tarde a sua mãe, Zuína, casa-se com um mercador que as leva para Argel e lá, a jovem viúva vê-se forçada a contrair matrimónio com o velho sócio do padrasto. Revoltada, depois de ser cruelmente chantageada e torturada, chegou o dia em que comunicou ao padrasto “-Se assim está escrito, obedecerei… E depois, cada vez mais silenciosa e pálida, esperou. Era a véspera do dia em que as festas nupciais deviam começar. A noite tinha a pouco e pouco adormentado os ruídos das pessoas humildes da casa. Taalith e Zuína estavam sozinhas. – Mãe- disse Taalith com um estranho sorriso – quero que me vistas e enfeites como vou estar amanhã, para ver se apesar de tudo ficarei bela, eu, com os olhos belos à custa de tanto chorar!”

A mãe, radiante por vê-la mudar radicalmente de atitude vestiu-a com as finas camisas de gaze com lantejoulas douradas, os lenços furta-cores, as ganduras de seda clara, os colares de vidro, o gorzal cinzelado, e por fim “o colar de pasta odorífera e endurecida que lhe envolvia o corpo num aroma quente”. Mas Taaliht à mínima oportunidade suicida-se. Afinal nada estava escrito, afinal não há Corão ou Bíblia que salve as mulheres, só elas se podem salvar a si próprias, pensar por si próprias, valerem-se a si próprias, comungarem a sua própria cura ou veneno. Afinal são estas as mulheres de Eberhardt. As que desobedecendo ao que lhes estava predestinado, nunca chegarão a conhecer o meio termo das emoções, a molhar os lábios no copo meio cheio, ou meio vazio do amor.
 
Nos seus livros, atravessamos ora ensolarados ora a medo um Oriente bravio e trágico, um Oriente tribal, inflamado, mas ainda assim, apetecível e tentador. E embalados pelo seu tom fatalista, espesso, por vezes tão ou mais árido do que o seu Sahara, deixamo-nos seguir com Eberhardt pelos magníficos jardins árabes de Guerfala; acompanhamos a vida dos pastores ou dos pobres mujiques; contemplamos os seus costumes, as velhas casas de tub (argila seca) ou as kubba (santuário) com as típicas cornijas e as cúpulas ovóides e sem pudores podemos “desfrutar à vontade a solidão entre os homens.” A solidão, o abandono; a impassibilidade; os lamentos; mas também a obstinação; o estoicismo ou mesmo crepúsculo avermelhado e ardente derramado em qualquer canto de Argel, à sombra de uma qualquer tamareira de Tamerna Djedida, ou das dunas da sua tão amada cidade El Oued. É esta a embriaguez amarga da sua prosa, o seu murmúrio crepitante, a sua tépida e graciosa tristeza. É esta a sua solidão devota. “É o que acontece às almas de essência melancólica, que no vazio das coisas efémeras da vida encontram mais um encanto, entre todos o mais profundo e embriagador. E é o contrário do que acontece com a alma do homem comum e as almas que, embora superiores, são dotadas de ternura. Para estas, só a ilusória duração de uma felicidade consegue torná-las profundas.”