Este país não é para cavalos

Este país não é para cavalos


O cavalo parece ser um animal estimado em território nacional, no entanto, há quem o menospreze. Fome, sede, agressões, trabalhos árduos e sem fim, morte por inexistência ou perda de valor comercial e abate para eventual entrada na alimentação humana são algumas das situações que estes equídeos vivem, em pleno séc. XXI, em Portugal.


O ciclo de vida de um cavalo pode ser afetado ou até interrompido pelos maus-tratos de que é vítima e, consequentemente, pela eventual morte por negligência ou pelo abate deliberado. Em Portugal, esta também é uma realidade que se mistura com a apreensão destes animais aos criadores pelos mais variados motivos, as denúncias da existência de matadouros ilegais e a alegada entrada de carne de cavalo não certificada na alimentação humana. João Pedro, Catarina, Patrícia e Mafalda são quatro ativistas da causa animal que denunciaram estas ilegalidades ao i.

“Passam-se realmente situações muito graves no mundo dos cavalos, há um lado negro que precisa de ser levado a público. Vai desde os criadores de topo ao coitadinho que só tem um ou dois cavalos. E tanto num patamar, como noutro, a situação é complicada”, começa por contar João Pedro (nome fictício) que sempre esteve ligado à causa animal, mais concretamente, à defesa dos equídeos. A seu lado, Catarina (nome fictício), narra que “as coisas vão-se desenvolvendo e ganhando outros contornos” e, sem querer, o casal foi introduzido “ao universo de que ninguém falava”, até porque a mulher tornou-se tratadora de cavalos e apaixonou-se pela espécie.

“Fomos puxando o fio à meada e percebendo o verdadeiro cenário de horror. Quando achamos que já vimos tudo, percebemos que há coisas que são piores”, avançam os ativistas, que preferem não revelar a identidade verdadeira por temerem represálias.

Da carne de cavalo certificada àquela que é vendida ilegalmente Em fevereiro de 2013, o SOL noticiou que, à época, a carne de cavalo vendida no país – 5% em relação à carne de vaca, da qual eram consumidas 170 mil toneladas/ano –, tem os rótulos certos. Jacinto Bento, da Associação de Comerciantes de Carne, elucidou que esta carne é produzida em território nacional e é “tão saudável como a de vaca e até mais magra, apenas não temos o hábito de consumir”.

“A carne tem uma procura razoável porque faz bem à saúde”, começa por elucidar Carlos Espadilha, proprietário do talho Espadilha e Simões, situado na Avenida Rio de Janeiro, Lisboa. “Tem um sabor mais forte e intenso em relação à carne dos outros animais”, declara o comerciante que vende este produto “todos os dias”.

Ainda que os apreciadores desta carne sejam “pessoas de todas as idades”, Carlos realça que “as mais antigas conhecem-na melhor” por ser aconselhada, pelos médicos, a quem tem anemia e por ser pobre em gordura.

Ainda assim, outros fregueses chegam até ao estabelecimento por motivos específicos. “Por exemplo, quando acabam uma operação ou fazem hemodiálise, vêm aqui e explicam-me que os doutores deram esta indicação”, conta, esclarecendo que, à semelhança da carne de aves, porco ou bovino, “é vendida em costeletas, hambúrgueres, carne picada, depende do gosto de cada um”.

“É vendida a metade do preço da carne de vaca, é mais económica. Aqui na zona sou o único a vender a carne de cavalo e existe outra pessoa que o faz em Benfica”, avança, destacando que existem outros talhos que lhe encomendam este produto.

No entanto, aquilo que mais preocupa João Pedro e Catarina é a existência de matadouros ilegais, locais onde os cavalos são mortos sem dignidade e, muitas das vezes, a sua carne é vendida como sendo de outra espécie. “Os animais que são criados para consumo humano são seguidos por veterinários desde o início e testados rigorosamente para que se saiba se representam ou não perigo para a saúde dos seres humanos”, frisam.

É de lembrar que, entre abril e junho de 2013, foram realizados 2.622 testes de ADN pela Comissão Europeia dos quais 16 apresentaram vestígios de carne de cavalo em produtos vendidos como carne de bovino. Dessas, três pertenciam a Portugal.

Questionada acerca dos matadouros, a Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) explica que “são estabelecimentos que requerem aprovação” da sua parte, sendo que “atualmente não tem conhecimento da existência de qualquer matadouro ilegal no país” e esclarece que “os matadouros aprovados e nos quais a DGAV efetua os controlos oficiais constam na lista de estabelecimentos do setor alimentar aprovados, a qual pode ser consultada” no seu site oficial.

Acerca da consciencialização e punição dos proprietários destas infraestruturas, refere que “quando é detetada uma irregularidade, são tomadas as devidas medidas previstas na legislação em vigor”, mas, a deputada não-inscrita Cristina Rodrigues garante que “a legislação atual deixa estes animais numa situação de especial vulnerabilidade, acabando por se verificar uma grande impunidade nesta matéria”, realçando igualmente que “acresce que estes animais são usados para carga, transporte e também fins alimentares, sem que se verifique uma fiscalização eficiente para assegurar que não existem abusos ou ilegalidades”.

Já a GNR salienta que não tem registo de matadouros ilegais, nem do uso de carne de cavalo para alimentação humana em território nacional.

O tráfico de cavalos Mafalda Campos e Patrícia Pereira, do movimento Pelos Equídeos, não se sentem tranquilas, evocando que, a cada ano, e segundo os dados do passado mês de fevereiro, da Food and Agriculture Organization of the United Nations, aproximadamente 5 milhões de cavalos são abatidos para consumo humano em todo o mundo. “Temos matadouros legais, onde existe supostamente o controlo sanitário, e os ilegais. E também os matadouros no estrangeiro para onde é feito tráfico de cavalos. No El País, foi noticiado o desmantelamento da maior rede de tráfico de cavalos, em Vigo, e a maior parte era proveniente de Portugal e houve falsificação de passaportes e por aí fora”, adiantam.

As ativistas referem-se ao artigo “Carne ilegal de caballos destinada a los animales del zoo de Vigo se vendió para consumo humano”, de dezembro de 2019, em que é possível ler que “parte da carne ilegal foi vendida na Europa depois de passar pelo açougue Valmojado (Toledo)” e “muitos dos animais vieram do norte da Espanha e de Portugal”.

“Estes animais nunca chegam a contar para a estatística porque não são registados. É por isto que a esmagadora maioria dos cavalos que encontramos nas nossas ações não têm microchip ou, os poucos que têm, não estão devidamente registados”, relatam, explicando que em fevereiro de 2018, após audiência da primeira petição pelo bem-estar dos equídeos, o CDS questionou o Ministério da Agricultura acerca do eventual uso de carne de cavalo no mercado da alimentação humana e nunca obteve resposta.

Sobre este tema, a DGAV elucida que “a carne de cavalo, desde que considerada própria para consumo humano pelo Médico Veterinário Oficial que efetua a inspeção sanitária no abate, em matadouro aprovado, pode ser comercializada para consumo humano, respeitando todos os requisitos legais adicionais”.

As ativistas acreditam que “excetuando os cavalos de raça, como os lusitanos, aqueles que estão registados na DGAV e na Associação Portuguesa Criadores Cavalo Puro Sangue Lusitano ou outros que possam ser grandes reprodutores, a maioria é registada apenas quando tem interesse comercial” e, assim, devido “à falta de controlo por parte das autoridades em vertentes como a de saber quantas éguas pariram ou quantos potros nasceram, todos os anos vêm cavalos ao mundo para caírem na desgraça”.

O panorama algarvio “No Algarve, mostram um cavalo esquelético a um turista e dizem ‘Se você me der 200 ou 300 euros, posso alimentá-lo’ e o estrangeiro tem muita pena do senhor e mete-lhe o dinheiro na mão e sente-se herói. Obviamente que o cavalo vai na mesma para o matadouro ou colapsa e, um dia de manhã, está um cadáver no meio da estrada ou do campo”, afirmam João Pedro e Catarina.

Em novembro de 2014, um solicitador britânico enviou uma petição ao então secretário de Estado do Turismo, Adolfo Mesquita Nunes, assinada por 3000 pessoas de vários países. À época, estes potenciais turistas ameaçaram não visitar Portugal até que qualquer atitude eficaz fosse tomada de modo a melhorar a maneira como os animais, cavalos em particular, são tratados. Os peticionários argumentaram que “a crueldade exercida sobre cavalos em Portugal atinge níveis epidémicos” e “há muitos cavalos sujeitos a condições muito degradadas, sem alimentação nem água”.

No que diz respeito a infrações relacionadas com equídeos, a GNR elaborou autos de contraordenação relativos à falta de alimentação e abeberamento, falta de marcação, identificação e registo de equídeos, cujos dados enviou ao i. De 1 de janeiro a 28 de março do ano corrente, registaram-se seis infrações no distrito de Faro e zero em Setúbal, mas, em 2018, foram verificadas 25 e 72, respetivamente, 15 e 36 em 2019, e 10 e 39 em 2020. Em todas as outras regiões do país, foram registadas entre zero e três infrações nestes primeiros meses.

Ao i, Rogério Bacalhau, Presidente da Câmara Municipal de Faro, expõe que a mesma “defende e promove a salvaguarda dos direitos e da saúde e bem-estar animal. Assim, sempre que toma conhecimento de alguma situação de abandono, de maus-tratos ou de circulação indevida em espaço público que coloque em risco a segurança de pessoas ou crie perturbações ao trânsito rodoviário, a autarquia, em devida articulação com as autoridades competentes, aplica a legislação em vigor”.

O autarca defende que “nestas situações, e conforme o previsto no Regulamento da Apascentação de Animais, sua Permanência e Trânsito no Município de Faro, os animais são recolhidos e, maioritariamente, entregues aos seus proprietários”, sendo que “aqueles que não são reclamados ficam ao cuidado de uma empresa especializada e devidamente certificada para o efeito, até que sejam adotados”.

Deste modo, “a Câmara Municipal de Faro desconhece a existência de qualquer matadouro ilegal no concelho, bem como de possíveis situações de uso de carne de cavalo no mercado da alimentação humana” e “repudia todo e qualquer comportamento que coloque em causa a saúde e bem-estar dos animais”.

O papel dos veterinários municipais Quando os cavalos são apreendidos aos proprietários, tal acontece “por ausência de identificação e registo de equídeos e por falta de registo/licenciamento das explorações onde os animais são mantidos”, sendo que, de acordo com a DGAV, “alguns destes casos foram também acompanhados de incumprimento do dever de cuidado do detentor ou proprietário, quer por não assegurar os parâmetros básicos de bem-estar animal, designadamente em termos de alimentação, abeberamento, abrigo e cuidados veterinários, quer por não salvaguardar os riscos de dano a terceiros”.

Os procedimentos levados a cabo variam em função da gravidade da situação tendo em conta o Decreto-Lei 64/2000 que estabelece as normas mínimas relativas à proteção dos animais nas explorações pecuárias. O serviço central da administração direta do Estado diz que as situações se verificaram em todas as regiões do país, mas tem havido uma maior incidência na zona de Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve. Assim, “os equídeos ficam à guarda de fiel depositário, em explorações que estejam registadas/licenciadas para deter equídeos e que tenham condições para receber e manter os animais até ao termo do processo”.

“No caso de maus-tratos e que resulte na apreensão do animal”, é contactado o Médico(a)/Autoridade Veterinário(a) Municipal e/ou a DGAV “para realização do diagnóstico do estado de saúde de cada equídeo, a fim de garantir o cumprimento dos normativos legais associados aos aspetos higiossanitários”, explicita a GNR, rematando que “desta forma, fica responsável por propiciar transporte e local de abrigo do animal e, em alguns casos, estas Autoridades Veterinárias poderão determinar que o proprietário/detentor seja nomeado fiel depositário do(s) equídeo(s) e, sempre que tal considerarem conveniente, poderão ainda determinar/impor todo um conjunto de medidas administrativas urgentes para salvaguarda destes, estipulando-lhes um prazo para as concretizar”.

A necessidade de alterar a legislação “As leis e sanções atuais são claramente insuficientes face à realidade que se vive em Portugal em matéria de equídeos. A falta de meios também não ajuda”, dizem Mafalda e Patrícia. “Têm sido várias as iniciativas que chegam à Assembleia da República e são literalmente ignoradas. É fundamental para o bem-estar e dignidade destes animais que o poder político pare de negar o óbvio, que é do conhecimento público, e que tome medidas urgentes e eficazes”, afirmam, lembrando que “é também importante que percebam e reconheçam que as organizações de defesa animal já não são bandos de histéricas maluquinhas dos animais”, pois “hoje em dia, o trabalho destas organizações é, em grande parte, orientado por veterinários e advogados e envolve pessoas de todos os setores e com os mais variados níveis de formação académica”.

“As ações desenvolvidas pela GNR/SEPNA, na vertente animal, assentam na realização de ações de fiscalização no setor rural para prevenir e identificar possíveis situações de incumprimento legal e na realização de ações de fiscalização dos casos denunciados através da Linha SOS Ambiente e Território”, explica a GNR, adiantando que, “posteriormente, são articuladas medidas de acompanhamento dos diversos casos monitorizados com entidades públicas e privadas, especialmente ao nível local”.

Já a DGAV, sobre os casos que lhe são denunciados, “quer se trate de abandono, comprometimento dos requisitos de bem-estar animal ou a presença de animais na via pública”, promete fiscalizá-los, “contando para o efeito com a colaboração dos médicos veterinários municipais e das entidades policiais” e afirmando que “avaliada a situação são tomadas as medidas previstas na legislação sobre a matéria”.

Mas, para a deputada não-inscrita Cristina Rodrigues, “a proteção dos equídeos em Portugal não é suficiente, assim como as ações de fiscalização”, pois “desde logo é preocupante que os cavalos não possam em qualquer circunstância ser considerados animais de companhia, ainda que o sejam efetivamente”, na medida em que “legalmente são sempre considerados animais de pecuária ou utilizados para desporto”.

Por outro lado, “a escassa legislação que existe não é escrupulosamente cumprida, até porque não são invulgares as situações de cavalos sem identificação ou sem identificação atualizada” e existem “cavalos deixados em campos sem qualquer abeberamento assegurado ou situação de subnutrição”.

Na ótica da deputada eleita por Setúbal nas últimas eleições legislativas, “não é coerente que seja crime dar um pontapé a um cão e não o seja se se tratar de um cavalo”, porque “são ambos animais já legalmente reconhecidos como animais sensíveis, inclusivamente, o código civil atribui certas obrigações aos detentores” e conclui que “independentemente do fim para o qual o animal seja detido, nunca deve estar sujeito a violências físicas injustificadas”.